BUSCAR E EVITAR A AÇÃO POLICIAL: os dilemas operacionais dos policiais militares na execução do “serviço de rua” no Ceará

RESUMO

O presente artigo aborda as percepções sociais de policiais militares sobre a execução do mandato policial nas ruas. A ideia de “busca de ação” está conotada sob o desejo de “operar” na área manifestado por parte dos policiais na execução do patrulhamento. Essas percepções estão associadas ao grau de identificação com as rotinas de policiamento de rua por esse grupo profissional e influenciam o seu desempenho laboral e a construção de relações com a população. A abordagem metodológica é qualitativa utilizando técnicas como a observação direta do patrulhamento e entrevistas semiestruturadas do tipo episódicas com policiais militares. Tudo se passa como se nesta lógica de operacionalização policial estivesse em jogo um tipo de interação com a “área de operações” e as populações atendidas pelos policiais. Como contribuição para esse campo de estudos, o trabalho permite detalhar e analisar, a partir de relatos etnográficos, os contextos de execução do patrulhamento pela polícia e as dinâmicas de relacionamento entre polícia e população.

Palavras-Chaves: Práticas Policiais; Mandato Policial; Busca de Ação.

To take action or not? Operational Dilemmas of Police Patrol in Ceará, Brazil

ABSTRACT

The idea of “take action” is connoted under the desire to "operate" in the area manifested by the police in the execution of patrolling. These perceptions are associated with the degree of identification with the street policing routines by this professional group and influence their work performance and the construction of relationships with the population. The methodological approach is qualitative using techniques such as direct observation of patrolling and semi-structured interviews of the episodic type with policemen. Everything happens as if, in this logic of police operationalization, a type of interaction is at stake with the “ operational area” and the populations served by the policemen. As a contribution to this field of research, the work allows to detail and analyze, based on ethnographic reports, the contexts in which patrols are carried out by the police and the dynamics of the relationship between the police and the population.

Keywords: Police Practices; Police Mandate; Take Action.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa o desempenho do “mandato policial” nas ruas por policiais militares e seus impactos na construção de relações com a população das áreas atendidas por esses profissionais. Investe nos sentidos atribuídos pelos policiais ao grau de envolvimento com a profissão e suas implicações nas práticas policiais. Nesta construção, este artigo aponta aspectos fundamentais para compreensão da dimensão discricionária do fazer da polícia (BITTNER, 2003), revelando como as percepções dos policiais que estão na linha de frente de execução do patrulhamento afetam as interações sociais entre a polícia e a população.

No contexto da contínua evolução da violência urbana no Brasil nos últimos 20 anos, especialmente o crescimento dos índices de violência letal intencional no Nordeste, com destaque para o Estado do Ceará, questões como a alta taxa de violência policial no Brasil, o elevado grau de letalidade nas ações policiais e alto número vitimização de policiais militares (FBSP, 2019) podem ser citadas como aspectos que tornam a análise do funcionamento do trabalho policial uma dimensão central para compreender o fenômeno da segurança pública, especialmente considerando os aspectos das práticas policiais. Ainda merece destaque o aumento na sensação de insegurança por parte dos cidadãos relacionada diretamente com a falta de confiança da população brasileira nas instituições policiais, especialmente na polícia militar, cenário que também diz respeito ao Ceará. Os profissionais que atuam na linha de frente das formas de policiamento têm, além disso, sido desafiados por um ambiente de trabalho fortemente arriscado e insalubre, o que tem produzido sujeitos desmotivados e insatisfeitos com as condições da carreira policial.

A construção dos dados apresentados no trabalho foi possível mediante a interlocução contínua com policiais militares da cidade de Juazeiro do Norte, Ceará, no período compreendido entre março de 2011 e dezembro de 2013 que atuavam na Área X1. O trabalho de campo foi realizado a bordo da viatura do Programa de Policiamento Comunitário Ronda do Quarteirão2, durante a realização do patrulhamento ostensivo cotidiano junto a policiais militares em serviço. Deste modo, os materiais produzidos permitiram entender como construção cotidiana da agência policial é produzida pelas relações entre polícia e população. A abordagem do estudo, desse modo, concentrou-se em dados qualitativos registrados com base na observação direta, nas conversações e realização de entrevistas gravadas do tipo episódicas. Foram produzidas mais de 600(seiscentas) páginas de diários de campo descrevendo os aspectos do trabalho policial observados e registrando as conversações durante a pesquisa. Além disso, foram realizadas 6(seis) entrevistas em profundidade, com mais de 4 horas de duração, com seis policiais experientes da Área de Operações (AO) onde o estudo foi desenvolvido, totalizando quase 30(trinta horas) de gravação. Paralelamente, realizou-se a pesquisa hemeroteca em jornais locais e documentos oficiais sobre a instituição policial local.

Os dados da pesquisa em seu detalhamento e análise apontam como os recursos materiais disponíveis e os aspectos simbólicos presentes na cultura profissional de policiais militares incidem na execução do policiamento. Nessa direção, discute-se como as percepções sociais desses profissionais são uma chave para compreender como ocorre o policiamento nas periferias das cidades de médio porte, como é o caso da cidade de Juazeiro do Norte, Ceará, localizada na região Metropolitana do Cariri.

O artigo analisa como a ação ostensiva dos policiais militares durante o policiamento de rua é desempenhado a partir de determinados recursos materiais e simbólicos, adentrando aquilo que Muniz (1999) chamava de “manobra decisória” no mandato policial e sua dimensão discricionária (MUNIZ, SILVA, 2010). Os recursos disponíveis aos policiais e seu impacto nos modos de ação policial são uma chave de leitura para adentrar a execução da linha de frente do policiamento nas cidades brasileiras e revelam elementos fundamentais para a compreensão das relações desenvolvidas entre polícia e população.

No contexto do trabalho de campo, foram observadas situações de atendimento à população em que os policiais precisavam lidar com impasses e limitações que desencadeavam processos inventivos e reflexivos nas ações desempenhadas, descartando recursos tradicionais. Nessa trama, as dobras entre o legal e o ilegal, entre agir de forma “certa” ou “errada”, segundo as bússolas morais dos policiais, deslocavam-se do plano normativo-legal, para assumir um caráter circunstancial, envolvendo processos de accountability, no sentido atribuído por Scott e Lymann (2009). Os dados produzidos pela pesquisa fornecem elementos para fazer novas problematizações a respeito dos aspectos discricionários do trabalho policial, acrescentando essa dimensão circunstancial para os contextos de “aplicação da lei”, tendo como terreno o policiamento ostensivo executado em contextos locais.

Na discussão Bittner (2003, p. 256), o poder discricionário da polícia é pensado com base nos muitos fatores que influenciam quando a lei deve ser ou não aplicada pelos policiais. Um exemplo citado pelo autor é o modo como formas de classificação que tipificam as clientelas variam o repertório de ação policial de acordo com as circunstâncias da ocorrência ou a identidade dos suspeitos. Nos contextos observados pela pesquisa, os policiais lidam com termos do “jargão policial” para classificar a população, condicionando os moradores3 atendidos pelo serviço policial a diferentes estatutos morais que desencadeiam tratos relacionais diferentes.

Nessa perspectiva circunstancial, as percepções dos policiais flexibilizam a execução da legislação criminal com base em operações simbólicas que atribuem estatutos morais para a população. Tudo se passa como se as leis “aplicadas” pelos policiais estivessem condicionadas à permanente incerteza em razão dessa característica observada pela pesquisa. Esse caráter, por assim dizer “situacional” no sentido de Goffman (1993), dos encontros entre policiais e moradores, tendo como pano de fundo a gestão do atendimento das demandas da população e a execução do policiamento ostensivo, passa por combinações probabilísticas da ação e da omissão desses profissionais na condução das suas rotinas.

As formas de ação e omissão, nessa leitura, estão profundamente associadas a elementos simbólicos expressados pelos policiais que envolvem dimensões como a motivação, a identificação com o serviço policial e a intensidade empregada no desempenho laboral. Para o artigo, a questão central é pensar como certos significados compartilhados por esses profissionais afetam diretamente a operacionalização do trabalho policial e, por consequência, a relação construída com a população atendida nesses territórios.

O trabalho analisa esses processos a partir de categorias nativas de policiais militares, sendo a principal a ideia de “policial operacional”. Encarnadas nas percepções e nas práticas de policiais militares, essa e outras categorias nativas são trazidas à luz das observações da pesquisa, dos relatos e das memórias dos interlocutores. No desenvolvimento do artigo, são detalhadas e analisadas as formas de interação que envolvem a abordagem policial, especial atenção é dada às formas simbólicas utilizadas para elaboração da suspeita sobre situações, objetos, pessoas e interações do ponto de vista dos policiais e seu engajamento ou evitação nesses procedimentos.

2. A INTENSIDADE DAS AÇÕES POLICIAIS: A “busca de ação” como termômetro das relações de polícia e população

No sentido atribuído aqui, “buscar ação” significa o envolvimento e motivação do policial para “operar na área”. Durante o trabalho de campo, parte significativa do policiais alimentava a crença de que quanto mais estão envolvidos com operações, sejam abordagens policiais, atendimento a ocorrências, interações com moradores, prestação de apoio a outras áreas ou modalidades de patrulhamento, o serviço em que estão “escalados” tende a terminar mais rapidamente e ser mais prazeroso. Trata-se, segundo o soldado Dário (SD), de um processo semelhante a “teoria da relatividade”, de acordo com sua explicação, o tempo é relativizado na medida em que os policiais estão engajados na execução do serviço. Por oposição lógica, quanto mais os policiais evitam o trabalho, realizando pausas para descanso ou para o produzir o “efeito de presença”, quando feitas com o intuito de procrastinar o serviço, afetam a percepção sobre o andar do relógio, prolongando o tempo, tornando o serviço entediante.

Nas expressividades usadas pelos policiais sobre a profissão, revelam-se metáforas que ajudam a pensar o dilema entre “buscar” e “evitar” a ação policial. Nas categorizações simbólicas apreendidas no trabalho de campo, aparecem as tipologias do “policial operacional” e o “policial comunitário”. Ambas desempenham a ação policial de modo diferente. O primeiro tipo de policial cria o chamado “teatro de operações”4 procurando situações suspeitas para fazer abordagens, prevenir crimes, repassar informações às outras viaturas para surpreender criminosos etc.; o segundo, se prestaria a conversar com os moradores sobre seus problemas, durante o atendimento da ocorrência, conversar com as pessoas envolvidas, distribuir seus contatos pessoais na comunidade, ser prestativo, participar dos eventos na comunidade etc. Alguns policiais podem ser classificados como sendo policiais operacionais, outros como sendo comunitários, por um ou mais policiais, sejam iguais, subordinados ou superiores. Essas categorizações podem ser expressas em algumas ocasiões como elogio. O mesmo policial pode agregar características de um policial operacional de rua como, também, de um policial comunitário. Podem ser pensadas com sendo figuras de alteridade complementares nos usos simbólicos do universo policial acessado durante o trabalho de campo.

Durante a interação com policiais militares, parte significativa mencionou a Área X como lugar estratégico para desempenho do trabalho policial, pelo alto grau de demandas e interpelações que emergem durante o serviço. Aqueles identificados e engajados com o serviço de rua, ao serem escalados nessa área, costumavam concentrar o patrulhamento no bairro Vermelho, antevendo ocorrências policiais e processos de construção da suspeita sobre moradores convertidos em abordagem e revista policial5. Nas estatísticas locais, esse bairro concentra a maioria das ocorrências da área, produzindo a identificação do lugar como ponto preferencial do “policial operacional”.

Ainda sobre os aspectos simbólicos ligados a identificação dos policiais com sua profissão, há outras expressividades como “honrar a farda”, “dar o sangue pela corporação” que atribuem qualidades morais aos agentes. Por outro lado, há aqueles policiais que estão utilizando a profissão como trampolim para outras carreiras e planejam sair da instituição tão logo seja possível, estando como referência oposta das expressividades citadas. Especificamente sobre o tipo de policial identificado com o serviço, existem outros detalhes que o apresentam melhor como um marcador simbólico. Trata-se de uma narrativa compartilhada entre os policiais que descrevem este sujeito como aquele que vive para a polícia, ajuda a população e, justamente por essa intensidade, acaba se envolvendo em práticas de uso excessivo da força, mortes, tortura, “arrastando um monte de processos nas costas ou até morrendo” (dado verbal obtido do trabalho de campo em julho de 2012 através do policial Bem). Esse tipo de policial evoca certos valores heroicos e de abnegação que o expõe diante de subordinados, iguais e superiores hierárquicos na profissão. No relato do policial apresentado a seguir, aparecem algumas dessas características:

Cara, um policial operacional é aquele que atende inúmeros pré-requisitos, entendeu? Ele atenta, ele tá sempre querendo aprender algo novo, entendeu? Ele sabe que tá em situação sempre de aprendizagem, ele tá se descobrindo... ele tá aprendendo algo... e tem aquela vontade, entendeu? O policial operacional ele se define através de sua atuação como: ele gosta do que tá fazendo, do que tá é... ele começa a ver que ele tá adquirindo uma série de experiências, entendeu? Práticas, entendeu? E teóricas também, né? E ele começa a ver a imagem no espelho, né? Na medida em que você olha no espelho, você vê um policial, entendeu? Aí operacional o que é, é aquele que atua, é aquele que ele é proativo, entendeu? Ele procura adquirir conhecimento, ele não se omite, entendeu? Ele é companheiro. Ele puxa. Ele sua. Ele identifica a problemática naquela área. Ele já começa a levantar os retratos falados da área. Ele já sabe com a quem ele pode ficar com abordagem, entendeu? Ele mesmo que nunca tenha visto o elemento, ele já abarca de... de outros conhecimentos, entendeu? Ou seja, ele tá aberto para aprender, entendeu? Ele tá aberto... O policial que tá aberto para aprender, ele gosta do que tá fazendo, entendeu? Ele sabe que se depara... Ele por esse gosto ele pode tá mais... é... posso dizer o termo... mais, é... corre o... termo risco, né? Esqueci o termo apropriado, mas de... não usa esse se enrolar, né? Mas onde ele se depara com uma ocorrência até mais críticas. (Dado verbal, entrevista gravada com o policial Ben em julho de 2012, grifos do autor)

Nos contextos da execução do patrulhamento, a maior parte das equipes policiais escaladas mesclam policiais classificados como “matadores” ou “moitas”. Essas categorias têm sido encontradas em trabalhos de pesquisa com policiais nos últimos quinze anos no Ceará. No trabalho de Sá (2002), a qualidade de policial matador refere-se aos policiais que além de “operacionais” no policiamento de rua, evocam códigos guerreiros como a honra e a abnegação no desempenho de atividades fins na organização policial, enquanto os “moitas” seriam aqueles que se reservam ao trabalho de meio e burocrático, muitas vezes, galgando relações de apadrinhamento para ascender na instituição, embora não imprimam tanta intensidade na profissão, possuem ambições com a carreira policial.

Certa vez, durante o trabalho de campo conversava com o policial soldado Garcia quando ele me perguntou se eu conhecia a distinção entre “matadores” e “moitas”, utilizadas pelos policiais na corporação. Respondi já ter me deparado com a questão, mas não saber definir a diferença. Ele me descreveu o “matador” como aquele disposto a ir até a ocorrência de outra área e que realiza abordagens a suspeitos sem esperar os moradores denunciarem, “aquele que vai com gosto de gás para a rua”, enfatizou. Enquanto conversávamos, um outro policial aproximou-se, e Garcia declarou, “aqui está um matador!”, imediatamente o policial riu-se e disse não “matar ninguém” aceitando o adjetivo em seguida. Ele continuou seu raciocínio descrevendo “o moita” como aquele que “evitava ao máximo as ocorrências e abordagens” questionando o seu dever profissional e adiando a ação policial; Garcia completou a firmando que o policial moita “se escondia nas costas do matador”.

Essas categorizações simbólicas trazidas montam camada a camada dimensões importantes do self policial6. Assim, nos contextos práticos de desempenho da atividade policial, podem haver equipes com diferentes graus de identificação e em diferentes graus de intensidade. Policiais matadores, moitas, operacionais, comunitários e cruzetas são categorias nativas que apresentam diferentes passagens entre as experiências singulares e as regularidades observadas que ganham significado a partir dessas categorizações simbólicas.

É importante considerar que a identificação dos policiais com o seu serviço e a intensidade impressa no desempenho do patrulhamento acarretam implicações nas maneiras de fazer da polícia e na quantidade e na qualidade de suas interações e relações com a população da área onde operam. A seguir, tratamos como essas dimensões abordadas geram implicações nas relações da polícia e da população no contexto do patrulhamento ostensivo.

2.1. Abordagens policiais: formas especiais de encontro e interação de polícia e população

O início desta seção retoma o detalhamento das rotinas de policiamento da Área X registrado pela pesquisa nos diários de campo.

Alguns instantes após o início do serviço do turno C7, a viatura, conduzida pelo policial soldado Jáder, seguia as direções apontadas pelo policial cabo Lauro, pelas ruas do bairro Vermelho. No deslocamento da viatura durante o patrulhamento pelas ruas do bairro, deparamo-nos como uma mulher negra, aparentando mais de 40 anos de idade, deitada sobre a calçada e com o corpo protegido por um cobertor branco. Desconfiados da moradora, um dos policiais comentou:

- Se passarmos aqui às 3h, essa mulher vai estar aí, só repassando drogas (informação verbal, trabalho de campo em agosto de 2012).

Contrariado com a afirmação, questionei a equipe de policiais se eles poderiam abordar e proceder a revista corporal na mulher ou se precisariam recorrer a uma policial mulher em serviço. Lauro respondeu que mesmo a equipe sendo formada só por homens, eles próprios poderiam proceder a abordagem e revista. Jáder complementou afirmando que nessa situação deveriam apenas evitar constranger a suspeita. Lauro explicou mais detalhadamente. Segundo ele, tudo se resumia à fundada suspeita, caso a suspeita tivesse muitos indícios, eles poderiam revistar inclusive a intimidade corporal da mulher.

Seguimos de lá para o bairro Laranja. O local estava completamente desértico. Depois de circular por alguns minutos, ouvi a primeira passagem de carro, ficando cada vez mais raras com o andar do relógio. Conforme o andamento do patrulhamento, um carro modelo Corola que realizou a ultrapassagem da viatura, chamou atenção do cabo. Apesar da insistência de Jáder, afirmando conhecer o carro e seu proprietário, ele insistiu na perseguição, mesmo depois de perceber tratar-se de duas mulheres, ele prosseguiu.

Quando o carro perseguido chegou ao seu destino final, uma residência no Bairro laranja, os policiais estacionaram logo atrás. Lauro desembarcou do carro, se aproximou das mulheres e foi seguido por Jáder. Os policiais cumprimentaram as moças, eram brancas, estavam bem vestidas, tal qual, voltassem de uma happy hour. O policial solicitou o documento de identidade e o licenciamento do veículo em posse das mulheres e fez a checagem das informações por meio do rádio. Nada de “errado” ou “inadequado” foi encontrado. Os policiais se despediram e entraram na viatura. O cabo justificou a ação por estar “bizurado”8 a respeito de um carro do mesmo modelo e cor. Segundo ele, fora alertado pelo superior, a respeito de um carro, com essas características, alvo de perseguição veicular que fracassou, o que, supostamente, poderia indicar alguma irregularidade do veículo ou do condutor.

Nas rotinas do serviço de rua, a construção da suspeita é atravessada pelas informações obtidas, mediante “o teatro de operações”9. Os “bizus”, repassados e incorporados, desempenham papel central no mapeamento de códigos, transformados em informações sobre objetos, pessoas e lugares suspeitos. As associações entre crime e mulheres aparecem, em Bretas (1997), como uma relação importante com as questões da ordem social; as associações entre crime e condição feminina das moradoras, em seu trabalho, apresentam decisivamente as relações das mulheres com a polícia nas primeiras décadas do século XX marcadas pelo traço social do racismo e por casos envolvendo a proteção ou perda da “honra”. No histórico recente de incriminações de mulheres no Ceará, tem destaque o controle do mercado de drogas ilícitas10, fato que tem provocado novas conjecturas de envolvimento criminal, redimensionando as mulheres também como prováveis suspeitas de crimes relacionados ao mercado de drogas ilícitas.

Nos estudos de Ramos e Musumeci (2005), estereótipos raciais e de classe são comumente absorvidos na experiência policial, utilizando estigmas sociais para reproduzir padrões de suspeita, tornando esses filtros sociais o motor principal das rotinas de abordagem policial. Essas informações acabam se materializando no contexto de construção de suspeitas sobre moradores. Nas rotinas observadas durante a pesquisa, esses estigmas padrões podem ser diluídos, conforme ocorre a obtenção de informações mais precisas sobre as dinâmicas criminais do território e dos seus sujeitos. No caso relatado anteriormente, o modelo de carro, usado no processo de construção da suspeita é objeto de consumo de camadas mais abastadas da população, contrariando as características, mais comumente, associadas à construção da suspeita11.

Risso (2018) argumenta que enquanto política pública, a abordagem policial é amplamente entendida no seio dessas organizações como uma estratégia voltada para lidar com os “bandidos”. Decorre disso o efeito indireto dessa política que á estigmatização de pessoas. Os múltiplos sentidos dado a abordagem na vida social conflitam com o discurso oficial de que a abordagem é uma estratégia para “proteção da sociedade”. Na prática essa política é adotada mais com base em crenças do que em evidências de seu sucesso12. Na visão da autora, a abordagem policial constitui uma alteração da performance do exercício da autoridade policial, saindo da perspectiva indireta, para a direta. A abordagem policial é implementada de forma diferente como base no grau de envolvimento entra a polícia e a comunidade, sobretudo pelo grau de anonimato desconfiança que existe entra a polícia e seu público e volume de interações entre polícia e suas clientelas.

De acordo com seus achados de pesquisa, há duas grandes justificativas para a realização de abordagens, a primeira é a identificação de delitos criminais, por meio de flagrantes e a segunda, seria o efeito de dissuasão, supostamente prevenindo que crimes aconteçam. Trata-se de uma concepção muito problemática até mesmo para avaliar o grau de efetividade desse tipo de política na redução dos índices de criminalidade, uma vez que não há uma visão clara e bem definida de seus objetivos13.

Durante o trabalho de campo, os “bizus” que circulavam na network dos policiais da cidade influenciavam a construção da suspeita. A preferência de abordagem policial contra duplas de homens jovens deslocando-se em motocicletas, associando essas características com práticas de assalto ou comércio de drogas ilícitas, pode ser citada nesse sentido. Conforme essa suspeita ganhasse maior detalhamento, o processo de construção torna-se mais refinado e eficiente. Iniciais de placas, cores e modelos de veículos, capacetes, tatuagens, altura, corte de cabelo, traços raciais podem ser citados como exemplo. Certas informações são alvo de maior restrição na network dos “policiais de rua”, pois envolvem sistemas de competição, suspeitas de porte ilegal de armas de fogo14 são enquadradas nesse tipo de restrição.

A abordagem policial envolve um tipo de interação social com a população, na maioria dos casos, não implicada pelo contexto criminal, mas pelo contexto da “fundada suspeita”.

As abordagens policiais nas ruas da cidade configuram situações peculiares de encontro entre polícia e população, em princípio, não relacionadas ao contexto criminal (diferentemente, por exemplo, do registro de uma ocorrência na delegacia, do pedido de intervenção da polícia num conflito em curso, ou da experiência de ser detido sob alguma acusação específica). Noutras palavras, constituem momentos em que as pessoas têm contato direto com a polícia, na qualidade de cidadãos comuns – nem delinquentes, nem vítimas - e situações que, ao menos em tese, podem ocorrer, cotidianamente, a todo(a) e qualquer cidadão(ã). (RAMOS; MUSUMECI, 2005 p, 57.)

A abordagem, apesar de ser uma interação a que a maioria dos moradores esteja suscetível, é esquadrinhada por processos de seletividade e refinamento. Os policiais não podem, simplesmente, revistar todos os moradores com os quais se encontram. O intuito do procedimento é objetivar um flagrante, com base em processos simbólicos de construção da suspeita que afetam a percepção policial e funcionam como gatilhos de ação. Quando lida com os significados da abordagem policial, na prática da polícia, o policial soldado Ben traz à cena as ações da polícia, consideradas “operacionais”. Nesse relato, ele apresenta o cerco a suspeitos e realização do flagrante de crime, após a abordagem policial.

A gente estava operando na viatura de outra área... No nosso horário de almoço, e estávamos almoçando, e de repente a gente recebeu a ocorrência de um indivíduo que estaria conduzindo uma arma de fogo nas mediações próximas, à distância de dois quarteirões de onde a gente estava almoçando. Então, de imediato a gente deixou, a gente nem almoçou, embarcamos na viatura e fomos identificar. Então, bem ali, naquele começo, para você notar como é o serviço. Então como? Recebi um chamado, uma denúncia. Um elemento de camisa vermelha, trajando camisa vermelha, de short claro, com uma bolsa... então, quando a gente se deslocou a gente se deparou com um elemento com o formato de denúncia, fizemos a abordagem e daí começamos a identificar. Fomos com cautela, entendeu? Eu estava ali com dois parceiros já experientes, já acostumados a tirar serviços juntos [...] Então, foi bastante, foi uma abordagem bastante operacional mesmo, entendeu? Ainda observou com cautela, porque ele estava de frente a uma casa e quando foi feita a abordagem e encontramos, era uma arma calibre 22. (Dado verbal, entrevista gravada com soldado Ben em junho de 2012, grifos do autor)

O horário de almoço constitui-se de um intervalo de folga para os policiais da área. No trabalho de campo durante o “rancho”, observava os policiais sentados à mesa para fazerem sua refeição, ligando o rádio de comunicação móvel, escutando a frequência. Era comum ouvir informações de outras áreas, avisos de placas suspeitas ou de veículos roubados etc. Casos como esse, podem ocorrer, mas são raros.

Confirmar a suspeita do morador, baseado nas informações da denúncia, cercando o suspeito com cautela, retirando, uma a uma, suas possibilidades de fuga ao escalarem as armas em sua direção, abordando-o, em seguida. Depois de procedida a revista corporal e identificado o crime, a voz de prisão é emitida. Ocasiões, como a descrita, são experiências significativas para a carreira moral dos PM. Ações como essas produzem confirmações do desempenho “operacional” assumido, e adjetivado pelos companheiros de profissão.

Contudo, na maioria das vezes, as buscas pessoais, realizadas pela polícia não necessariamente identificam objetos ilícitos ou confirmam a fundada suspeita. Abordar “pessoas comuns”, no sentido de não tratar, diretamente, de uma ocorrência de crime, ou efetuação da prisão a pedido da justiça, é a regularidade deste tipo de ação. Esta é uma forma de interação, em particular, onde o poder de polícia se manifesta, revelando, em alguns casos, controvérsias.

No exercício do mandato policial, as decisões por abordagem policial podem ocorrer por iniciativa deliberada de um ou de mais policiais. Após a tomada de decisão, inicia-se o “ritual de interação”, no sentido adotado por Goffman (2011), envolvendo a elaboração de fachadas e adoção de linhas específicas de interação, seja no sentido de manifestar o desempenho esperado da profissão policial, seja no sentido de elaborar atributos sociais sobre pessoas consideradas suspeitas de cometer algum crime. No detalhamento dessas situações, o suspeito fica sob o alvo das armas apontadas pelos policiais. Na percepção do policial, o suspeito deve ser tratado de forma “padrão”, uma expressividade policial que envolve o emprego da energia como se o suspeito fosse reagir ou estivesse cometendo o suposto delito. Na visão do policial, o alvo pode desempenhar uma resposta agressiva e reagir de forma violenta, caso esteja armado.

Na abordagem, o corpo do suspeito é posicionado de costas para os policiais, que, por sua vez, dividem a função de revistar e dar cobertura. Após a busca corporal, os documentos do morador são solicitados pra uma consulta na central de informações, através de modulação por rádio transmissor.

Algumas vezes, observei a precipitação de empurrões, tapas e socos desferidos pelos policiais nesse tipo de circunstância. Esses acontecimentos emergiram no decorrer da interação da abordagem, geralmente, por conta de condutas do morador percebidas pelos PM como “desacato” e “desobediência.”15

Durante uma dessas abordagens, um jovem branco que estava em situação de “liberdade provisória” e “respondia” criminalmente por assaltos cometidos, sofreu um forte tapa na cabeça e não demonstrou reação. Segundo o policial agressor, o golpe desferido ocorreu pelo fato de o rapaz continuar fumando o cigarro após receber a ordem “ficar parado com as mãos na cabeça e encostar na parede”. Após o tapa, o cigarro foi descartado e os policiais continuaram o interrogatório.

Em outro caso, um homem negro de aproximadamente 30 anos foi selecionado para abordagem quando os policiais procuravam um suspeito de assaltos naquela região. A seleção ocorreu em razão de coincidências entre as informações repassadas pelo rádio que descrevia “um assaltante deslocando-se de bicicleta de cor vermelha utilizando camisa listrada”. Por conta disso, ele e seu filho foram abordados e revistados. Conforme se descobriu não tratar do suspeito descrito, a abordagem estancou. O homem, insatisfeito questionou:

— A gente não pode ficar mais na calçada conversando não? Vão atrás dos vagabundos...

A fala do morador despertou a ira de um dos PM. Ele empurrou o morador contra a parede perguntando-o: “Vai querer inchar mesmo é?”. Após o empurrão, a interação se encerrou e os policiais voltaram à viatura. O policial agressor mostrou-se, depois, arrependido de sua precipitação. Disse ficar irritado com a atitude do morador, mas ao notar suas mãos repletas de calos e ainda sujas de massa de construção, percebeu se tratar de um trabalhador e interrompeu a agressão. A associação entre a condição de “trabalhador” e de “cidadão” envolvem aspectos simbólicos da percepção policial. Trata-se de uma operação simbólica que classifica as clientelas dos policiais na execução do seu mandato. No caso em tela, a classificação suspendeu o uso abusivo da força pelos policiais.

Há casos de abordagem em que o suspeito ri da situação e o policial interpreta a linha de interação como um desrespeito à sua posição. Nesse tipo de interação, o policial Dário costuma desferir tapas na face “para o gaiato se orientar” e não desdenhar da polícia. Essa conduta é justificada pelo policial como uma forma de tratamento de acordo com o merecimento. “Tratar como merecer”, nesses usos sociais dos policiais envolve uma relação de poder e de interação violenta naturalizada pelo policial, cujo o extremo é o uso da tortura como técnica de construção da autoridade policial, na percepção desses atores.

Na percepção dos policiais, as interações de abordagem carregam um forte caráter conflituoso, independentemente do tipo de pessoa com que a polícia interage, tudo se passa como se o grau de deferência e aceitação do trabalho policial pelo morador fosse o termômetro desse tipo de interação social.

na abordagem, eu prefiro abordar um cara que é bandido, que ele não tenha problema em dizer que é bandido e que já foi preso, do que abordar um cara que se diz “cidadão”. Porque a pessoa mais chata de abordar é “o cidadão”, é o cara que para e diz: “eu sou um cidadão”. (SD Dário, entrevista realizada em 2012, grifos do autor).

Certos moradores associados ao estatuto moral autor reivindicado de “cidadão de bem”, podem contestar em alguns casos as ações tomadas por policiais, ao questionar e orientar o que e como deveria ser realizado o trabalho policial. Presenciei nessas interações a visível irritação dos policiais ao ouvirem reclamações dos indivíduos selecionados para abordagem:

O pior lugar pra você abordar alguém é perto da casa dele ou, então, pessoas da família dele vendo, porque essa criatura chama logo a mãe: “mããaããeee”, e eu não estou brincando, pode ser o matador que for, o traficante que for, se alguém tiver por perto ele chama logo a mãe. “Mãe, não sei o que...” aí vem mãe, vem tia, vem cachorro latindo, é horrível. A gente parou certo dia na rua tal no Bairro vermelho, e foi abordar os três indivíduos que estavam vadiando na calçada, aí paramos, achamos suspeito e decidimos abordar, durante a abordagem o pessoal estava distante uns quinze metros dele, todo mundo já se levantou: “é meu filho, é meu filho”, quando os policiais estão fazendo a abordagem, sempre fica alguém na cobertura dele, isto é, quando a composição está em três, um faz a cobertura de quem está fazendo a busca, e o terceiro faz a cobertura de quem faz a cobertura de quem faz a busca. Eu no caso era o terceiro, o pessoal vindo pra cima de mim e eu dizendo: “Afasta! Afasta! Fica aí! ” Usando dos meios que a gente tem, usando do uso progressivo da força, no caso a intimidação, também, tem arma, aponta arma e sai daqui, porque a gente não sabe se o cara tá vindo armado quem são as pessoas, o que vai sair dali. Então você não pode achar que no momento da abordagem não vai acontecer nada, porque pode acontecer... [...](Soldado Dário, entrevista realizada em 2012, grifos do autor)

Nas justificativas elaboradas pelos policiais, está a crença de estarem sob alto risco de morte no desempenho de suas funções, para adoção dessa linha de interação. A ocorrência da falha profissional na percepção desses sujeitos pode ser crucial para a continuidade de sua vida e de sua carreira. As práticas de abordagem, ampliam essa sensação.

Na abordagem a gente não pode errar, porque só temos uma vida. Se errar não dá pra resetar e jogar novamente. [...] E tem gente que não deixa você fazer seu trabalho, que atrapalha. Tem tantas formas de atrapalhar nosso trabalho... se a gente está numa abordagem, querem chegar perto, querem passar na linha imaginária entre a ponta da minha arma e o alvo, que é o cara que pode reagir. As pessoas têm o prazer, mórbido, de passar entre o policial e a pessoa abordada. Tanto que, às vezes, por ter uma pessoa muito perto, geralmente homem, se aproxima, também, muito curioso, a gente pede para sair e ele não sai, vai pra parede também. Quer ser abordado? Então vá pra parede também. As pessoas não conseguem respeitar seu espaço de trabalho. Se você está escrevendo um texto, está no computador, você não vai chegar no cangote da pessoa olhar o que ela está lendo, o que ele está escrevendo. Entendeu? Só que as pessoas querem fazer isso com a gente, é difícil. (Idem, ibidem)

Durante o trabalho de campo, presenciei encontros entre polícia e população em diferentes situações, interações com sujeitos ligados ou não às práticas criminosas, segundo classificações dos policiais. A população do bairro Vermelho era lida pelos policiais da cidade como profundamente marcada pela presença direta e indireta com práticas criminosas. O morador, sobretudo os jovens, é visto como um potencial “envolvido” ou familiar ou amigo de algum outro morador ligado às práticas criminosas. Essas representações dos policiais sobre esse território e sua população em particular afeta o tipo de relacionamento que a polícia constrói.

2.2. Processos de construção da suspeita

Iniciarei esta seção reproduzindo um trecho extraído do diário de campo:

“Durante o translado para o atendimento de ocorrência de violência doméstica havia cinco jovens, concentrados em torno de um carro, com motos ao lado, que olharam desconfiados a passagem da viatura. O comandante da equipe de policiais, o SD Baptista comentou, “aí uma situação boa de abordagem”, O motorista Jáder perguntou se ele queria abordá-los, eles hesitaram e a viatura seguiu em direção à ocorrência” (Nota de campo, junho de 2012)

Tudo se passa como se, nas rotinas de patrulhamento da cidade, construir a suspeita sobre alguém envolvesse reunir indícios para elaboração de um processo de acusação informal com maior brevidade possível. Desde a formação inicial do policial, esse aspecto do processo de construção da suspeita é fortemente demandado. Em territórios como a Área X, constituída de bairros periféricos estigmatizados como violentos a quantidade de abordagens desempenhadas é significativa16.

A suspeita, ela se funda, infelizmente, no estereótipo, aquela pessoa de tatuagem, na maioria das vezes, até por que, embora nem todos tenham envolvimento, mas grande parte tem. Não sei se, felizmente ou infelizmente, o local que ele está, às vezes, é suspeito. Por exemplo, no bairro Vermelho ali tem trechos que a gente sabe que ocorre o tráfico de drogas, uma pessoa que tá naquele local ali é suspeito, ou como usuário ou como traficante. A suspeita se dá pelo local, às vezes, pela vestimenta, não assim, que uma pessoa que tá com camisa longa e calça folgada vai ser sempre suspeita, mas com base em informações, por exemplo, ocorreu um assalto e um indivíduo com essas características aí, possivelmente, tá armado, né? Ou que, às vezes de histórico. Houve um tempo que ocorreu vários assaltos de um indivíduo de capacete rosa, há umas três semanas. Quer dizer, não é a pessoa, é o conjunto de informações de ocorrências anteriores, que indivíduos com aquelas características cometeram o crime. (Dado verbal, SD Garcia, entrevista realizada em julho de 2012, grifos do autor)

Fundar a suspeita é sempre uma relação de inferência, com base na possibilidade de “envolvimento com o crime” do morador suspeito. São formas diferentes de realizar o “teatro de operações”, baseado no conhecimento do policial da área. Seja através da leitura corporal do morador (de acordo com o imaginário, a intuição e experiência acumuladas), através das informações repassadas nos meios de comunicação disponíveis (seja pelo rádio, pela descrição dada por algum morador), ou, ainda, combinando essas possibilidades.

A corporeidade é adicionada de outros elementos, à medida em que diz respeito às tipificações diferenciadas de tipologias criminais. Os casos relacionados aos crimes envolvendo tráfico de drogas e porte de armas de fogo ou brancas são mais estritamente esquadrinhados com base na construção policial de um corpo suspeito, absorvendo fortemente estereótipos sociais e o racismo, como observado em estudos anteriores (RAMOS, MUSUMECI, 2005).

A fundada suspeita, ela principia pela denúncia, né? Mas pode acontecer sem ela, com apenas o trabalho de patrulhamento, quando a gente identifica o indivíduo, ela vem de várias formas. Por exemplo, a expressão de quase 90% do ser humano é a expressão corporal, né? Então, a partir do momento que você nota alguém, apressa o passo, entendeu? Ela tenta se evadir do local ou de repente joga algo, tenta esconder algo que pode ser uma droga. Então assim é fundamentada uma suspeita. Outro exemplo também de indivíduo na moto, né? Utilização de viseiras, né? A questão de placas de motos alteradas, tudo é uma soma. Só que a gente tem uma coisa, tem que pensar rápido, porque de repente um elemento desse que está sob a fundamentada suspeita ele tenta ludibriar a composição, ele só vai culminar a fundamentar a suspeita quando ele percebe que ele vai ser abordado. Então isso é rotineiro. Quando a viatura percebe um elemento que ele está cometendo assalto na área, ele está armado, mas ele não demonstra, mas a partir do momento que ele vai sentir que vai ser abordado ai ele já... ele se denúncia. Empreendendo fuga, dispensando uma arma. Então é mais por isso aí. Esse tema aí depende mais da perspicácia do policial, entendeu? O policial olhar bem o semblante do olho dele assim e vê se denuncia alguma coisa. Aí ele vai somando, é aquela coisa, ele tem que pensar rápido e aí aborda? Aí tem a questão do elemento surpresa. São inúmeras coisas que influenciam não só a fundamentar a suspeita, mas a própria relação da prática da abordagem policial, da cautela na abordagem, da composição. São dois, são três homens, como eles vão se comportar no momento da abordagem, então são inúmeras coisas. Mas o termo perspicácia é o que é isso aí, o que vai determinar é isso aí. Tem policial que ele não vai conseguir identificar uma fundamentada suspeita, entendeu? Mas vai ter aquele outro policial que vai identificar inúmeras, entendeu? Aí em cima disso ele vai querer fazer a abordagem. (Dado verbal, entrevista realizada em julho de 2012 com o Soldado Ben, grifos do autor)

Existem fortes relações entre o conhecimento tradicional da polícia e o conhecimento cotidiano construído pelos policiais nas ruas. Neste sentido, os arquivos policiais constituídos enquanto saber-poder sobre regularidades criminais serve de fundamentação para a construção de um perfil social do criminoso. Esse perfil está profundamente eivado do recorte racial e de categorias morais e é utilizado como critério de seleção na execução do mandato policial. O relato do SD Ben prossegue, remontando as camadas simbólicas constituintes da fundação da suspeita que culminam no flagrante de práticas criminosas.

Estava com meu parceiro e a gente estava percorrendo as mediações da rua tal do bairro Vermelho. Então, nós já sabíamos que havia ali uma... Uma... Através de denúncia já é alguns elementos que ficavam naquela área ali, que eram traficantes e aí a gente andava nesse quarteirão já com toda a atenção. Aí a gente se deparou uma situação de se deparar com dois elementos em uma moto, dois elementos em uma moto, pararam, entendeu? E mais, uns dois elementos em conversação, e quando eles notaram que a viatura estava se aproximando, eles tentaram ligar a moto para sair do local, ou seja, já fundamentou alguma coisa ali. (Dado verbal, entrevista realizada em julho de 2012 com o soldado Bem, grifos do autor)

A precipitação corporal dos suspeitos converteu-se na leitura de uma “tentativa de fuga” na percepção dos PM, sendo o suficiente disparador simbólico da ordem de parada.

Por que eles queriam sair dali quando a viatura estava chegando? E, também, que a gente já tinha informações, que aquela área já tinha problemáticas de elementos que andavam suspeitos, né? Então, em cima disso a gente resolveu dar voz de parada na moto com dois elementos e os dois que estavam conversando com os mesmos. Aí, a partir daí, a gente identificou mais alguns adolescentes na calçada e uns dentro de casa, porque a porta estava aberta, né? A abordagem foi feita em casa, mas de frente a calçada eram os mesmos que estavam naquela residência, avistamos os mesmos entre eles, as mesmas pessoas. Então, eu acho, assim, na faixa de uns cinco elementos na parede já eu questionei os mesmos a saírem da residência para a realização da abordagem, haja vista, uma certa suspeita, porque eles estavam juntos, né? Então fiz isso e ficamos com sete elementos na parede. (Dado verbal, entrevista realizada em julho de 2012 com o soldado Bem, grifos do autor)

Ao construir a seleção dos “alvos” para abordagem, por estarem em desvantagem numérica, com apenas dois policiais, renderam os suspeitos e pediram reforço de outra viatura. A interação tornou-se ocorrência policial na medida em que os agentes colecionaram indícios e aumentaram a percepção da complexidade criminal da situação.

E tudo vai se somando uma série de fatores, como? Na hora de entrar na sala, eu identifiquei que tinha bebidas e alguns resquícios de entorpecentes, de cocaína, e algumas viseiras, fumês sobre o chão da sala, né? Então, vários elementos numa casa, entorpecentes e viseiras fumês? Então, no mínimo, eles estão fazendo, deviam está fazendo assalto e estavam gastando o dinheiro do assalto dentro daquela residência, né? Então, você já começa a fundamentar, né? Então, o que foi que eu fiz? A gente adentrou até o quarto e identificamos mais um elemento. Ou seja, tinha um elemento que estava dentro do quarto, que estava armado que poderia agir contra a composição, entendeu? Você faz todo um levantamento. A casa, ela não tinha saída pelos fundos, entendeu? Ou seja, não podia saia pela frente. Então, ele ficou ali perto, naquele quarto. Mas, como a gente teve a decisão de adentrar a casa, identificou ele. Foi para fora da residência e feita a busca também. Aí, ao realizar a varredura dentro da casa identifiquei uma arma, um holsters 38, inclusive, com a numeração raspada. Então, são justamente essas coisas que falo “direitos dos manos” e tudo. Imagine só um elemento desse. Na lei, uma numeração de arma raspada não cabe fiança, mas imagina aí, eu passar em menos de uma semana identificar o mesmo elemento, entendeu? Dado verbal, entrevista realizada em julho de 2012 com o soldado Bem, grifos do autor)

No relato, há um repertório policial utilizado para organizar o sentido do que é encontrado na medida em que, os policiais estão se deslocando num suposto “campo inimigo”. Os policiais utilizam certas expressões para descreverem o que eles entendem como ineficiência do sistema de justiça criminal em punir os crimes flagrados por operações como a descrita. Essas percepções são, ao mesmo tempo, um elemento de frustração pessoal com a atividade laboral, por um lado, e a justificativa moral para o uso de punições ilegais como forma de compensar essa ineficácia. Nessas narrativas emergem, ainda, as possibilidades imaginativas do que poderia “dar errado”, causando acidentes e a morte dos policiais. É sob esse emaranhado descritivo de ações deliberadas e planejadas nas maneiras de fazer dos policiais que se produzem interações, abordagens o flagrante e as produção social da incriminação17.

Estas interações revelam a dinâmica das respostas da polícia às situações, com as quais, se depara em seu cotidiano, quando, em interação com moradores da área em que atuam. Elas estão entrecruzadas às interpretações do outro, com base na produção de escalas acusativas. Em alguns casos, esses mesmos procedimentos podem promover a leitura errada dos acontecimentos, podendo culminar em precipitações de abordagens sem sentido, não enquadramento do delito, e, em casos mais extremos, precipitação da violência letal, como veremos a seguir.

Com base na elucidação da dimensão relacional e situacional das interpretações de atitudes suspeitas de moradores, empreendida seja de maneira individual, seja de maneira coletiva durante o patrulhamento de rua, deter-me-ei, aqui, a alguns dados etnográficos de pesquisa. As descrições acrescentam novas dimensões importantes das interações analisadas.

Passava-se das duas da manhã e a dupla de soldados Cain e Duarte acabava de ter realizado uma perseguição contra dois jovens que, deslocando-se em duas motocicletas, empreenderam fuga da viatura em alta velocidade, despistando os policiais seguindo em direções opostas do bairro Vermelho. Este fato instalou o clima de tensão na viatura, elevando a adrenalina dos PM. Percebi isto pelo tom da conversação entre os policiais após perderem de vista os suspeitos. Depois disso, seguiu-se a completa ausência de movimento nas ruas dos bairros da área, os encontros com outras pessoas dos bairros tornaram-se, extremamente, raros.

Não mais que, minutos após o ocorrido, surgiu uma moto em velocidade média à frente da viatura, até então, o fato não fora considerado nada demais. Eis que o piloto vestido no capacete, por duas vezes olha para trás, enfia a mão em um dos bolsos retirando um objeto de cor preta. A ação do morador foi suficiente para que o soldado Cain, motorista, sacasse sua arma posicionando-a pela parte interna do para-brisa do carro mirando em direção ao suspeito. Por sorte, no reflexo o soldado Duarte avisou ser um celular, o objeto sacado pelo morador, impedindo a efetuação dos disparos contra o motociclista.

A percepção errada do policial por muito pouco não precipitou o recurso à violência letal. Esse tipo de interação revela situações em que diferentes percepções dos policiais sobre as ações de moradores podem ter degraus de complexidade que, por sua vez, desencadeiam em diferentes graus os recursos de ação disponíveis aos policiais. A reação do policial não é simplesmente um ato deliberado, e sim, uma ação situada.

A eficácia social das crenças e imaginações dos policiais por meio do teatro de operações no cotidiano desses sujeitos constrói essas situações como momentos críticos de sobrevivência. Nos manuais orais da profissão, desconsiderar que a vida está em jogo a cada lance, que surpresas acontecem e podem resultar na morte do policial é uma habilidade de concentração que se perdida pode ser fatal. Como referência, os policiais compartilham diferentes casos em que a desatenção provocou esse resultado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo buscou explorar os processos simbólicos que revelam a escolha subjetiva durante desempenho da atividade policial em rotinas de patrulhamento, considerando o ponto de vista dos policiais militares. A partir de categorias nativas e registros etnográficos, analisamos como essas expressividades, percepções e práticas são um importante elemento das formas de estabelecimento de vínculos e relações com a população e seu território, especialmente sobre a relação dos agentes policiais com as suas clientelas, respondendo às demandas da população e realizando a gestão informal dos conflitos e da criminalidade. A interação entre polícia e população parece estar profundamente atrelada a processos simbólicos de construção da suspeita e utilização de recursos materiais e simbólicos para o desempenho do patrulhamento e, nesse sentido, se apresenta como um aspecto importante para a compreensão das práticas policiais.

O uso simbólico do teatro de operações pelos policiais militares revela um cenário de interações com a população que precisa ser melhor compreendido. No interior dessas complexas simulações imaginativas, há uma análise combinatória possível de encontros entre polícia e população, em alguns casos as linhas de interação podem produzir situações de abuso de poder, do uso precipitado da violência letal e até mesmo a produção de provas ilícitas contra pessoas. Como também, de outra perspectiva, podem desencadear a resolução de conflitos, o flagrante de práticas criminosas e a construção de relações e confiança entre polícia e população. Obviamente, esses processos podem ocorrer em maior ou menor intensidade dependendo do engajamento desses profissionais com a “busca de ação”, conforme exploramos ao longo do trabalho. Alguns elementos aqui abordados, não são meramente particularidades singulares, mais identificam aspectos importantes das ações policiais em outros contextos, sinalizando, dessa forma, padrões compartilhados pelos policiais militares em suas ações cotidianas na produção de práticas com base nas localidades onde atuam.

O investimento no policiamento ostensivo em diferentes entes da federação é encarado muitas vezes como uma forma de reconhecimento e valorização dessa modalidade de trabalho policial e uma resposta aos apelos da população contra a sensação de insegurança decorrente da expansão da violência nos grandes centros urbanos. Trata-se de uma combinação perigosa entre a disposição da instituição policial e seus servidores de assumirem uma postura para o confronto com os “bandidos” e o apoio social para esse confronto.

De acordo com Schlittler (2016), as orientações e direcionamentos das políticas de segurança pública enfocando o policiamento ostensivo como a principal estratégia, têm gerado como efeitos perversos o aumento nas taxas de aprisionamento e de letalidade policial. Como questão adicional, esse enfoque não tem conseguido controlar os indicadores de violência urbana e a sensação de insegurança da população. O que tem sido observado é o fenômeno da crise de confiança do público na polícia, o que coloca desafios para a legitimidade e a autoridade dos policiais que estão na linha de frente dessa política.

Um dos dados trazidos pelo seu estudo é que essa centralidade tem reforçado certos padrões no perfil criminal das prisões em flagrante, que se reflete no perfil social da população carcerária e das vítimas de letalidade policial18 – observados através de marcadores como idade, raça, cor e classe - e elevado número de mortes em decorrência de intervenções policiais. Trata-se de um paradoxo: a ampla adoção de políticas ligadas ao policiamento ostensivo continua sendo a principal escolha em diferentes Estados da Federação mesmo com a contínua evolução das taxas de homicídios por 100 mil habitantes, a expansão do tráfico ilegal de drogas, aumento de crimes patrimoniais e aumento da letalidade em ações policiais e nas taxas de vitimização policial.

Explorarmos neste o modo como o uso da força, de técnicas de mediação de conflito, técnicas do corpo para abordagem policial, elaboração da suspeita, ganham sujeitos, situações e práticas e exploram elementos descritivos que merecem novos estudos sobre as práticas policiais na sociedade brasileira. Esses são aspectos fundamentais para compreender o campo espinhoso de produção de relações de confiança entre polícia e população, especialmente a grave crise de legitimidade por que passam essas instituições. Nesse sentido, fornece aspectos para repensar os fundamentos da legitimidade policial levando em consideração o ponto de vista dos policiais e os processos sociais que o modelam na vida social.

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  1. Nome fictício dado a uma das áreas operacionais (AOs) da Polícia Militar do Ceará (PMCE), localizada na cidade de Juazeiro do Norte onde o trabalho de campo foi realizado. Na época do estudo, este território era composto por três bairros estigmatizados como pobres e violentos pela mídia local e pela polícia, nomeados ficticiamente aqui de bairro Verde, bairro Vermelho e bairro Laranja.↩︎

  2. O marketing político em torno da promoção do “Ronda do Quarteirão”, implantado em 2007 em Fortaleza – CE primeiramente, o apresentava como composto por policiais “diferentes” dos segmentos mais antigos da polícia militar, propondo-se a realizar o trabalho mais preventivo, contudo, com o passar dos anos, acabou por assumir um caráter de atividade ostensiva, principalmente no atendimento à ocorrências policiais. Mota Brasil e Sousa (2010) observam as resistências dentro da corporação, sobretudo as divergências internas de polos divergentes sobre o entendimento do agir policial, um deles defensor de um patrulhamento mais preventivo e comunitário e outro a favor de um policiamento mais repressivo e reativo. Além disso enfatizam os problemas apontados por Skolnick e Bayley (2006) as resistências a mudanças devido à modalidade de policiamento tradicional e seus defensores.↩︎

  3. No decorrer do artigo, o uso da expressão “morador” por policiais foi encontrado de diferentes formas no trabalho de campo, sobretudo pela forma como os policiais enxergam e nomeiam as suas clientelas. Em virtude de o policiamento ser restrito a áreas específicas com caráter residencial, produz-se a associação desse estatuto. Em algumas passagens, o termo é sinônimo de pessoa, mas incorpora essas representações policiais sobre as suas clientelas no desempenho do mandato policial.↩︎

  4. No universo simbólico do policial militar o “teatro de operações” define o espaço físico do confronto bélico, incorporando simulações de possibilidades de acontecimentos no confronto com “inimigos”. Nos usos simbólicos dos Policiais Militares, a realização do teatro de operações diz respeito à dimensão pedagógica de conhecer a área e, conhecendo-a, simular imaginativamente possibilidades de acontecimentos para produzir suspeitas e antecipações disparadoras da agência policial.↩︎

  5. Sá e Santiago Neto (2011) ao discutirem as agressões físicas empregadas por policiais militares na cidade de Fortaleza, Ceará, contra jovens classificados como “vagabundos”, entendem o chamado “baculejo”, como um nível de punição corporal em que níveis assimétricos de poder estão em jogo, de um lado a polícia, de outro, os moradores, alvos da abordagem. Para o desempenho bem sucedido dessas agressões corporais, os policiais compartilham técnicas de castigos corporais de modo a provocar estímulos dolorosos nas vítimas, sem com isso deixar provas da ação cometida.↩︎

  6. Para o antropólogo Clifford Geertz no livro “O Saber Local” (1997) em condições de uma “experiência próxima” propiciada na pesquisa, é fundamental assumir a tarefa de compreender a vida social do nativo com base na percepção que ele faz de si mesmo, ou seja, as maneiras como os contextos locais produzem o self dos sujeitos pesquisados. Esse esforço de pensar as camadas simbólicas a partir das tipologias nativas de policiais é um exercício analítico importante para compreender como os policiais percebem o que eles fazem e as maneiras como fazem o seu trabalho.↩︎

  7. O turno C corresponde ao horário de 22h às 08h.↩︎

  8. “Bizu” é a denominação que, a princípio, remete a um cochicho ao pé de ouvido envolvendo dicas e macetes em quartéis para policiais. Contudo, o “bizu” é mobilizado pelos interlocutores da pesquisa como uma dica ou mensagem, às vezes, informações relacionadas a pessoas suspeitas, modelos e placas de carros suspeitos, formas de usar o colete, formas de segurar a arma, formas de efetuar a abordagem.↩︎

  9. O termo remete à simulação de suspeitas envolvendo exercício do mandato policial. O teatro de operações consiste em simulações realizadas para reprimir e prevenir crimes e possíveis crimes nas práticas desses policiais.↩︎

  10. O trabalho de Pinheiro, Barbosa e Sousa (2013) discorre sobre alguns casos de incriminação de mulheres por tráfico de drogas. Na cidade de Juazeiro do Norte (CE), parte significativa dos mercados ilícitos de entorpecentes são chefiados por mulheres. Em alguns casos descritos e analisados pelos autores, as esposas de traficantes assumem as atividades ilícitas dos parceiros no período de reclusão, ocorre também, do comércio ser chefiado por mulheres sem estas implicações de ordem familiar.↩︎

  11. O racismo e a associação entre crime e pobreza continuam, ainda, sendo marcas problemáticas das ações da polícia. Não negligencio tal caráter, apenas, amplio do ponto de vista analítico, em razão dos dados produzidos em campo, os aspectos da “fundada suspeita”.↩︎

  12. Vale ressaltar que essa é uma estratégia que concentra muita energia e recursos e é amplamente adotada nas rotinas do policiamento ostensivo na sociedade brasileira. De acordo com Risso, considerando apenas o contexto da Polícia Militar do Estado de São Paulo, estima-se a quantidade de 14 milhões de abordagem por ano.↩︎

  13. Durante o período de pesquisa, cada arma apreendida era premiada com uma quantia, podendo variar entre R$ 600,00 (seiscentos reais) e R$ 800, 00 (oitocentos reais), dependendo do tipo de armamento.↩︎

  14. Nessa discussão, o estudo de Pinheiro (2013) realizou um levantamento na Corregedoria da Polícia do Ceará, seus dados revelam descrições dos casos de maior recorrência de denúncia de policiais militares e civis tipificados como: “Agressão física e moral/Ameaça de morte/Invasão de domicílio/Extorsão”. Durante o atendimento às ocorrências, caso os policiais cometam “excessos” poderão ser denunciados na corregedoria. É muito comum os PM serem denunciados no quartel da polícia local. Caso a denúncia chegue até os comandantes, o policial terá de prestar contas de seus atos e poderá ser punido, como já ocorreu com alguns interlocutores, podendo ser transferido, receber advertências por escrito ou preso.↩︎

  15. Para efeito de análise, deve ser mencionado o fato de que o histórico das ações da polícia nesse território produz uma memória que impacta a atividade policial. Nesse sentido, a elaboração de arquivos policiais e de estatísticas de ocorrências são fatores decisivos para a confecção moral do estigma do território no saber policial.↩︎

  16. Segundo o SD Ben, mesmo a elaboração das provas, comprovando o porte de arma ilegal, cuja numeração do artefato bélico estava raspada, não efetivaram a incriminação inafiançável do acusado. Esse tipo de acontecimento é, para alguns PM, produtor de insatisfação e desmotivação da sua atividade. É reforçada pelo dizer: “a polícia prende, a justiça solta”. Mesmo produzindo estratégias discursivas, competentes para incriminar o acusado, fazendo-o ser punido pelo crime cometido, as ações da polícia ostensiva foram desfeitas, segundo ele, na duração temporal de uma semana.↩︎

  17. A autora aponta como o fenômeno do tirocínio (estoque de conhecimento dos policiais) releva o conteúdo prático da política de segurança, ao adotar o quadro de experiencias para definir e reconhecer o padrão social do bandido acaba reforçando padrões de desigualdade racial. Esse modelo além de não garantir uma sociedade mais segura e com menos índices de violência e criminalidade, expõe a vida da população e dos próprios policiais, de acordo com suas conclusões (SCHLITTLER, 2016)↩︎