QUEM NÃO MARCHAR DIREITO NÃO VAI MAIS PRESO PRO QUARTEL: A LEI Nº 13.967/2019 E A GARANTIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO DOS POLICIAIS MILITARES

Felipe do Rosário Ferreira

Graduado em Direito pelo Centro Universitário UNDB - MA, Pós-graduando em Direito Constitucional, Administrativo e Tributário (PUC-RS), Pós-graduando em Licitações (IPOG-GO), professor e escritor.

País: Brasil Estado: Maranhão Cidade: São Luís

Email de contato: falecomfelipeferreira@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2495-930X

Arnaldo Vieira Sousa

Possui graduação em Direito pela UFMA (2010), mestrado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (2013) e doutorado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (2020). Atualmente é professor titular - Unidade de Ensino Superior Dom Bosco e sócio - Macieira, Nunes, Zagallo e Advogados Associados.

País: Brasil Estado: Maranhão Cidade: São Luís

Email de contato: vieira.arnaldo@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3526-5351

Contribuição de cada autor: O autor Felipe do Rosário Ferreira realizou o trabalho sob a orientação e revisão do autor Arnaldo Vieira Sousa.

RESUMO

A liberdade é um importante direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988, que só pode ser afetado nas hipóteses taxativas descritas pela própria Constituição. Todavia, em relação aos policiais militares, a liberdade sofre graves violações, sem que sejam observados os parâmetros estipulados constitucionalmente. Trata-se de punições disciplinares que cerceiam a liberdade dos policiais militares por vias administrativas, sem previsão em lei. Além disso, existem diversos aspectos dessas medidas que indicam a sua inadequação frente ao ordenamento constitucional vigente, tanto formais como materiais. De todo modo, a Lei nº 13.967/2019 introduz importantes alterações nesse contexto, com o objetivo de extinguir as medidas privativas de liberdade, fazendo com que, de fato, o direito fundamental à liberdade dos policiais militares seja respeitado.

Palavras-chave: Liberdade. Punições disciplinares. Inadequação. Ordenamento constitucional.

ABSTRACT

Who doesn’t march correctly doesn’t go arrested to the barracks anymore: Law 13.967/2019 and the guarantee of the fundamental right to freedom of movement for military police officers

Freedom is an important fundamental right foreseen in the Federal Constitution of 1988, which can only be affected in the exhaustive hypotheses described by the Constitution itself. However, in relation to the military police, freedom suffers serious violations, without observing the constitutionally stipulated parameters. These are disciplinary punishments which restrict the freedom of military police officers through administrative means, without any provision in the law. In addition, there are several aspects of these measures that indicate their inadequacy in relation to the current constitutional order, both formal and material. In any case, the Law nº 13.967/2019 introduces important changes in this context, with the objective of extinguishing the private measures of freedom, making sure that in fact the fundamental right to freedom of military police is respected.

Keywords: Freedom. Disciplinary punishments. Inadequacy. Constitutional order.

INTRODUÇÃO

Nesta pesquisa são apresentadas análises que permitem refletir acerca da (in)constitucionalidade e da (in)adequação das medidas disciplinares privativas de liberdade aplicadas aos policiais militares. Parte-se da garantia do direito fundamental à liberdade, confrontando com as hipóteses taxativas de seu afastamento, buscando analisar se a prisão disciplinar está ou não em conformidade com a ordem constitucional em vigor.

O policial militar, no exercício da sua função, submete-se a regras deveras rígidas, isso porque muito do que existe no âmbito militar das Forças Armadas é aplicado também na polícia. Uma dessas regras é o cerceamento da liberdade enquanto medida corretiva de conduta funcional ilícita. Ou seja, os policiais militares, a exemplo do que ocorre com os membros das Forças Armadas, submetem-se à prisão como mecanismo de punição de atos contrários ao dever funcional.

O problema principal é a aplicação dessas medidas privativas de liberdade com base em um decreto, possibilitando que o policial militar seja preso por uma simples transgressão disciplinar, ou seja, sem o cometimento de qualquer crime. Ademais, serão abordadas outras problemáticas no instituto da prisão disciplinar e suas punições correlatas, permitindo uma análise mais aprofundada sobre esta matéria que divide opiniões.

O objetivo é, de modo geral, avaliar como a questão da privação da liberdade em decorrência de transgressão disciplinar viola direitos fundamentais já consagrados, bem como, analisar as alterações introduzidas pela Lei nº 13.967/2019, que visa extinguir esse tipo de sanção no âmbito administrativo.

O tema apresenta grande relevância, embora não seja muito discutido na academia, o que torna a abordagem ainda mais pertinente, visto que serve para o desenvolvimento científico. Mostra-se relevante também no aspecto social, na medida em que torna possível verificar alguns reflexos da temática na prestação do serviço de segurança pública ao cidadão. Dito de outro modo, a possibilidade de privação de liberdade dos policiais militares a pretexto de sanção disciplinar afeta, diretamente, a prestação do serviço destes à sociedade.

O policial militar tem o dever de garantir a liberdade das pessoas, porém, deve fazê-lo, nesse contexto, sem que a sua própria liberdade seja garantida, pois é passível de cerceamento em virtude de situações funcionais, como atraso, cabelo mal cortado, uma alteração no coturno, dentre outras. É nítida a discrepância entre a conduta praticada e a sanção respectiva, pois qualquer dessas condutas poderiam ser facilmente corrigidas com outros tipos de sanções que não a prisão.

A temática traz à lume uma situação que gera, por vezes, desmotivação dos profissionais de segurança pública por conta de punições, na maioria dos casos, arbitrárias e desproporcionais, o que acaba por prejudicar o serviço por eles prestados e contribuindo para a sensação de insegurança do cidadão. No âmbito da caserna, qualquer conduta, por mínima que seja, mostra-se como potencial justificativa para a prisão do policial militar.

Esta pesquisa tem característica exploratória, pois busca aprofundar a temática, estabelecendo conceitos, características e, em relação aos procedimentos técnicos, mostra-se como bibliográfica, uma vez que se baseia em materiais já escritos que subsidiam o desenvolvimento do assunto de acordo com a perspectiva adotada.

O DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO DOS POLICIAIS MILITARES

O direito fundamental à liberdade constitui uma das garantias constitucionais insertas no rol do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB de 1988. No entanto, no caso dos policiais militares, essa liberdade pode ser cerceada por vias administrativas através das medidas disciplinares privativas de liberdade. É comum falar apenas na prisão disciplinar, porém, esta é apenas uma das espécies de privação da liberdade a que o policial militar pode ser submetido administrativamente, como ver-se-á mais adiante.

Essas medidas têm fundamento constitucional no art. 5º, inciso LXI, da CRFB que afirma: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (BRASIL, 1988, grifo nosso). A prisão disciplinar, a priori, é constitucional, vez que a própria Constituição a prevê, todavia, precisa-se observar os termos em destaque – e não à toa foram destacados – a fim de galgar melhor entendimento. Dessa forma, vê-se que há uma exigência de que os casos de transgressões militares que ensejem prisão disciplinar estejam definidos em lei.

Eis aqui um problema: as medidas privativas de liberdade em decorrência de transgressões disciplinares são aplicadas atualmente com base no Decreto nº 4.346/2002 – Regulamento Disciplinar do Exército – RDE, e não baseadas em uma lei, como exige a CRFB. O RDE prevê as seguintes medidas disciplinares privativas de liberdade: prisão disciplinar (art. 29), detenção disciplinar (art. 28), impedimento disciplinar (art. 26) e pronta intervenção (art. 35, § 3º).

Resumidamente, a prisão é o cerceamento da liberdade em cela, tal qual nos presídios; a detenção ocorre no alojamento; o impedimento disciplinar é a impossibilidade de sair do quartel; e a pronta intervenção pode ser em cela ou em outro local definido para tal. Embora os nomes sejam distintos, o resultado é o mesmo: privação da liberdade de locomoção.

A respeito disso, o art. 5º, inciso XV, da CRFB é claro ao dizer: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens” (BRASIL, 1988). Trata-se do direito de ir e vir, o qual alcança qualquer pessoa em tempo de paz, como se depreende do dispositivo.

É importante enfatizar que a expressão “definidos em lei”, contida no texto que fundamenta a prisão disciplinar, encontra-se no plural, logo, apenas duas interpretações são possíveis: ou diz respeito apenas a “nos casos de transgressão militar” ou aos casos de transgressão militar e crime propriamente militar. Em suma, “definidos em lei” não pode referir-se exclusivamente a “crime propriamente militar”, pois esta encontra-se no singular, enquanto aquela, no plural.

Apesar de parecer irrelevante, a disposição das palavras implica, diretamente, no conteúdo que se pretende transmitir. Nesse sentido, “parte-se do pressuposto de que a ordem das palavras e o modo como elas estão conectadas são importantes para obter-se o correto significado da norma” (FERRAZ JUNIOR, 2013, p. 252-253). Ou seja, as palavras não foram jogadas no texto constitucional em vão, se constam lá, é preciso observar a forma como estão conectadas, a fim de extrair o real sentido da norma.

O Ministro Cezar Peluso, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3340, corrobora com esse entendimento, senão vejamos:

Tenho por muito difícil ou impossível superar o obstáculo do texto, quando se refere a ‘definidos em lei’ para excluir o caso de transgressão militar. O fato de o adjetivo estar no plural não deixa nenhuma dúvida de que a Constituição exige que tanto o crime propriamente militar como a transgressão militar hão de estar definidos em lei, para o efeito da norma. (BRASIL, 2007, p. 107, grifo nosso).

No mesmo sentido, porém interpretando para além da letra seca da lei, o Ministro Joaquim Barbosa, no mesmo julgamento, afirmou: “Entendo que não há como afastar, no caso, a incidência do princípio da reserva legal” (BRASIL, 2007, p. 101). Dito de outro modo, mesmo que fosse afastada a premissa da concordância entre as expressões, subsistiria a reserva que a CRFB fizera dessa matéria à lei stricto sensu, em consonância com o entendimento do Ministro.

A aplicação das medidas que privam a liberdade dos policiais militares com base em um decreto ocorre, de modo geral, por dois motivos: primeiro, por força do art. 18 do Decreto nº 667/1969; e segundo, por conta de omissão legislativa e consequente aplicação subsidiária prevista pelo art. 166 da Lei nº 6.513/1995 (no caso do Estado do Maranhão, por exemplo).

O art. 18 do Decreto 667/1969 alui: “As Polícias Militares serão regidas por Regulamento Disciplinar redigido à semelhança do Regulamento Disciplinar do Exército e adaptado às condições especiais de cada Corporação” (BRASIL, 1969). Importa aqui destacar dois pontos fundamentais. O dispositivo afirma que o Regulamento Disciplinar que rege a Polícia Militar deve ser semelhante ao RDE, o que não ocorre, pois nos Estados onde não há legislação estadual tratando sobre as transgressões e as punições, como é o caso do Maranhão, aplica-se o próprio RDE.

Ademais, a aplicação do RDE ocorre por conta da omissão legislativa de alguns Estados. Por exemplo, no Maranhão, a Lei nº 6.513/1995, que rege os policiais militares, prevê no art. 59 o seguinte:

O Regulamento Disciplinar da Polícia Militar especificará e classificará as transgressões disciplinares e estabelecerá as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento dos policiais-militares e à interposição de recursos contra as penas disciplinares. (MARANHÃO, 1995).

Ocorre que, até hoje, essa lei nunca foi criada, em virtude de omissão da Assembleia Legislativa. Importante realçar que a determinação legal data de 1995, ou seja, aproximadamente há 25 anos. Em virtude disso, policiais militares são privados da sua liberdade diariamente de forma ilegal.

A Lei nº 6.513/1995, em que pese o dispositivo supra, deixou uma espécie de alternativa para eventuais lacunas na legislação estadual, possibilitando a aplicação subsidiária do RDE prevista no art. 166, que tem o seguinte teor: “São adotados (sic) na Polícia Militar do Maranhão, em matéria não regulada na legislação estadual, as leis e regulamentos em vigor no Exército Brasileiro, no que lhe for pertinente” (MARANHÃO, 1995).

Essa previsão traz à baila diversos questionamentos, além do principal, que é a inobservância à exigência constitucional de aplicação de medidas disciplinares privativas de liberdade com base em lei.

Todos esses questionamentos, que serão apresentados no capítulo posterior, desencadeiam grave violação ao direito fundamental à liberdade de locomoção dos policiais militares, não sendo demais lembrar que a CRFB em seu art. 5º, inciso XLI, afirma que: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (BRASIL, 1988). É notória a discriminação à liberdade dos militares, motivo pelo qual, faz-se necessária a utilização de lei para coibir, com o devido rigor, tais violações.

PROBLEMÁTICAS DAS MEDIDAS DISCIPLINARES PRIVATIVAS DE LIBERDADE APLICADAS AOS POLICIAIS MILITARES

As medidas privativas de liberdade aplicadas em sede disciplinar suscitam diversos problemas, pois violam o direito fundamental à liberdade de locomoção sem observar a exigência que a CRFB faz de lei para tanto. Mas não só por isso. Existe outro aspecto formal que precisa ser mencionado: trata-se da superação do art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT.

No tocante ao art. 25 do ADCT, tem-se que:

Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo à prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional. (BRASIL, 1988).

Ora, o raciocínio é simples: o art. 47 da Lei nº 6.880/19801 permitia que o Poder Executivo editasse essas normas, porém, com a CRFB de 1988, passou-se a exigir lei para aplicação da prisão disciplinar, logo, a competência passou a ser do Congresso Nacional. Vale enfatizar ainda que o RDE, datado de 2002, foi editado com base nesse art. 47 da Lei nº 6.880/1980, dispositivo este que já estava revogado há muitos anos pelo texto do ADCT e, por isso, não possui validade.

Essa matéria já foi objeto de apreciação pelo Poder Judiciário no julgamento do Recurso em Habeas Corpus RCHC nº 172 2003.51.09.001161-1, no qual sedimentou-se: “Não parece ter o Decreto nº 4.346 amparo para sua validade, porquanto foi editado após a superação do prazo previsto no art. 25 do ADCT, não se amoldando à norma insculpida no inciso LXI do art. 5º da Carta Política” (BRASIL, 2004).

Esse é mais um argumento que inviabiliza a utilização do Decreto nº 4.346/2002 para a aplicação das medidas tendentes a privar a liberdade dos policiais militares, qual seja: mesmo considerando que a Constituição tivesse dito lei lato sensu – o que viabilizaria a utilização de decreto – o RDE não poderia ser considerado, pois inválido, por força do art. 25 do ADCT.

É imprescindível reiterar que “As normas do ADCT são normas constitucionais e têm o mesmo status jurídico das demais normas do Texto principal” (MENDES; BRANCO, 2013, p. 79), motivo pelo qual a norma do referido dispositivo pode e deve ser considerada.

Superados os aspectos formais, vale a pena destacar alguns aspectos materiais atinentes à temática ora em apreço. Existem diversos, no entanto, serão tratados aqui apenas três, sendo eles: a distinção de atribuição do Exército Brasileiro para a Polícia Militar; a subjetividade de conceitos contidos no RDE; e o comparativo das medidas disciplinares privativas de liberdade com a impossibilidade de prisão após condenação em segunda instância.

Como já dito, o instrumento normativo utilizado para aplicação das medidas disciplinares privativas de liberdade na Polícia Militar pertence, na verdade, ao Exército Brasileiro. Parece algo irrelevante, mas não é. Reza o art. 142 da CRFB:

As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Inicialmente, cumpre destacar que a Polícia Militar não faz parte das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) pelo texto do artigo acima mencionado, tanto que está prevista em outro artigo (144) da CRFB. Além disso, as atribuições das duas instituições são, diametralmente, distintas. O Exército destina-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais, nitidamente atribuições relacionadas à concepção de soberania e segurança nacional.

De outra banda, o art. 144, § 5º, da CRFB, afirma que: “Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública” (BRASIL, 1988). Vê-se no teor do dispositivo a polícia ostensiva (polícia na rua devidamente caracterizada pela farda) e a preservação da ordem pública (garantia da normalidade). É fácil perceber que a atribuição da Polícia Militar é mais voltada ao trato cotidiano com o cidadão e não à uma preparação para a guerra, ainda que, de uma forma ou de outra, a Polícia Militar também esteja em guerra (contra violência, drogas etc.).

O cidadão quando é roubado não liga para o Exército, pois cabe à Polícia Militar esse tipo de ocorrência. De igual modo, a priori, em caso de guerra, o Exército toma à frente da situação (e não a Polícia Militar), mesmo que haja possibilidade desta também ir à guerra, pois é força auxiliar e reserva do Exército, nos termos do art. 144, § 6º, da CRFB.

Outro ponto importante é a subjetividade de conceitos contidos no RDE, não bastasse sua aplicação ilegítima. A aplicação de uma punição disciplinar deriva do cometimento de uma transgressão disciplinar, que, com fulcro no art. 14 do RDE apresenta o seguinte conceito:

Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe. (BRASIL, 2002).

Percebe-se no cerne do texto uma abstração muito grande, isso porque expressões como “honra pessoal”, “pundonor militar” e “decoro da classe” não apresentam conceituações claras, o que viabiliza interpretações das mais diversas possíveis. Uma mesma ação pode ser considerada como transgressão disciplinar para um e para outro não. A propósito, vale dizer, como o fez Cesare Beccaria: “Cada homem tem seu ponto de vista, e o mesmo homem, em épocas diferentes, pensa de modo diferente” (BECCARIA, 2013, p. 37).

A título de comparação, vigora no Direito Penal o princípio da legalidade e, mais especificamente, da taxatividade que, segundo Cléber Masson (2013, p. 22) “implica, por parte do legislador, a determinação precisa, ainda que mínima, do conteúdo do tipo penal e da sanção penal a ser aplicada”. Notadamente, o paralelo não tem o escopo de igualar a questão disciplinar à questão criminal, mesmo porque são totalmente diversas, porém, serve para subsidiar o raciocínio segundo o qual a prisão disciplinar mostra-se mais severa que a própria prisão no âmbito criminal.

Nota-se que essa conclusão fere frontalmente uma premissa basilar inferida por Jean-Jacques Rousseau, a saber: “o pacto social estabelece entre os cidadãos uma tal igualdade que todos se comprometem sob as mesmas condições e que todos devem usufruir os mesmos direitos” (ROUSSEAU, 2017, p. 49). Por essa ótica, o direito fundamental à liberdade do policial militar é menos salvaguardado que o direito daqueles que incidem em ilícitos penais, o que demonstra uma desigualdade sem justificativa plausível.

Para exemplificar melhor a questão da subjetividade, seguem-se três transgressões disciplinares contidas no Anexo I do RDE. A primeira é a transgressão nº 40, que afirma: “Portar-se de maneira inconveniente ou sem compostura” (BRASIL, 2002). Da simples leitura dessa transgressão, surgem diversas dúvidas, tais quais: o que é ser inconveniente? O que significa estar sem compostura? Qual é o parâmetro da conveniência ou da compostura? A transgressão nº 85 prevê: “Desrespeitar, em público, as convenções sociais” (BRASIL, 2002), daí, mais uma vez surgem as perguntas: quais convenções sociais? Onde estão mencionadas? Pode desrespeitar se não for em público? A terceira transgressão é a nº 111, que afirma: “Falar, habitualmente, língua estrangeira em OM2 ou em área de estacionamento de tropa, exceto quando o cargo ocupado o exigir” (BRASIL, 2002). É até difícil de acreditar que isso consta no Decreto, mas consta e, pior, na prática pode ser cobrado.

Outro aspecto material diz respeito à recente discussão acerca da (im)possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, matéria constante nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade – ADC nº 43, 44 e 54. No julgamento conjunto das ADC consta: “O Tribunal, por maioria, nos termos e limites dos votos proferidos, julgou procedente a ação para assentar a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 12.403” (BRASIL, STF, 2019).

Dito de outro modo, o Supremo Tribunal Federal – STF assentou a constitucionalidade do seguinte dispositivo constante no Código de Processo Penal – CPP:

Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (BRASIL, 1941).

Com essa decisão, reafirmou-se os casos de prisão, assentando entendimento segundo o qual, em se tratando de prisão em decorrência de sentença condenatória, haja o trânsito em julgado, obviamente, ressalvados os casos de prisão temporária e prisão preventiva, desde que satisfeitos os requisitos. Na prática, significa que uma pessoa que cometer um crime, seja condenada em 1º grau, recorra da decisão, que seja confirmada em 2º grau, recorra para os Tribunais Superiores, não será presa enquanto não transitar em julgado a decisão, ou seja, enquanto ainda couber recurso.

Vê-se, assim, o direito fundamental à liberdade levado ao extremo, não sendo violado, nem mesmo, em casos de condenações criminais confirmadas em 2º grau, o que é paradoxal se comparado à prisão disciplinar. Nesse contexto, vale destacar um trecho contido no Projeto de Lei nº 7645/2014:

Se de um lado assistimos o Estado Brasileiro incentivar a pena alternativa à prisão, até para crimes violentos, por outro assistimos a passividade dos governos em todas as suas dimensões, com a violência da aplicação da pena de prisão para faltas disciplinares, que muitas vezes não vai além de um uniforme em desalinho, uma continência mal feita, um cabelo em desacordo, um atraso ao serviço, entre tantas aberrações. (BRASIL, 2014).

Ironicamente, existem diversos casos de policiais militares presos por um cabelo mal cortado, uma barba malfeita, um atraso no serviço etc., demonstrando total violência cometida contra o policial militar no que se refere ao direito fundamental à liberdade de locomoção. A respeito desse contexto, conclui Beccaria:

para que toda pena não seja a violência de um ou de muitos contra o cidadão particular, devendo, porém, ser essencialmente pública, rápida, necessária, a mínima dentre as possíveis, em dadas circunstâncias, proporcional aos delitos e ditadas pelas leis. (BECCARIA, 2013, p. 147).

A privação de liberdade do policial militar em decorrência do cometimento de transgressão disciplinar não encontra respaldo nessa premissa, nem de longe. A consequência que a transgressão diversa do crime, porém, pode gerar é a mesma: prisão. Trata-se de um grotesco contrassenso entre o policial militar e o criminoso. Não há que se falar em proporcionalidade ou razoabilidade, posto que as medidas disciplinares privativas de liberdade são mais cruéis ao policial militar que as penas cominadas pelo Código Penal a eventuais criminosos.

Por fim, mesmo que nenhuma dessas premissas (formais e/ou materiais) fossem levadas em consideração, subsistiria a discussão pelo só conceito da palavra Direito, que de acordo com Roberto Lyra Filho:

Por isso mesmo, os autores ingleses e americanos têm de falar em Right, e não law, quando pretendem referir-se exclusivamente ao Direito, independente da lei ou até, se for o caso, contra ela (isso não significa, note o leitor, que o verdadeiro Right não possa ser um Direito legal, porém que ele continuaria a ser Direito, se a lei não o admitisse). (LYRA FILHO, 2012, p. 8).

A privação da liberdade do policial militar em razão de transgressão disciplinar continuaria a ser ilegal, ainda que a lei dissesse o contrário, pois o Direito, nesse sentido, continuaria sendo Direito, mesmo que a lei não o reconhecesse.

A LEI Nº 13.967/2019 E O FIM DAS MEDIDAS DISCIPLINARES PRIVATIVAS DE LIBERDADE

Diante de tantas problemáticas e de diversos debates, a matéria, há muito, reclamava solução. Nesse intento, surgiu, primeiramente, a ADI nº 3340, ajuizada pela Procuradoria Geral da República, que buscava declarar a inconstitucionalidade das prisões disciplinares, porém, a ação não foi conhecida por, de acordo com a maioria dos votos, não terem sido apontadas, especificamente, quais seriam as inconstitucionalidades no decreto.

Por conta disso, o problema seguiu sem solução, pelo menos no âmbito nacional, isso porque o Estado de Minas Gerais, por exemplo, sancionou a Lei nº 14.310/2002 – CEDM3. A lei extinguiu a medida de privação à liberdade a pretexto de sanção disciplinar.

Apesar da extinção, a lei estabeleceu sanções como meio de substituir a prisão, é o caso do art. 24, inciso III, o qual prevê “prestação de serviços de natureza preferencialmente operacional, correspondente a um turno de serviço semanal, que não exceda a oito horas” (MINAS GERAIS, 2002). É possível observar que subsiste o caráter sancionatório, no entanto, sem violar o direito fundamental à liberdade.

Essa sanção mostra-se positiva pois, por um lado, gera o dissabor ao punido de estar trabalhando no dia que deveria estar de folga (cunho pedagógico) e, por outro, coloca mais um servidor à disposição da sociedade, efetivando ainda mais o serviço público de segurança.

A prisão disciplinar, ao revés, além de todas as ilegalidades, mostra-se inadequada, uma vez que retira-se um servidor de prestar o seu serviço à sociedade, colocando-o em uma cela. A medida, ao que parece, não satisfaz o interesse público, pelo contrário, retira o policial das ruas (e já são poucos), o que significa menos segurança ao cidadão.

O fim dessas medidas constitui avanço imensurável para os policiais militares, que, sequer, podiam reaver sua liberdade por meio de HC, notadamente, por conta da vedação constitucional do art. 142, § 2º, que afirma que: “Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares” (BRASIL, 1988). Como se não bastassem todas as problemáticas já elencadas, o remédio constitucional que poderia resolver a situação não pode ser usado em caso de punições disciplinares militares.

Em que pese o dispositivo, essa previsão foi mitigada pela jurisprudência no HC nº 70.648, de relatoria do ministro Moreira Alves, que assentou que é vedado analisar o mérito, porém, podem ser observados alguns requisitos, sendo eles: “a hierarquia, o poder disciplinar, o ato ligado à função e a pena susceptível (sic) de ser aplicada disciplinarmente” (BRASIL, 1994).

De modo similar, quando da determinação dos motivos pelos quais entende incabível habeas corpus em casos de punições disciplinares, concluiu Jorge César de Assis:

Este controle dos atos administrativos militares deve, entretanto, reduzir-se aos aspectos extrínsecos do ato, ou seja, se foram atendidos os requisitos necessários à sua formação: a competência, que resulta da lei e por ela é determinada; a finalidade, que é o objetivo de interesse público a atingir; a forma, que é requisito vinculado e imprescindível, e o motivo, que é a situação de direito ou de fato que autoriza a realização do ato administrativo. (ASSIS, 2018, p. 210, grifo do autor).

Apesar de, em regra, entender incabível, o autor supra cita alguns requisitos que podem ser analisados no respectivo HC. Quanto à competência e à forma, observa-se, sem muito esforço que, de fato, constituem análise meramente formal do ato. Por outro lado, no que diz respeito à finalidade e ao motivo, cabem algumas observações.

Finalidade “é o resultado específico que cada ato deve produzir, conforme definido na lei; nesse sentido, se diz que a finalidade do ato administrativo é sempre a que decorre explícita ou implicitamente da lei” (DE PIETRO, 2006, p. 220). Notadamente, cumprir o pressuposto da finalidade significa alcançar, por intermédio do ato, o interesse público ao qual determinada lei, direta ou indiretamente, se dirige.

Tendo por base esse conceito, imagine-se o exemplo de um policial militar preso por estar com a barba malfeita. Nos termos acima, o julgador, quando da análise, deveria julgar se o ato (a prisão) atinge o interesse público definido em lei. Ora, é notório que, ao fazer essa análise, de um ou outro modo, está se afetando o mérito, pois caberá ao julgador dizer se a barba malfeita justifica a privação da liberdade, posto que não há lei específica sobre o assunto.

Já o motivo “é a situação de direito ou de fato que determina ou autoriza a realização do ato administrativo” (MEIRELLES; ALEIXO; BURLE FILHO, 2011, p. 161), ou seja, se levar em consideração o mesmo exemplo, o julgador, novamente, afetaria o mérito, vez que ia decidir se a barba malfeita determina/autoriza ou não a privação da liberdade. Por incrível que pareça, esse exemplo constitui caso corriqueiro que priva a liberdade de policiais.

Observa-se que, mesmo tendo sido flexibilizada a regra constitucional pelo não cabimento de HC nas punições disciplinares, o problema das prisões disciplinares persiste, por conta de que não se pode adentrar ao mérito. Ou seja, ainda seria possível se fazer uso dos conceitos subjetivos no intuito de aplicar medidas privativas de liberdade sem previsão legal.

A questão no Estado de Minas Gerais foi resolvida com o advento da Lei nº 14.310/2002, porém, subsistia a problemática nos demais Estados. Apesar de tardia, foi publicada no Diário Oficial da União, no dia 27 de dezembro de 2019, a Lei nº 13.967/2019, que pretende encerrar de uma vez por todas a discussão sobre as medidas que violam o direito fundamental à liberdade dos policiais militares, desta feita, em âmbito nacional.

A Lei nº 13.967/2019, logo em seu começo, afirma, explicitamente, seu objetivo:

Altera o art. 18 do Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, para extinguir a pena de prisão disciplinar para as polícias militares e os corpos de bombeiros militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal, e dá outras providências. (BRASIL, 2019a, grifo nosso).

O texto da lei é claro, motivo pelo qual não se tem muito a pontuar. No entanto, levando em conta exclusivamente esse trecho, chegar-se à conclusão de que ela serve para extinguir apenas a prisão disciplinar, permitindo ainda a detenção, o impedimento disciplinar e a pronta intervenção. Porém, essa não é a interpretação correta.

O art. 2º da norma ora analisada informa a nova diretriz do art. 18 do Decreto-Lei nº 667/1969, que passa a vigorar com a seguinte redação: “As polícias militares e os corpos de bombeiros militares serão regidos por Código de Ética e Disciplina [...] observados, dentre outros, os seguintes princípios: VII – vedação de medida privativa e restritiva de liberdade” (BRASIL, 2019a).

Por esse dispositivo, não resta dúvida que a lei pôs fim a qualquer medida privativa e/ou restritiva de liberdade – e não apenas à prisão disciplinar, como aparenta numa primeira leitura mais superficial e, mais, consubstancia norma cogente válida e apta a produzir seus efeitos.

A privação da liberdade é medida extrema e deve ser aplicada apenas quando necessária, de modo que não há justificativa para ser diferente em relação ao policial militar. A respeito disso, conclui brilhantemente Beccaria:

Toda pena, que não derive da absoluta necessidade, diz o grande Montesquieu, é tirânica, proposição esta que pode ser assim generalizada: todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da absoluta necessidade é tirânico. Eis, então, sobre o que se funda o direito do soberano de punir os delitos: sobre a necessidade de defender o depósito da salvação pública das usurpações particulares. Tanto mais justas são as penas quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e maior a liberdade que o soberano dá aos súditos. (BECCARIA, 2013, p. 32).

A Lei nº 13.967/2019, como já dito, visa encerrar de uma vez por todas punições dessa natureza, que violam direito fundamental por vias administrativas, ferindo diversos princípios constitucionais. Ocorre, porém, que a lei é recente e, por esse motivo, pairam ainda alguns questionamentos quanto à produção dos seus efeitos.

Já foi mencionado que o art. 2º da nova lei alterou o art. 18 do Decreto-Lei nº 667/2019. Ocorre que os princípios delineados nesse dispositivo dizem respeito a um Código de Ética e Disciplina que, segundo o art. 3º da lei, tem o prazo de 12 (doze) meses para ser criado pelos Estados e pelo Distrito Federal.

Diante disso, parece não ficar claro se já estão vedadas as medidas privativas de liberdade, uma vez que o Código de Ética e Disciplina, que deve ser aprovado por lei estadual, ainda não foi criado e tem o prazo de doze meses para sê-lo. É provável que, por conta disso, no dia 30 de dezembro de 2019 (três dias após a publicação da lei), a Polícia Militar do Estado do Maranhão expediu o Ofício Circular nº 011/2019-DP/3 – Disc/Sind4, inferindo que:

a Lei nº 13.967/2019 estabeleceu o prazo de 12 (doze) meses para regulamentação e implementação da referida Lei, inclusive no que se refere à vedação de medida privativa e restritiva de liberdade como princípio do novo Código de Ética e Disciplina.

Dessa forma, até que seja elaborado o Código de Ética e Disciplina da Polícia Militar do Estado do Maranhão, as disposições do Decreto nº 4.346/2002 (Regulamento Disciplinar do Exército) continuam sendo aplicadas normalmente à PMMA, por força do art. 166 da Lei nº 6.513/1995.

Nota-se que o ofício tem por objetivo deixar claro que, em que pese a publicação da Lei nº 13.967/2019, o RDE ainda continua sendo aplicado, até que o Código de Ética e Disciplina seja criado. Ocorre, porém, que já existe decisão no sentido contrário, reafirmando a eficácia da lei, constante no HC nº 0000020-33.2020.8.16.0013, da Vara da Auditoria da Justiça Militar do Estado do Paraná, nos seguintes termos:

Com a publicação da Lei 13.967/2019, a possibilidade de prisão por infração disciplinar militar foi extinta do ordenamento jurídico pátrio. Assim, tornaram-se ilegais as prisões militares em decorrência de decisões administrativas [...] a necessidade de edição de leis e atos complementares não pode ser oposta aos que se encontram reclusos por força de medida extirpada do ordenamento jurídico. Eventual condição de eficácia da Lei válida não obsta a imediata colocação em liberdade daqueles que estão submetidos à medida hoje considerada ilegal. (BRASIL, 2020).

Vale lembrar que o art. 9º da Lei nº 13.869/2019 (nova Lei de Abuso de Autoridade) prevê a pena de detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa a quem: “Decretar medida de privação de liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais” (BRASIL, 2019b). Em outras palavras, considerar o previsto no ofício, pode resultar em responsabilização criminal, nos termos do dispositivo supracitado.

Em contrapartida ao ofício, o art. 4º da Lei nº 13.967/2019 alui que esta entra em vigor na data de sua publicação (27/12/2019), motivo pelo qual pode se depreender que as medidas privativas de liberdade estão extintas desde o começo da vigência da norma. Sobre o tema, afirma Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2013, p. 165-166): “Publicada a norma, diz-se, então, que a norma é vigente. [...] Vigente, portanto, é a norma válida (pertencente ao ordenamento) cuja autoridade já pode ser considerada imunizada, sendo exigíveis os comportamentos prescritos”.

Dessa forma, os comportamentos contidos na Lei nº 13.967/2019, o que inclui a diretriz “para extinguir a pena de prisão disciplinar para as polícias militares” (BRASIL, 2019a), já podem ser exigidos, independente da criação do Código de Ética, posto que a extinção da prisão disciplinar é o objeto central da referida norma e que ela está em pleno vigor, de acordo com o art. 4º.

Ora, a Lei nº 13.967/2019 deu nova redação ao art. 18 do Decreto-Lei nº 667/1969, constando em seu teor a vedação de medida privativa e restritiva de liberdade, independentemente de qualquer condição. Destarte, não há que se falar em utilização do RDE até que o Código de Ética seja criado por lei estadual, pelo contrário, tendo por base a vedação que a Lei nº 13.967/2019 fez, não se pode falar em aplicação do RDE, pelo menos no tocante à privação da liberdade.

Existe ainda muita discussão a respeito dessa lei e sua real abrangência, porém, uma coisa é irrefutável: imediatamente ou não, certo é que as medidas disciplinares privativas de liberdade aplicadas por intermédio do RDE deixarão de reinar nas vidas dos policiais militares.

Nesse sentido, vale o dizer de Beccaria (2013, p. 39): “Esses princípios desagradarão a todos os que se impuserem o direito de transmitir aos inferiores os golpes de tirania que receberam dos superiores”. É notória a resistência ao fim dessas medidas – percebida no Ofício –, contudo, elas significam, em termos gerais, que a cidadania chegou, ainda que atrasada, aos policiais militares.

A despeito das discussões sobre o fim imediato (ou não) das medidas privativas de liberdade dos policiais militares, é imperioso realçar os avanços pretendidos pela Lei nº 13.967/2019. Sobre tais, destacam-se: a garantia da liberdade dos policiais militares e, consequentemente, a valorização profissional destes.

O fim das medidas privativas de liberdade consubstancia atuação positiva do Poder Legislativo em defesa dos direitos e das garantias fundamentais salvaguardados na CRFB. Em relação aos policiais militares, reflete ainda preceitos contidos na Recomendação nº 012/2012, do Conselho Nacional de Segurança Pública – Conasp/MJ, tais como: “adequação dos regulamentos disciplinares das Polícias e Corpos de Bombeiros Militares Estaduais aos preceitos da Constituição Cidadã de 1988” (BRASIL, 2012).

O quadro existente até então mostrava-se em total desalinho aos preceitos da CRFB, tida como Constituição Cidadã, motivo pelo qual fazia-se necessária essa adequação aos regramentos constitucionais, prezando pelos direitos e pelas garantias individuais.

A Lei nº 13.967/2019 ratifica os Direitos Humanos dos policiais militares, que já eram preconizados pelas Diretrizes Nacionais de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública, através do art. 1º da Portaria Interministerial nº 2 de 2010.

Essa portaria traz diversas diretrizes, dentre as quais cabe destacar o item 32, contido no capítulo Dignidade e Segurança do Trabalho, o qual dispõe: “Erradicar todas as formas de punição envolvendo maus tratos, tratamento cruel, desumano ou degradante contra os profissionais de segurança pública, tanto no cotidiano funcional como em atividades de formação e treinamento” (BRASIL, 2010). Observa-se que a Lei nº 13.967/2019 acaba por concretizar essas premissas, consequentemente, asseverando os Direitos Humanos do Profissional de Segurança Pública.

Quanto à valorização profissional, já constava, desde o PL nº 148/2015 que originou a Lei nº 13.967/2019 que:

A valorização dos Policiais e Bombeiros Militares passa necessariamente pela atualização dos seus Regulamentos Disciplinares, à luz da constituição cidadã de 1988 impondo, por óbvio [sic], sua definição em Lei Estadual específica, com fim da pena de prisão para punições de faltas disciplinares, o devido processo legal, o direito a [sic] ampla defesa, ao contraditório e o respeito aos direitos humanos. (BRASIL, 2015).

O texto é claro no sentido da necessidade de atualizar Regulamentos Disciplinares extremamente arcaicos e incompatíveis com a ordem constitucional brasileira, tendo por consequência básica o “fim da pena de prisão para punições de faltas disciplinares”. Interessante perceber que a valorização profissional dos policiais militares, com base no texto do PL, só poderá ocorrer com a extinção dessas medidas privativas de liberdade aplicadas sob o viés de sanção disciplinar.

Na prática, o policial militar que tenha assegurada a sua liberdade, ou seja, que não seja preso disciplinarmente por qualquer motivo, vê-se valorizado profissionalmente e, por consequência, é mais propenso a prestar o serviço de segurança pública com mais qualidade e efetividade.

Esse cenário privilegia o servidor, que tem sua liberdade garantida, a Administração Pública, que se adequa às normas constitucionais, sem perder de vista a possibilidade de sancionar o servidor transgressor e, por fim, a sociedade como um todo, que passa a ter segurança com mais qualidade.

A liberdade, mais que um direito, revela-se como um ideal, quase que como uma condição da própria existência humana. Nesse viés, afirma, brilhantemente, ROUSSEAU (2017, p. 23): “O homem nasceu livre e em toda parte é posto a ferros. Quem se julga o senhor dos outros não deixa de ser tão escravo quanto eles”. Os “ferros” na liberdade do policial militar são muitos, devendo cada um, carregar, além de todas as intempéries da profissão, a árdua missão de resistir àqueles que insistem em violar o direito fundamental à liberdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, nota-se que a liberdade dos policiais militares, em que pese todas as problemáticas mencionadas, deve ser garantida. Essa não é uma aspiração de classe ou uma vontade particular, trata-se de determinação contida na própria Constituição Federal de 1988.

As medidas privativas de liberdade, nos moldes em que são aplicadas, não podem subsistir, por todos os motivos já delineados no presente artigo, visto que afrontam diretamente preceitos estatuídos na CRFB, além de revelarem-se como inadequadas para o objetivo a que se propõem. Dessa forma, na maioria dos casos, constituem nada mais que medida de demonstração de força de um superior para com o subordinado.

A liberdade de um indivíduo não pode ceder lugar a caprichos de superiores, devendo, pelo contrário, sobrestar-se a estes, posto que assegurada constitucionalmente. Os quartéis não estão imunes à previsão constitucional e nem constituem “ilhas” onde as normas estão alheias ao Estado Democrático de Direito.

Nesse cenário, a Lei nº 13.967/2019 mostra-se como um instrumento imprescindível no combate às mazelas ocorridas no seio da caserna, extinguindo as privações de liberdade e, com isso, evitando a continuação da cultura do medo já instaurada do âmbito militar, na qual ordens absurdas são cumpridas por receio da prisão.

É sabido que muitas são as resistências à Lei nº 13.967/2019, e já estão se mostrando, porém, a lei apenas confirma o que já consta na Constituição – mas era desconsiderado –, motivo pelo qual não se pode cogitar de sua invalidade. Independentemente das vozes contrárias, o seu conteúdo reitera a importância do respeito à liberdade, o que solidifica as normas constantes na Constituição Federal de 1988 e enaltece o Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  1. Art. 47, caput, da Lei nº 6.880/1980: “Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares” (BRASIL, 1980).↩︎

  2. Organização Militar.↩︎

  3. Código de Ética e Disciplina dos Militares do Estado de Minas Gerais.↩︎

  4. Ofício disponibilizado apenas em meio físico.↩︎