Uma razoável quantidade de violência: a aceitação das prisões como síntese da atual sensibilidade acerca da violência

Autor: Jackson da Silva Leal

Mini-Bio: Doutor em Direito (UFSC), professor permanente do PPG Direito UNESC, mestre em Política Social (UCPel), graduado em Direito e advogado criminal com registro na OAB/SC, membro do Comissão Estadual de Assuntos Prisionais (OAB/SC), coord. Grupo Andradiano de Criminologia Crítica (UNESC/SC).

Titulação: Doutor

País: Brasil

Estado: Santa Catarina

Cidade: Criciúma

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0779-1103

E-mail de contato: jacksonsilvaleal@unesc.net

RESUMO

Busca-se no presente trabalho uma outra compreensão acerca da problemática do delito e da resposta à mesma, a partir da premissa produzida desde a teoria do etiquetamento, de que o crime é uma definição atribuída a um determinado ato ou a uma determinada pessoa, assim como a reação social é resultante de uma definição/escolha política. Diferentemente da explicação materialista do condicionamento econômico da ordem sociopenal, traz-se neste trabalho a compreensão sociocultural acerca do delito e da reação social – desde a razoável quantidade de crime de Christie, até a ideia de tolerância à violência de Garland. O objetivo deste trabalho é problematizar o encarceramento em massa desde a compreensão social da violência em uma perspectiva cultural e aportar elementos para uma compreensão mais alargada a partir de outro marco teórico além do marxismo.

Palavras-chave: Encarceramento em massa. Violência. Criminologia crítica. Sensibilidade social.

A reasonable quantity of violence: an acceptance of prisons as synthesis of sensitivity about violence

ABSTRACT

This work seeks another understanding of the problem of crime and the response to it, based on the same premise produced since the labeling theory that crime is a definition attributed to a certain act or person, as well as the social reaction resulting from a political definition/choice. Unlike the materialist explanation of the economic conditioning of the socio-criminal order, this work brings a socio-cultural understanding of crime and social reaction – from Christie's reasonable amount of crime to Garland's idea of tolerance of violence. The objective of this work is to problematize mass incarceration from the social understanding of violence from a cultural perspective and to provide elements for a broader understanding from another theoretical framework besides Marxism.

Keywords: Mass incarceration. Violence. Critical criminology. Social sensitivity.

DOI: https://doi.org/10.31060/rbsp.2021.v15.n1.1171

Data de recebimento: 18/06/2019

Data de aprovação: 19/11/2020

INTRODUÇÃO

Este artigo busca abordar a questão da quantidade de violência que a sociedade aceita ter em seu meio. Trazendo a discussão desde uma abordagem proposta por David Garland, de que as condicionantes estruturais materialistas como aposto na teoria marxista ou mesmo o estudo das relações de poder e disciplina como encontrado na abordagem foucaultiana não são capazes de abarcar a inteireza (totalidade) da complexidade social, e tomando a violência como resultado de um processo social e a sua correlata incapacidade de compreender a completude da dinâmica de funcionamento da violência nas sociedades modernas desenvolvidas.

A partir disso, parte-se do entendimento que a abordagem materialista em muito contribui para a compreensão estrutural das relações sociais e da violência na sociedade moderna, sobretudo no período neoliberal de capitalismo financeiro e mercadorização da segurança; assim como, também, a abordagem foucaultiana, com sua talvez inigualável contribuição teórica e analítica acerca das relações de poder (disciplina e controle) e de constituição do próprio sujeito. Mas em uma esteira proposta por autores como Garland (1999), pretende-se agregar elementos para compreender como a sociedade compreende e se relaciona com a dinâmica da violência, desde uma ideia de compreensão sociocultural, que remonta a Norbert Elias, e que viria a proporcionar um terceiro vértice analítico para contribuir e agregar complexidade na compreensão do fenômeno social violência e sua apreensão sociocultural.

Este trabalho surge desde uma reflexão encontrada na última obra publicada de Nils Christie, no Brasil intitulada Uma Razoável Quantidade de Crime1 (2011), e que aponta, em síntese, que as sociedades modernas têm a quantidade de crimes ou de encarceramento que se propõem a ter, e que inclusive essas duas variáveis não são dependentes, mas sim resultantes do que se permitem ter como definições de crime e do tratamento que aceitam dar a essa definição – a prisão –, simplificando a seletividade de determinadas condutas tornadas tipificação criminal e, dentre tantas respostas possíveis a essas condutas, a seleção da prisão como resposta razoável a elas.

Na mesma linha, David Garland em 1990 publicou a premiada obra intitulada Punishment and modern Society, que sintetiza e sumaria algumas das principais matrizes teóricas a orientar as ciências criminais e criminológicas com alguma perspectiva crítica, como a matriz estruturalista durkheimiana, a materialista marxiana, a crítica do poder foucaultiana, para então chegar à defesa de uma abordagem sociocultural em Norbert Elias, na qual aborda a ideia de sensibilidade em relação à questão criminal e à violência.

No mesmo sentido, desde uma abordagem sociocultural, a recente obra traduzida no Brasil de Alejandro Alagia, intitulada Fazer Sofrer: imagens do homem e da sociedade no Direito Penal (2018), abordando a pena constructo cultural da ideia de sacrifício, tomado como necessário para a manutenção da organização social.

Assim, este trabalho busca resgatar essas contribuições para abordar a contemporaneidade e o quotidiano de violências que a criminologia tem categorizado como violência institucional, no caso das prisões, ou mesmo inserido na ideia de sistema penal subterrâneo, no caso da violência penal ilegítima, ainda que parta do sistema ordinário de controle social.

Utiliza-se esse marco teórico desde uma abordagem sociocultural em relação à percepção acerca da violência e do sofrimento para abordar alguns elementos do novel projeto de lei (pacote) anticrime formulado pelo então ministro da Justiça Sergio Moro, observando-se especialmente seu impacto nos dois elementos de especial interesse a este trabalho – o encarceramento e a atuação policial.

Metodologicamente, este trabalho se apresenta como um esforço teórico reflexivo desde uma pesquisa bibliográfica com perspectiva analítica, cujo objetivo é contribuir com aportes teóricos enquanto ferramentais analíticos para compreender complexamente a questão da violência e a atuação do sistema penal moderno, especialmente nas suas feições estrutural e institucional.

O objetivo deste trabalho é aportar novas e alternativas compreensões ao materialismo em relação à questão criminal, que não se substituem mutuamente, mas que congregadas permitem uma análise e uma interpretação alargada do processo punitivo e da realidade da violência institucional orquestrada e legitimada pela atuação estatal.

UM MARCO TEÓRICO CULTURALISTA E APONTAMENTOS SOBRE A ACEITAÇÃO DA VIOLÊNCIA – DE NILS CHRISTIE À DAVID GARLAND

A importante obra de David Garland intitulada Castigo y Sociedad Moderna (1999)2, na qual aborda os principais marcos teóricos a orientar uma análise crítica dentro das ciências criminais, aponta que para a compreensão do castigo (pena) necessita-se fazer alguns questionamentos: que tipo de poder se é autorizado? Se necessita de apoio popular? Que tipo de conteúdo valorativo transmite? Que objetivos tem e como se forma? Que tipo de cultura e sensibilidade o sustenta? Esses interrogantes formulados por Garland (1999) ajudam no desenvolvimento do presente trabalho a fim de encaminhar uma contribuição no marco de análise de como a sociedade enquanto apreensão cultural se relaciona com a violência.

Nesse sentido passa a abordar a violência a partir do que entende por sensibilidade à violência desde um marco teórico da compreensão sociocultural, que define como:

En su aspecto cognitivo la cultura se refiere a todos aquellos conceptos y valores, categorías y distinciones, marcos de ideas y sistemas de creencias que los humanos usan para construir su mundo y representarlo de manera ordenada y significativa. Abarca la serie completa de fenómenos materiales, simples y complejos, elaborados y desarticulados, de manera que as filosofías, las ciencias y las teologías queden incluidas junto con las cosmologías tradicionales, los prejuicios populares y el simple sentido común. Igual sucede con los esquemas normativos del gusto, la moda, los buenos modales y la etiqueta, que no están fuera de la cultura, como tampoco lo están los sistemas desarrollados de ética, justicia y moralidad. Estas mentalidades o modos de pensar tienen, a su vez, estrecha vinculación con las formas de sentimiento y sensibilidades, de manera que los aspectos cognitivos de la cultura se vuelven inseparables de su dimensión afectiva. Así, por ejemplo, las mentalidades científicas y racionales tienden a alentar una objetividad de sentimientos, desapasionada y autocontrolada. (GARLAND, 1999, p. 229).

Com esse conceito, Garland trabalha com uma interpretação do desenvolvimento ocidental das penas, que difere do discurso liberal iluminista que apontava a racionalidade e a humanidade como tendo sido os orientadores de reformadores como Beccaria, Bentham ou mesmo Stuart Mill. Para Garland a violência institucional3 (das penas) não cambiou a partir de preocupação humanitária, tampouco por conta do desenvolvimento racionalista, mas a partir da ideia de sensibilidade à violência, que se dá de acordo com pessoas (enquanto organização cultural) situadas em lugar e tempo, e como estão habituadas com a violência, ou seja, o quanto sua cultura aceita (ou mesmo permite) de violência.

Contrariando o argumento da civilidade das penas, aponta que a penalidade/punição se apresenta como resposta (violenta) e orientada pelo temor, pela hostilidade, pela agressão, pelo ódio, ou mesmo, de outro lado, pela piedade, pela compaixão e pelo perdão (seriam alguns elementos de manifestação cultural) (GARLAND, 1999).

Alejandro Alagia (2018) na obra Fazer Sofrer aponta, desde um resgate antropológico das penas e da violência, que o recurso à violência punitiva se constitui em uma dinâmica sacrificial de um corpo para a manutenção e a coesão social em torno de determinados valores; não sendo natural, mas culturalmente identificado que, sobre determinadas condutas e pessoas, recaia a fúria punitiva para que a comunidade se mantenha.

Isso desde as mais variadas formas culturais e suas justificações de matriz religiosas (transcendentais), incluindo a sociedade cristã ocidental. Como escreve Alagia (2018, p. 42): “a destruição de algo, de alguém ou de um grupo pode satisfazer e ocupar o lugar dos verdadeiros culpados na crise de existência da ordem social. Uma vida menos preciosa é oferecida e aceita, no lugar de outra”.

Pode-se acrescentar, também, a organização social resultante do iluminismo e seu culto à racionalidade e ao suposto humanismo, sobretudo, a obediência a determinados valores sociais e a necessidade de manutenção da comunidade em torno do discurso da liberdade; o que Zaffaroni (2011, p. 38) chamou de “o sequestro de Deus” e que resulta no processo de culto sacrificial tecnicamente operado e regulamentado pelo racionalismo estatal na defesa da sociedade (o processo penal e a pena tecnicamente administrada) e de seus valores de convivência. Erigindo-se a privação da liberdade como o sacrifício de alguns elegidos, em benefício e culto à liberdade dos demais pertencentes à sociedade liberal.

O que a criminologia, mais tarde, apontaria como seletividade do sistema penal, Alagia sugere como foram construídos como corpos passíveis de sacrifício:

O ser humano sacrificável tem que reunir as condições de vulnerabilidade ao poder punitivo – delinquentes, prisioneiros de guerra, escravos, crianças, adolescentes, solteiros, tarados, dejetos da sociedade –, mas também em casos excepcionais o big man nas sociedades igualitárias, o que vem a demonstrar a semelhança do sacrifício com a seletividade penal. As vítimas sacrificáveis são seres que pertencem muito pouco à sociedade. (ALAGIA, 2018, p. 59-60)4.

A partir do que pode-se identificar que as penas corporais e as execuções, distantes de serem manifestações de certa definição de brutalidade de um povo, se apresentam a partir desses sentimentos – de aceitação e normalidade da violência enquanto resposta (estatal) aos conflitos e problemas sociais. Alejandro Alagia aponta que a assistência dos flagelos e as execuções em público se faziam como rotina para determinada organização social e, com a mudança das reações e dos sentimentos culturais, passaram a ser vistas como manifestações pouco civilizadas, ou mesmo pouco refinadas do uso da violência. Razão pela qual passaram aos espaços públicos (escondidos) longe dos olhos e dos sentimentos populares, se deslocando para dentro das prisões, para atrás dos muros. Escreve o autor:

En substitución de estos espectáculos públicos se ha desarrollado toda una red de instituciones cerradas, como cárceles, reformatorios y separos policiacos, que se encuentran literalmente detrás del escenario, y que permiten delegar el castigo a especialistas cuyas actividades se esconden tras altos muros. (GARLAND, 1999, p. 274).

Importante salientar, se é que se faz necessário, que o sofrimento e a ministração de dor, como penas, não foram interrompidos com o pretenso fim das penas corporais, e que a prisão consiste nas suas substituições. Mantendo-se como aflição física que ultrapassa a mera privação da liberdade, sendo lócus de um processo de sofrimento tanto físico quanto mental.

Porém a privação da liberdade proporcionou que esse sofrimento fosse escondido e ficasse longe dos olhos e dos sentimentos públicos, não ativando, então, o sentimento de indignação e não atingindo a sensibilidade sociocultural acerca da violência5.

Diante disso recolocam-se as questões antes formuladas da seguinte maneira: como e por que as políticas de punição transmitem significado? A quais públicos e que tipo de significado essa forma de violência se dirige e transmite? E por que o castigo e sua violência continuam sendo uma instituição social validada? (GARLAND, 1999).

Esses interrogantes parecem fundamentais para compreender como o uso da violência se constitui em forma de gestão social especializada (administrada tecnicamente) e dentro do marco do discurso humanitário ou mesmo racional, que teria surgido justamente como forma de pôr fim à suposta Era da Brutalidade.

A resposta a esses interrogantes faz ressurgir a contribuição inserida no último livro de Nils Christie (2011), supracitado, no qual levanta o que seria uma razoável quantidade de crime e, por conseguinte, uma razoável quantidade de pena/punição. Para apontar, em primeiro, que o crime não existe, como já havia dito Howard Becker (2008)6, sendo apenas uma forma específica de tratamento para determinadas condutas e pessoas específicas, dentre tantas possibilidades de lidar com tais fatos ocorridos e sujeitos à definição de crime, e nada mais é do que uma atribuição de sentido.

Se a pena infamante corporal e pública se constituía na forma de exposição do sujeito e da conduta indesejada, a prisão, o rótulo e a classificação dos crimes operada pela legislação penal e pelo tratamento penitenciário se constituem nas novas formas de eleição/seleção de inimigos e de transmissão de significado exemplarizante; mediante, ainda, ministração de dor e sofrimento. Se a brutalidade do inimigo era medida pela crua e grotesca pena aplicada fisicamente, atualmente a importância do inimigo se apresenta proporcionalmente no tempo de privação da liberdade como medida (e no seu espectro de maldade proporcional). Assim como na informal justificação dos sofrimentos inclusos nesse tempo de privação e das condições de vida intramuros, como parte do processo de castigo, dissuasão e reforma (SYKES, 2017).

Assim se constituiu a importância da prisão para a sensibilidade à violência, pois não é um cidadão que é objeto de atos violentos tecnicamente orquestrados pelo Estado, mas é simplesmente o afastamento racional e asséptico de uma ameaça ao convívio social; ainda que esse sentido atribuído seja o mesmo que dizer que a prisão é a continuação da brutal violência da pena corporal, técnica e metricamente gerenciada pelo Estado, sobre os corpos de quem define (e constrói socialmente) como inimigos7.

Para além da função do inimigo, volta-se a Garland quando aborda a transcendência da cultura do castigo para a sociedade moderna, enquanto constructo sociocultural. Nessa linha, aponta que o processo de definição e direcionamento de toda a estrutura de controle social não se dirige apenas à figura do eleito inimigo, mas a toda organização social; sejam pessoas ou instituições, ou seja, castigados, castigadores, plateia e mercado.

Por isso fala de público imediato, que diz respeito aos tornados delinquentes, obviamente; mas não apenas esses são implicados direta e imediatamente com a atuação do sistema penal, mas também toda a gama de profissionais incumbidos de tal função. Da mesma forma que o sistema penal e toda a dinâmica de controle social demanda condutas positivas ou negativas em um esquadrinhamento comportamental. Os agentes do sistema estão submetidos a tal controle, a partir de um imperativo de atuação e de símbolo moral que molda seus comportamentos desde dentro das instituições às quais fazem parte; produzindo dessa maneira a sua compreensão sobre crime, criminalidade, violência e controle.

É a dinâmica performativa do sistema penal produzindo, de um lado, os criminalizados e, de outro, os controladores que necessitam obrigatoriamente do uso da força/violência diante de uma retórica de guerra. De acordo com a acepção oferecida por Garland (2009), essa seria a clientela direta do sistema penal, como denomina Zaffaroni (2013).

Mas acrescenta ainda o público mediato, ou mesmo secundário, mas não menos importante, sobretudo na lógica de funcionamento e circulação das representações penais na atualidade da estrutura social informacional; nesse momento em que informação se constitui em mercadoria e a problemática do crime é erigida enquanto produto.

Nesse sentido é que a significação criminal se dirige ao público específico dos definidos criminosos e controladores, como também ao público em geral, como uma dinâmica ou um instrumento de dissuasão (ou ainda como prevenção geral, como diria a retórica penal clássica); ou simplesmente controle de comportamentos (e modulação de subjetividades), mediante uma divisão social maniqueísta entre o “nós” e “eles”, tendo como divisor essa pauta de conduta delimitada pela vulnerabilidade ao processo (sacrificial) de criminalização.

Essa difusão das significações penais permite a Garland dividir em três nuances os efeitos performáticos do controle penal: primeiro, a autoridade social; segundo, a definição do próprio sujeito; e terceiro, uma compreensão das relações sociais.

Primeiro, acerca da autoridade social que permite e autoriza o uso da violência e o permanente ato de censura e controle das condutas (ou mesmo da própria existência), ainda que se trate pretensamente de um governo técnico e que a lei se preocupe, em tese, com os fatos e a externalidade de condutas (fase executório do iter criminis), a naturalização do Estado e de seus agentes como guardiões do contrato (defesa) social ocasiona que esse controle se estenda à esfera moral (ou mesmo cultural) de acordo com os padrões culturais e os standards tradicionais.

Fala-se da circulação de significados penais, de bem e mal, e desta feita essa autoridade social é absorvida e introjetada pelos julgadores estatais (desde policiais a magistrados), também permeando todo sujeito que se identifique do lado maniqueísta pretensamente do “bem”, que desta maneira reproduzem os julgamentos sociais e morais que lhes são possíveis em termos de compreensão da realidade social transmitida. Assim escreve Garland:

en el proceso de castigar las instituciones penales manifiestan (y autorizan) políticas para culpar, determinar responsables y fijar responsabilidades. Tácitamente las aplican como modelos o ejemplos, mostrando como deben responsabilizarse la conducta y las personas por quien y bajo que términos. (GARLAND, 1999, p. 308).

Em síntese, a difusão dos significados penais ou da simbologia valorativamente carregada do sistema penal e da punição permite que se identifique em cada sujeito uma face temente e obediente às normas, ao mesmo tempo que um potencial e legitimador julgador social de plantão.

Nesse sentido, a descrição/construção do sujeito individual, como segundo elemento, na medida em que, por meio da difusão dos símbolos penais e de sua carga simbólica, que se difunde por meio da atuação das instituições, erige-se uma imagem de indivíduo, constrói-se um modelo de subjetividade, um padrão de moralidade, de comportamento, um padrão de normalidade e existência, que se forja desde os discursos punitivos oriundos da lei e da autoridade fundados em orientações religiosas, morais, meramente técnicas, ou mesmo utilitaristas.

Garland (1999, p. 314) aponta que assim se forma o Eu do sujeito sob normas e interditos penais ou, em brevíssima síntese, “no es solo el criminal quien es interpelado por los símbolos de la penalidad, también la identidad del ciudadano respetuoso de la ley se deriva, en parte, del mismo marco simbólico”.

Em terceiro, uma compreensão das relações sociais demarca a organização social como resultante do encontro fortuito de indivíduos que se relacionam a partir do controle e dos limites do certo e do errado, do permissível e do tolerável, desde os signos penais difundidos, ou seja, as relações sociais se fazem como uma rede de regras de proibição e julgamentos sociais. Garland argumenta que as significações da penalidade assumem o lugar e simbolizam as relações sociais, não apenas sua natureza, mas sua extensão e qualidade; reduzindo seu cumprimento aos padrões estabelecidos de mero agressor x vítima, infrator x instituições (Estado e a simbologia da infração ao contrato social). Ou como Nils Christie (2011, p. 27) escreveu tempos antes: “nosso destino na sociedade moderna é o de viver entre desconhecidos. Essa situação é particularmente propícia para que se atribua a atos indesejados a pecha de criminosos”.

Esse tipo de relação (artificial) construída e controlada pela lei, e de acordo com as significações impostas e difundidas pelas instituições e pelos discursos penais, proporciona um terreno fértil para a manutenção da lógica de submissão ao seu simbolismo; de maneira que a lei penal e seus discursos e símbolos constroem a vida social desde seus parâmetros relacionais baseados no interdito e na compensação/castigo. Christie (2011, p. 107), por sua vez, conclui: “[pois] entre pessoas que se conhecem, é menos natural aplicar categorias criminais”.

En otras palabras, necesitamos una forma enriquecida de pensamiento penitenciario que considere la penalidad como una institución por medio de la cual la sociedad se define y expresa al mismo tiempo y por los mismos medios en que ejerce el poder sobre los trasgresores. (GARLAND, 1999, p. 336).

Esse cenário proporciona o sentido utilizado de razoável quantidade de crime proposto por Christie (2011), tendo em vista o mesmo como uma construção artificial da cultura enquanto resposta simbólica a determinados fatos e pessoas; da mesma forma, a quantidade aceita de violência, trabalhada por Garland (1999), uma vez que a cultura do delito/pena/culpa/retribuição fomentada induz a uma lógica de recurso à violência; aceita-se a caracterização de pessoas e fatos como crime e o uso da violência como resposta. Fazendo-se uma violência que se faz aceita socioculturalmente como derivativa da subjetivação da mesma.

Nesse sentido, para além da questão conceitual, passa-se à concretude dessa violência recorrente no cenário brasileiro contemporâneo.

UMA RAZOÁVEL QUANTIDADE DE VIOLÊNCIA: A VIOLÊNCIA QUE ACEITAMOS TER – DO SISTEMA PENAL SUBTERRÂNEO AO ENCARCERAMENTO EM MASSA

Neste ponto, se aborda o que se entende por uma razoável quantidade de violência no Brasil, pensando em duas de suas formas – a violência e a letalidade policial e a violência do encarceramento em massa. Trabalhando-se com a categoria razoável quantidade de crime e violência, dantes proposta e pensada desde Christie e Garland, como sendo a que é socialmente aceita pela cultura e pela sensibilidade contemporânea, o que também se analisa a seguir em termos concretos.

Também, porque a contribuição da categoria sensibilidade à violência pode ser uma ferramenta de leitura para a realidade brasileira, em sua concretude, na análise de como se lida com o fenômeno da prisão e da punição e das políticas criminais em sua materialidade.

Assim, a partir da compreensão da violência policial e do encarceramento enquanto violência socialmente aceita, traz-se uma abordagem inserindo o pacote de mudanças político-criminais formulado por Sergio Moro, que altera substancialmente a lógica de funcionamento do sistema penal como um todo, mas, sobretudo, assume a cara do punitivismo desenfreado de matriz (neo)classicista com nuances de (neo)positivismo, e que, desde a apreensão sociocultural (sensibilidade à violência), muito diz sobre o estágio atual da conformação brasileira e da cultura política contemporânea.

Inicia-se pela mesma dinâmica do primeiro ponto, desde interrogantes a conduzir construção da ideia, se poderia se pensar a realidade brasileira acerca da violência e sua sensibilidade acrescentando um questionamento: por que se tolera/aceita (e assim se faz razoável) a violência policial e prisional existente no Brasil?8

Parece que na realidade brasileira, sobretudo, o significado que a penalidade e a definição criminal proporcionam é a justificação de uma divisão social existente entre trabalhadores/laboriosos honestos x vagabundos; isso se apresenta tanto desde o público alvo da norma penal que se faz nos controladores, que introjetam essa distinção social e a inserem em sua atuação, assim como no próprio alvo principal da norma penal, que é o próprio sujeito que se constrói enquanto Eu, desde essa formulação maniqueísta e forjada desde os standards da cultura e da moral tradicional baseada na fé, família e trabalho; ou seja, desde uma moralidade, uma religiosidade e uma legalidade tradicionais (conservadoras de papéis e lugares sociais) que conduzem a uma unidirecionalidade de valores sociais (MELOSSI, 2018) e a um padrão de subjetividade (normalização).

Nesse sentido, pensa-se que essa violência se dirige na realidade brasileira, como dantes falado por Garland (1999), ao público imediato, que não se enquadra nos padrões socioculturais tradicionais e, portanto, conforma o alvo do processo de extermínio (em defesa da sociedade); e também ao público em geral, que a partir dessas definições sociais, políticas e culturais se define enquanto sujeito ou, na cultura popular, enquanto cidadão de bem x vagabundo9. A isso que Christie (1984)10, já na década de 80, chamaria de neoclassicismo, permeado de novas formas de positivismo a justificar o condicionamento sociobiológico do sujeito em sua incapacidade de se adaptar a esses padrões.

A partir de Alejandro Alagia (2018), se permite afirmar que esse neoclassicismo inebriado de neopositivismo se apresenta absorvido pela crença eminentemente ideológica, fazendo alusão ao mito do vinho de Dionísio que, no alto de seu entorpecimento, permite tomar o falso por verdadeiro e assim levar adiante uma ação socialmente genocida, aceitando a violência, a pena e o encarceramento como segurança, justiça e retribuição. A isso Zaffaroni (2013) chamou de pensamento mágico. Assim escreve Alagia:

Nunca deixou de ser motivo de preocupação a razão pela qual uma falsa representação da realidade é igualmente digna de crédito, não levando em conta a denúncia mais bem documentada. A pena não dissuade, não previne nada, não interrompe agressões, não ressocializa, mas ainda assim a lei e a doutrina interpelam o sujeito a favor da crença sem encontrar resistência. O que é que faz com que algo falso seja vivido como verdadeiro? (ALAGIA, 2018, p. 320).

E é justamente nessa crença, eminentemente ideológica no combate à violência por meio do uso pretensamente legítimo de mais violência saneadora, que se insere o pacote de medidas penais do ministro Moro, como se a distribuição de sofrimento fosse uma condição para a manutenção social.

Nesse contexto que se permite apontar a violência policial como uma das formas de violência institucional, seja na sua forma legal ou mesmo na sua forma subterrânea que, ainda que ilegal, se constitui em prática ordinária da estrutura de controle social dentro de uma dinâmica de guerra declarada contra o crime (contra os definidos como vagabundos).

Eugenio Raul Zaffaroni e Nilo Batista oferecem a seguinte definição de sistema penal subterrâneo:

A atenção discursiva, centrada no sistema penal formal do Estado, deixa de lado uma enorme parte do poder punitivo exercido por outras agências que têm funções manifestas bem diversas, mas cuja função latente de controle social punitivo não é diferente da penal, do ângulo das ciências sociais. Trata-se de uma complexa rede de poder punitivo exercido por sistemas penais paralelos [...] este é o sistema penal subterrâneo, que institucionaliza a pena de morte (execuções sem processo), desaparecimentos, torturas, sequestros, roubos, saques, tráfico de drogas, exploração do jogo, da prostituição. (ZAFFARONI; BATISTA, 2011, p. 69-70).

Esse é o cerne da pesquisa de doutoramento de Orlando Zaccone (2015), demonstrando como a simbologia cultural do crime/punição promove uma identidade salvacionista no controle social policial, impelindo a um processo de extermínio de determinados segmentos da sociedade identificados como inimigos. Processo esse que não se faz solitário pelas polícias ou pelos agentes policiais em específico, mas sim chancelado pelas estruturas jurídicas (magistrados e promotores) e políticas (agências executivas).

Zaccone (2015, p. 140) afirma: “se a polícia mata, quem joga a pá de cal é o poder público”, referindo-se às dezenas de processos de auto de resistência na cidade do Rio de Janeiro (RJ), sob os quais jaziam corpos (negros matáveis) que sequer tiveram inquéritos concluídos ou denúncias recebidas, ou seja, com o aval do Poder Judiciário e/ou Executivo. Sempre desde uma justificativa que partia de um julgamento da vítima, que se pode identificar como julgamento social (porque vivia em lugar identificado como de traficância), julgamento moral (sendo identificado com pessoas envolvidas com o crime organizado) e julgamento identitário e cultural (o sujeito era ligado à vida do crime e se apresentava perigoso), como chama atenção Zaccone (2015, p. 172): “o pertencimento ao mundo do crime ou ao mundo das drogas evidencia a sua periculosidade e enseja o fundamento da legítima defesa não do policial, mas da própria sociedade”11.

E essa ocorrência (que se faz cotidiana) entretanto em tese se constitui anômala ao funcionamento do sistema penal, ganha a chancela e praticamente um salvo conduto com o projeto anticrime de Sergio Moro, quando altera os artigos 23 e 25 do Código Penal12, autorizando o uso da legítima defesa como justificação por crimes cometidos tanto por agentes de segurança pública como por “cidadãos de bem”, quando em condições de risco ou iminente violência, para prevenir ou cessar injusta, agressão ou ameaça, movidos inclusive pelo medo de tal. Da mesma forma, a mudança do artigo 309-A do Código de Processo Penal, prevendo que se pode não efetuar prisão do agente policial e de segurança pública, se apresentando como uma autorização processual para o extermínio com a chancela da legislação penal; constituindo-se em uma verdadeira autorização para o abatimento dos supostos e construídos simbolicamente como inimigos ou criminosos habituais e irrecuperáveis de que falava Enrico Ferri, e que resgata Sergio Moro em seu projeto.

Outra violência que interessa ao presente trabalho, e que faz parte do cotidiano e da cultura da penalidade, é a questão da prisão e do encarceramento em massa, parecendo não espantar mais o fato de se ter no Brasil a terceira maior população prisional do mundo; em condições de vida absolutamente incabíveis, dentro de instituições absolutamente deteriorantes do sujeito, em todos os sentidos, desde conviver sem qualquer estrutura, passando pela sujeição à violência extrema diariamente, chegando até à violência psíquica de estar confinado em lugares nos quais não existe um lugar para realização das necessidades básicas, diante da superlotação.

Ainda assim, a compreensão social ou a sensibilidade cultural diante da violência é levada a crer que os sujeitos dentro da prisão são perigosos, são diferentes dos “cidadãos de bem” (neopositivismo), e que só estão presos pois merecem a punição, já que fizeram por merecer tendo escolhido a vida e o mundo do crime (livre-arbítrio e neoclassicismo); e por isso, necessitam de penas duras, terríveis condições de vida intramuros como contra motivação, e de trabalho (se possível forçado) como forma de adequá-los à vida laboriosa de todo e qualquer sujeito trabalhador honesto.

A isso que se pode chamar de pensamento mágico de Zaffaroni (2013) ou como a compreensão (falsa) inebriante acerca da realidade prisional, como apontou Alagia (2018). Ou ainda, como escreve Gresham Sykes (2017), falando sobre a crença (eminentemente ideológica) no endurecimento do encarceramento a partir de uma pesquisa realizada sobre as prisões de máxima segurança nos Estados Unidos da América:

Primero, se sostiene que para los encarcelados la experiencia es – o debería ser – suficientemente desagradable como para disuadirlos de reincidir en el crimen en el futuro. [...] segundo, se argumenta que el encarcelamiento es importante como disuasivo, no para el individuo que ha cometido el crimen y ha encarcelado, sino para la gran masa de ciudadanos que tambalean en el borde entre delinquir y no hacerlo. Tercero, se afirma que el efecto disuasivo del encarcelamiento consiste en mantener a criminales conocidos temporariamente fuera de circulación, y que su principal objetivo es tenerlos tras los muros, donde al menos de momento no podrán aprovecharse de la comunidad libre. (SYKES, 2017, p. 61).

E esse pensamento mágico de que fala Zaffaroni encontra sua síntese na prisão, e contra quem se dirige essa carga de violência? Esse foi o objeto da pesquisa de Vitor Martins Pimenta (2018), na qual busca perquirir o quanto se prende, quem está preso, porque sofre a prisão, e em que condições.

Nessa linha, para fins desse trabalho, toma-se como clientela do sistema penal quem sofre a violência dos instrumentos de controle social, e dentre deles a prisão. A pesquisa realizada desde os dados consolidados do Conselho Nacional de Justiça (PIMENTA, 2018) permite dizer que quem sofre a prisão, ou seja, sobre quem recai a violência da seletividade penal e da criminalização primária e secundária, é o homem, jovem, negro e pobre, sendo a maciça maioria da população carcerária composta por homens, dentre os quais 62% são negros, sendo ainda uma população prisional imensamente jovem, com 55% de homens entre 18 e 29 anos, bem como oriundos dos estratos sociais mais marginalizados, aferindo-se desde sua escolaridade, uma vez que 61% não têm ensino fundamental completo.

O sistema penal opera de forma desigual, no nível da criminalização primária, ao oferecer tratamento mais rigoroso para as práticas que, em abstrato, seriam mais prováveis entre a população mais pobre. Estas estatísticas pouco dizem sobre a frequência dos delitos na sociedade, indicando, pelo contrário, a prioridade que a repressão a essa forma de delinquência encontra no sistema penal, desde a atuação da polícia até o tratamento conferido pelo sistema de justiça. (PIMENTA, 2018, p. 115).

A violência no Brasil, como já apontava Alessandro Baratta (2011), se apresenta como um bem (mal) desigualmente distribuído e que atinge diferentemente os estratos sociais, recaindo principalmente sobre as classes (ou grupos sociais) marginalizados na estrutura social, e desde esse discurso de defesa social, esse direcionamento é justamente o que permite a manutenção dessa configuração social desigual.

Voltando ao pacote Moro anticrime e de segurança pública, talvez seja no encarceramento o seu maior impacto. Muito embora o encarceramento já se constitua em um problema de enormes proporções, as mudanças propostas inevitavelmente ampliarão e acentuarão a problemática, demonstrando não haver qualquer compromisso ou preocupação com quem está no interior das masmorras (ou mesmo campos de concentração) que se denominam cárceres no Brasil.

A primeira medida do artigo 33, parágrafo 5, do Código Penal é a adoção irrestrita do cumprimento inicial da pena em regime fechado para todo e qualquer acusado de crime, desde que havendo elementos (subjetivos) que indiquem habitualidade delitiva, independente da reincidência. Da mesma forma, altera o artigo 2 da Lei dos Crimes Hediondos, dificultando a progressão de regime para os crimes definidos na lei, submetendo ao juízo de prognose (futurologia) não delitiva pelo magistrado. Ou ainda, no art. 7 da lei, impedindo os condenados em regime fechado ou semiaberto ou presos provisórios de saídas temporárias, salvo para comparecimento em audiência (fechado e provisórios) e para trabalho e estudo (semiaberto).

Talvez as duas mudanças mais drásticas, para efeito deste trabalho, no que diz respeito ao encarceramento em massa, seja a mudança do artigo 310 do Código de Processo Penal, que inverte a lógica e cristaliza o que na prática já ocorria mediante um esforço punitivista da magistratura, mas que, de acordo com o pacote, torna a prisão preventiva a regra, e não a exceção, sendo a medida adotada para todo acusado identificado como criminoso habitual ou profissional, e, por fim, a derradeira alteração legislativa que reforça a falência do princípio da presunção da inocência, prevendo no artigo 617-A do CPP13 que a pena passa a ser cumprida com decisão colegiada, ainda que não definitiva e pendente de recurso – a afamada e inglória prisão em segunda instância –, que surge como medida de exceção e que se torna permanente como medida de defesa social.

Em síntese, essas mudanças são propostas como recurso primeiro da violência estatal oficializada e de significativa maneira chancelada pela opinião pública, como forma de aplacar o pânico social gerenciado para capitalizar tais medidas, pouco importando a dose de sofrimento humano que proporciona ou mesmo os reflexos culturais que infunde14.

Assim, ainda nas pistas fornecidas por Garland (1999), pensa-se que a validação, ou o porquê dessa violência ser aceita na cultura brasileira e tomada como razoável, se dá justamente em relação a quem ela se dirige e como ela é direcionada.

Novamente fazendo uso da contribuição de Alessandro Baratta (2011), quando define política penal como um processo de distribuição (desigual) de dor e sofrimento, escolhendo bodes expiatórios como mecanismos de sanar a organização social, ou seja, apresentando-se meramente como instrumento do braço punitivo estatal e sua dinâmica de identificação de responsáveis e atribuição de culpabilidades.

O sucesso da política penal, que se constitui em uma verdadeira ode à violência e uma pregação ao sofrimento, se apresenta como um sucesso a partir do momento em que essa prática se apresenta como sendo a defesa dos valores sociais (como se fossem homogêneos) e a defesa dos indivíduos, como se fossem indistintos perante esse sistema. Ou seja, em grande medida, os grupos e as classes mais vulneráveis, e mais frequentemente vitimizadas por essa mesma máquina, creditando a ela essa função de pacificação mediante o uso e a distribuição da violência.

Esse processo se reforça e se intensifica também com a forma como a violência é veiculada midiaticamente e espetacularmente (circulação cultural da violência), fazendo-se de modo a garantir e perpetuar seu ciclo de consumo de vidas e sofrimento humano. Como apontou Christie (2011), cada vez mais, na sociedade moderna, se está fadado a (con)viver entre estranhos; sendo a midiatização da cultura da violência um elemento fundamental de disseminação, distorção e continuidade da cultura da punição.

Assim, por meio da mídia, ou mesmo da violência real vivenciada diariamente, parece que se acostumou a conviver com notícias ou informações como: “presos são mortos em rebelião”; “traficante é abatido por agentes policiais”; “jovem é morto em troca de tiros com a polícia”; “os presídios brasileiros são um antro de doenças matáveis”; “as condições de salubridade das unidades prisionais piora com a superlotação”; ou ainda, “o número de encarcerados não para de crescer”.

Permitindo a compreensão de que a violência faz parte do dia a dia da sociedade brasileira, não causando espanto e tampouco atingindo a sensibilidade em relação a tais fatos. Afinal de contas, o preso, o executado, o condenado é, não esporadicamente, o negro, o filho da faxineira, o desempregado bêbado ou a mulher prostituta; sempre remetendo a um ideário valorativo que constitui esses sujeitos como antagônicos e inimigos, os quais se apresentam como sacrifícios pela paz e pela defesa social, ou simplesmente como baixas colaterais em nome do modelo de organização social.

Nesse sentido que se trata, para efeito deste trabalho, do sistema penal – neste momento tomado em duas de suas principais manifestações, a violência policial e o encarceramento em massa –, como manifestação de distribuição de sofrimento humano deliberado e aceito culturalmente, observando-se em nome de que se dirige e contra quem se dirige.

CONCLUSÕES: É preciso voltar a falar em abolicionismo

Para efeito de conclusão, buscou-se aportar elementos de análise, para além de uma abordagem estrutural materialista, que sem dúvida foi e é de fundamental importância para compreender a relação da prisão inserida na totalidade social e sua significação material-econômica; assim como, também, além da abordagem (pós)estruturalista foucaultiana que, da mesma maneira e fundamentalmente, é imprescindível para pensar as relações de poder intraprisionais e a construção do sujeito desde uma abordagem biopolítica, das relações e do sujeito.

Para além delas, tentou-se agregar elementos e complexidade, para pensar a relação da sociedade com a dinâmica de prisão-punição, desde uma compreensão sociocultural da sensibilidade em relação à problemática da violência, sobretudo desde esse marco teórico, buscando pensar a realidade concreta brasileira. E, com isso, aportar elementos tanto teóricos quanto materiais (reais) de análise.

Nesse sentido é que se reforça o elemento fundamental da perspectiva abolicionista formulada por Louk Hulsman e Jacqueline Celis (1993), do caráter performativo da linguagem penal e da política punitiva, sua capacidade de moldar corpos e pensamentos, e assim de conformar uma cultura punitiva e de violência. Os signos e símbolos penais de culpado, de perigoso, de violento carregam, muito além de uma justificação técnico-normativa, toda uma cultura e uma compreensão social em torno de determinados fatos e pessoas, e de como se lida com determinadas situações-problema, como o próprio autor denomina.

Nessa linha, resgata-se a contribuição fundamental de Thiago Fabres de Carvalho (2010), quando aborda a cíclica lógica da violência desde a analogia do filme Abril Despedaçado, na qual aponta que a dinâmica da violência que permite outro ato de violência como resposta, independente de essa ou de aquela ser autorizada por lei, justa ou injusta, não retira seu caráter de resolução de problemas sociais por meio da violência, da vingança e da distribuição de sofrimento humano. Ou como, de maneira clara, Ricardo Jacobsen Gloeckner (2018, p. 172) escreve, indo ao centro do problema: “eles sabem o que fazem, e ainda assim o fazem”, referindo-se à racionalidade e à direcionalidade do controle (violência) penal na modernidade; assim como, da forma como se tem identificado a cultura da punição e sua funcionalidade à perpetuação dessa dinâmica.

Nesse sentido, aponta-se a necessidade imperiosa de um rompimento com a lógica da retribuição, da culpa, da pena, da vingança, como forma de colocar fim a uma problemática social. Uma necessidade urgente de resgatar o abolicionismo penal desde uma compreensão ampla de organização social, das pessoas e das relações.

Sob pena de continuar inebriado com a cantilena do endurecimento penal que se resolve em violência policial e encarceramento em massa, reproduzindo física e culturalmente a lógica do extermínio, do sofrimento e da segregação, obviamente que, da clientela historicamente determinada, contra a qual essa máquina se volta.

Enquanto na Idade Média se festejavam as penas corporais e o suplício, na atualidade se regozija com a prisão enquanto sofrimento humano – dos outros. Retomando e adaptando a provocação de Nils Christie (2011): quanta violência será o bastante?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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______; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2011.


  1. Título original: En passende mengde kriminalitet (2004). Em inglês: A Suitable Amount of Crime (2004).↩︎

  2. Título original: Punishment and modern society (1990). Ainda pendente de tradução no Brasil.↩︎

  3. Para isso é preciso ter em mente que a prisão e a atuação do Estado enquanto controle social se constituem em uma dinâmica de violência, como define Rosa del Olmo (1979) quando aponta a existência das violências institucionais operadas pelas instituições de controle estatal no seu exercício ordinário ou subterrâneo de atuação, ou ainda a violência estrutural como resultante de uma lógica de organização social baseada na submissão e no sofrimento de determinados grupos de pessoas como resultado do simples e regular funcionamento, para além da recorrente e perseguida violência interpessoal, sobretudo a de rua (street crime), que demarca sua condição de vulnerabilidade social e de classe.↩︎

  4. Zaffaroni, em resposta à obra Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs (2016), trabalha com a definição de inimigo, desde Carl Schmitt, como hostil, como sujeito que carecia de direitos e estava fora da comunidade. Para saber mais, ver: ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2011.↩︎

  5. Complementa Garland acerca da violência produzida pelas instituições de controle social, em especial a prisão: “al provocar dolor en seres humanos – ya sea mediante métodos crudos como la flagelación o en formas más elaboradas como la descarga eléctrica –, siempre se percibe la evidencia inmediata del sufrimiento, y la brutalidad implícita es inevitable. La mueca del dolor o el grito de agonía anuncian el acto de violencia y lo hacen visible; mientras que la angustia mental y el deterioro paulatino de un reo son mucho más difíciles de observar y mas fáciles de olvidar. La diferencia crucial entre los castigos corporales prohibidos y otras formas punitivas – como el confinamiento –, que se usan de modo rutinario, no es un asunto de niveles intrínsecos de dolor y de brutalidad implicita; es una cuestión de la forma que adopta esa violencia y el grado en que perturba la sensibilidad publica”. (GARLAND, 1999, p. 284).↩︎

  6. Título original: Outsiders: studies of sociology of deviance (1973).↩︎

  7. Acerca da função que cumpre a figura do inimigo, esclarece Nils Christie: “Um inimigo doce e pacífico não é um bom inimigo. Mau e perigoso é o que o inimigo deve ser, e forte. Forte o suficiente para render boas honras e deferência ao herói que retorna para casa da guerra. Mas não tão forte que impeça o herói de retornar. O retrato do inimigo é um importante elemento na preparação para a guerra. [...] A percepção de outra pessoa como monstro, completamente desprovida de humanidade, facilita que se ignorem certas regras básicas sobre como se relacionar com outras pessoas, enquanto seres humanos. A noção de que monstros existem é perigosa para todos, mas especialmente para aquelas pessoas, entre nós, responsáveis pela tarefa de controlar o comportamento das outras pessoas” (CHRISTIE, 2011, p. 69, 149).↩︎

  8. Resgatando as perguntas antes formuladas, pois elas são interessantes para a continuidade da ideia: como e por que as políticas de punição transmitem significado? A quais públicos e que tipo de significado essa forma de violência se dirige e transmite? E por que o castigo e sua violência continuam sendo uma instituição social validada?↩︎

  9. Nesse sentido, Angela Davis (2018, p. 31) escreve, acerca do estereótipo moral de determinados segmentos sociais: “[vadio] qualquer um que fosse culpado de roubo, tivesse fugido de um emprego, estivesse bêbado, tivesse conduta ou proferisse discurso imoral, tivesse negligenciado o trabalho ou a família, tivesse usado dinheiro de maneira negligente e (...) todas as outras pessoas indolentes e desordeiras”.↩︎

  10. Com tradução ao português no Brasil intitulada Limites à Dor: o papel da punição na política criminal (2017).↩︎

  11. Obviamente que legítima defesa em uma acepção da técnica penal não se coaduna com a atuação do agente policial, mas sobretudo nas formas em que são encontrados os corpos resultantes dos conflitos: “na grande maioria das narrativas dos autos de resistência analisados, os corpos das vítimas são encontrados após o cessar do tiroteio. Interessante observar que, muitas vezes, há ferimentos na nunca e nas costas das vítimas. Mas isso não parece motivar a decisão do promotor de justiça que promove o arquivamento do inquérito policial” (ZACCONE, 2015, p. 166). Sendo nada além do que a justificativa do julgamento sumário realizado em defesa da sociedade e desde a cultura do delito e dos signos da penalidade.↩︎

  12. Saiba mais em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/02/04/projeto-de-lei-anticrime-veja-a-integra-da-proposta-de-sergio-moro.ghtml>.↩︎

  13. Saiba mais em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/02/04/projeto-de-lei-anticrime-veja-a-integra-da-proposta-de-sergio-moro.ghtml>.↩︎

  14. Volta-se essa abordagem especificamente para as medidas legislativas e de política criminal de Moro que diz respeito diretamente ao tema encarceramento, mas que se faz sem prejuízo de outros temas tão importantes quanto, tais como as mudanças na persecução criminal, que se pode denominar de a derradeira americanização do sistema penal brasileiro, prevendo maior recurso aos presídios de máxima segurança (tal qual as supermax norte-americanas) ou mesmo os instrumentos de flexibilização das regras processuais penais, como a barganha e os informantes “do bem”.↩︎