Alan Fernandes
Tenente Coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, doutor em Administração Pública e Governo pela Escola de Administração de Empresas da FGV/SP, com estágio doutoral pelo King’s College London.
País: Brasil Estado: São Paulo Cidade: São Paulo
Email de contato:
Este trabalho discute a correlação entre o policiamento comunitário e
o uso da força pelas polícias militares no Brasil. Estratégias policiais
voltadas à aproximação comunitária têm sido uma fórmula acionada em todo
o mundo, desde as décadas de 1970, e no Brasil, desde o início dos anos
1980. Tais políticas foram motivadas por uma promessa de ganhos quanto à
prevenção do crime, aumento da confiança no trabalho policial,
responsividade dos gestores policiais em relação à sociedade,
transparência e mudança de modelos repressivos de enfrentamento ao crime
para formas mais preventivas e construídas coletivamente. Tem, portanto,
ao menos como pressuposto, que seu aprofundamento promoveria menores
níveis de emprego da força pelos órgãos policiais. Contudo, a se julgar
pelos mais de 20 anos das iniciais experiências no Brasil e pela
permanência dos altos níveis de letalidade policial, vislumbra-se
determinados limites dessa política pública. Com base nos registros das
ocorrências atendidas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, a
pesquisa recorreu a modelos quantitativos para analisar se, no período
de maior impacto da implantação do policiamento comunitário naquele
Estado (2004), eventuais reduções do uso da força se fizeram presentes
nas unidades policiais (Companhias de Policiamento) abrangidas pelo
projeto de implantação do modelo japonês
This paper discusses a correlation between community policing and the use of force by military police in Brazil. Oriented-community police strategies have been a formula used worldwide, since the 1970s, and in Brazil, since the early 1980s. A promise of gains in crime prevention, increased confidence in the police work, responsiveness of police managers to society, transparency and shifting repressive models to fight crime toward more preventive and collectively constructed forms. Therefore, it is assumed that its deepening would promote lower levels of use of force by police agencies. However, according by the more than 20 years of the initial experiences in Brazil and the high levels of police lethality, certain limits of this public policy can be seen. Based on the records of events attended by the Military Police of the State of São Paulo, the research has used quantitative models to analyse whether, in the period of greatest impact of the implementation of community policing in that territory (2004), possible reductions in the use of force were made present in the police units (Policing Companies) covered by the project to implement the Japanese model Koban. The results show that community policing can affect the violent practices of the military police depending on other variables implicit in this public policy, that, sometimes, are neglected in favour of formalism and the maintenance of remaining institutional logics.
Data de recebimento:02/03/2020 Data de aprovação:24/11/2020
DOI: 10.31060/rbsp.2021.v15.n2.1269
A discussão sobre o papel das polícias militares no Brasil transita entre duas posições bastante distantes: por um lado, uma forte demanda pelo aumento de sua capacidade de evitar os crimes e promover segurança; por outro lado, uma crítica de que tais corporações seriam incapazes de promover esses ganhos em direção à promoção de segurança pública com cidadania, em razão de sua própria estrutura burocrático-militar que não permitiria a participação social, insulando-se em suas próprias lógicas institucionais, marcadas por autoritarismo e preconceito, em especial contra populações situadas nos níveis mais inferiores na escala social. Essas duas posições marcam os debates no campo, ao menos desde a década de 1980, quando, naquela época, o aumento das taxas de crimes e o processo de reabertura política estabeleceram fronteiras de disputa discursiva, o que, de alguma forma, demarca os embates ainda hoje sobre o tema. Nesse panorama, o policiamento comunitário, trazido para o Brasil no início da década de 80, se mostrava como uma política de segurança pública que promoveria ganhos de legitimidade da polícia junto à opinião pública, pois tanto traria consigo novas formas de proporcionar segurança às pessoas como perfomaria práticas menos autoritárias.
Tendo sido implantado inicialmente nos Estados do Espírito Santo e do Rio de Janeiro nos primeiros anos da década de 1980, outras experiências se seguiram pelo Brasil, com o incentivo de governos estaduais e do governo federal, remanescendo, até os dias atuais, como um paradigma exitoso de reformas de oferta de polícia ostensiva. Cabe ressaltar que, recentemente, o governo federal editou a Portaria nº 43, de dezembro de 2019 (BRASIL, 2019), que institui a Diretriz Nacional de Polícia Comunitária e cria um Sistema Nacional adstrito a essa temática, dando prova do afirmado acima.
Os projetos de polícia comunitária foram avaliados em diferentes aspectos, tendo recebido tanto avaliações positivas, ligadas sobretudo a melhores percepções de parcelas da população quanto ao serviço policial e à percepção de segurança, quanto avaliações negativas, que concluem pela resistência dos órgãos policiais, pela descontinuidade da política ou por representar, na verdade, um aprofundamento dos arbítrios policiais. Essas avaliações serão percorridas no presente trabalho. Todavia, as análises dos impactos do policiamento comunitário sobre o uso da força pelas polícias permanecem como uma agenda de pesquisa em aberto. Por essa razão, este artigo propõe analisar se a implantação do policiamento comunitário em São Paulo promoveu práticas menos violentas nas ocorrências em que policiais militares foram demandados a fazerem o uso de arma de fogo. Distancia-se, assim, dos trabalhos que analisam as dinâmicas das quantidades de mortes produzidas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, para analisar os eventos em que houve o uso da força letal, analisando seus resultados quanto às mortes, às lesões corporais ou à prisão de pessoas em ferimentos, tendo como hipótese explicativa que o policiamento comunitário teria a capacidade de promover mudanças nas práticas das polícias militares em favor de saídas menos repressivas e, portanto, menos violentas.
O artigo está estruturado em cinco partes. Na primeira, o
policiamento comunitário é discutido sob os aspectos das motivações
históricas e políticas, com especial ênfase à sua implantação no Estado
de São Paulo com o estabelecimento da parceria com o Japão (2004). A
segunda parte apresenta a metodologia utilizada para avaliar o impacto
da sua implantação no uso da força das ocorrências atendidas pela PMESP
nos anos 2003 a 2005. A terceira parte do trabalho discute os resultados
encontrados e procura cotejá-los em face das teorias sobre policiamento
comunitário e violência policial. A quarta parte aprofunda as hipóteses
explicativas diante das evidências de que,
Ineficiência no controle dos crimes e brutalidade policial estiveram nas origens da implantação do policiamento comunitário no mundo, razão pela qual ele remanesce como um paradigma de modelo de policiamento que seria mais consentâneo a uma proposta de reforma do papel das polícias em face de crises de legitimidade pelas quais passaram as corporações. Nos Estados Unidos, as revoltas desencadeadas pela morte de Rodney King em 1984 (MUNIZ; PAES-MACHADO, 2010; ROUSSEL, 2013) por policiais do Departamento de Polícia de Los Angeles foram as principais motivações para que fossem buscadas formas de oferta de polícia ostensiva que conjugassem maior proximidade com a população, de forma a permitir que a sociedade participasse das formulações das estratégias de enfrentamento ao crime e tornasse a corporação como um todo mais transparente quanto às suas práticas. Além de experiências nos Estados Unidos, outros países do hemisfério norte, como a Inglaterra (BOWLING; PARMAR; PHILLIPS, 2008) e o Canadá (MUNIZ; PAES-MACHADO, 2010), dentre outros, aproximaram suas práticas de modelos comunitários, igualmente impelidos pela tentativa de governos e polícias de verem aumentados seus níveis de confiança, em face do aumento de crimes e de queda da confiança no trabalho policial.
Essa demanda por maior legitimidade encontrou preocupação adicional
na África do Sul pós-apartheid (STEINBERG, 2014) e na América Latina,
ambos em uma tentativa política de adequar as corporações policiais aos
modelos democráticos que se ergueram entre as décadas de 1980 e 1990, no
sentido de torná-las responsivas à sociedade, bem como reconfigurar suas
práticas cotidianas, marcadas por modelos essencialmente repressivos
(COSTA, 2004; MUNIZ; PAES-MACHADO, 2010; RIBEIRO; MONTANDON, 2015). Além
de déficits no controle do crime e baixos índices de legitimidade
promovidos por formas violentas de atuação (KAHN, 2003; ROUSSEL, 2013),
outros fatores promoveram a adoção de policiamento comunitário. Os
processos de reforma do Estado segundo modelos neoliberais alavancaram
perspectivas que configuraram essas novas formas de controle social,
caracterizado por menores intervenções do Estado, maior presença da
sociedade nas decisões estatais e maior
No Brasil, o policiamento comunitário constitui-se em uma política
recorrente em diversos Estados do Brasil, como Piauí (SOUSA; FEIRREIRA,
2017), Paraíba (FRANÇA, 2019), Rio de Janeiro (COSTA, 2004; MUNIZ, 1999;
RIBEIRO; MONTANDON, 2015), Minas Gerais (RIBEIRO; OLIVEIRA; DINIZ, 2016;
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009), Salvador (REIS, 2005) e São
Paulo (CARDIA
Os contornos do que seja policiamento comunitário abrangem uma variedade de interpretações (RIBEIRO, 2014; RIBEIRO; MONTANDON, 2015; RIBEIRO; OLIVEIRA; DINIZ, 2016). A despeito disso, algumas características são tratadas na literatura como constitutivas do modelo, quais sejam: prevenção baseada na comunidade quanto ao mapeamento dos problemas e definição de prioridades; reorientação do patrulhamento, evitando-se o trabalho reativo e emergencial; emprego de metodologia de resolução de problemas e aumento da responsabilização sobre policiais e descentralização do comando (FERRAGI, 2013; LOCHE, 2012; MONTEIRO, 2005; RIBEIRO; MONTANDON, 2015). Para os fins deste trabalho, importa destacar que a proposição do policiamento comunitário se fundamentou na premissa de reconfigurar as lógicas das polícias militares, afastando as lógicas de enfrentamento ao inimigo, da luta do bem contra o mal e de formas repressivas de controle do crime. Nesse sentido, formas menos violentas de atuação das polícias militares seriam uma resultante do processo. Com base nisso, a hipótese a ser testada neste trabalho é se a implantação do policiamento comunitário em São Paulo promoveu redução do uso da força nas ocorrências em que policiais militares sofreram agressões. Com essa perspectiva, pretende-se compreender como se deram as ações dos agentes públicos envolvidos em uma situação em que a violência foi a condicionante da interação entre a polícia militar e o cidadão.
A ligação entre policiamento comunitário e uso da força não se
constitui uma relação direta nas suas propostas de implantação; todavia,
ela traz a ideia de uma mudança cultural e comportamental que promoveria
formas menos repressoras e, portanto, menos violentas, nos encontros
entre a polícia e a sociedade. Norbert Elias, em
Letalidade policial e uso da força nas práticas da polícia militar paulista constituem objeto de preocupação nos dias atuais, em razão das crescentes taxas de mortes decorrentes do trabalho policial observadas nas últimas décadas, com um aumento nos anos de 2017 a 2019. Algumas análises buscam explicar essa recalcitrante permanência. A primeira delas atribui à ligação histórica os aparelhos repressivos que atuaram durante o regime militar entre os anos 1964 e 1985. Neste período, as polícias militares passaram a ser responsáveis pelo policiamento ostensivo, absorvendo outras corporações policiais do período, e suas lógicas institucionais se aprofundaram em direção aos modelos militares das Forças Armadas. A presença de grupos de extermínio e o aumento da repressão contra grupos contrários ao regime teriam performado as práticas das polícias militares até os dias atuais (CALDEIRA, 2000; GUERRA, 2016; MANSO, 2012). Assim, as ligações com os modelos essencialmente militares vão além das práticas havidas durante a ditadura civil-militar, mas permanecem enquanto lógica institucional derivadas de um pensamento de enfrentamento ao crime e ao criminoso como se fosse uma guerra (BUENO, 2014), em que os policiais militares tutelam uma concepção de ordem, perpetuada sobre uma concepção de bem contra o mal (BUENO, 2018). Há, no entanto, análises que caminham no sentido de aproximarem suas leituras a problemas que transcendem o período ditatorial brasileiro, para colocarem a polícia em face dos problemas próprios da contemporaneidade (COSTA, 2011; PEREIRA, 2014), situando esse objeto em perspectiva com países que não enfrentaram períodos autoritários, mas cujos órgãos policiais apresentaram semelhanças em relação ao modelo brasileiro. Acredita-se que este trabalho dialoga mais com essa segunda linha de pesquisa.
O policiamento comunitário em São Paulo se aprofunda com a adoção do
modelo
O modelo de policiamento comunitário trazido do Japão diferenciava-se
do vigente na PMESP desde 1997. Ao contrário do modelo trazido dos
Estados Unidos, em que problemas ambientais relativos à qualidade de
vida em geral do bairro e abordagens a aspectos sociais, como pobreza e
desigualdade, são considerados para a formulação das políticas de
segurança, o modelo japonês concentra seus esforços em uma prevenção
situacional do cometimento dos crimes, seja pelo esforço em
conscientização de medidas de autoproteção junto à população, seja pela
vigilância nos momentos de eventuais encontros entre vítima e agressor
(FERRAGI, 2013). Com esse enfoque, a aposta japonesa investe na
capacitação de grupos de policiais estabelecidos em postos policiais,
chamados
As Bases Comunitárias de Segurança [implantadas em 1997], apesar de objetivarem a presença policial militar junto à sociedade, não atenderam todas as expectativas, principalmente pela falta de sistematização do emprego do efetivo de recursos materiais e, principalmente, de uma forma de atuação, sendo patente que o sucesso ou até mesmo o fracasso das experiências deveu-se, exclusivamente, a fatores personalistas, fato que foi observado pelo Comando e pela própria comunidade. Fizeram-se necessários, então, novos estudos para sua operacionalidade. Diante dessa evolução, em 2004, o acordo de Cooperação Técnica Brasil/Japão, existente desde 1999, foi reiterado para a aplicação entre janeiro de 2005 e janeiro de 2008, período em que o serviço nas Bases Comunitárias de Segurança foi padronizado e sistematizado metodologicamente. (SOUZA, 2019).
Inicialmente, o modelo
Diante da introdução desse modelo de policiamento e em face dos resultados esperados quanto à mudança das práticas da PMESP em sua relação com a sociedade, procurou-se trazer evidências no sentido de avaliar se o policiamento comunitário impactou o uso da força nas ocorrências atendidas pela corporação.
A PMESP publica, diariamente, em
“Resistência”, para os efeitos de sua classificação no
Cabe salientar que as ocorrências que resultam em mortes ou lesões corporais praticadas por policiais no Estado de São Paulo não recebem a classificação de “resistência” desde 2013, quando o termo foi substituído por “morte decorrente de intervenção policial” ou “lesão corporal decorrente de intervenção policial’, respectivamente (BUENO, 2014; BUENO; LIMA; TEIXEIRA, 2019). Cabe reafirmar que, neste trabalho, não serão analisadas somente as ocorrências que resultaram mortes ou lesões corporais, mas também aquelas em que pessoas foram presas sem ferimentos, razão pela qual as categorias “mortes e/ou lesões corporais decorrentes de intervenção policial” não identificam as unidades de análise. Com base nesse suporte, foi possível extrair as dinâmicas das ocorrências classificadas como “resistência” – nos termos acima descritos – pela PMESP, podendo, assim, compreender como se deu o emprego do uso da força nos eventos selecionados. Em razão disso, a partir deste ponto do texto, preferiu-se retirar as aspas quando o termo resistência for escrito, pelo fato de designar, neste trabalho e no universo jurídico, elementos que não se comunicam integralmente com os termos “morte/lesão corporal decorrente de intervenção policial”.
A base consultada apresenta uma amostra homogênea dos casos de
resistência atendidos pela PMESP em cada ano analisado, pelo fato de que
a metodologia institucional foi a mesma nos anos estudados. Assim,
possíveis vieses na publicação do
A versão digital do
O período analisado, 2003 a 2005, tem o propósito de buscar mensurar tais hipóteses a partir do curto prazo da implantação da política, uma vez que se acredita que seus efeitos são mais efetivos quanto mais recente for sua implementação, cujo vigor institucional, contrariamente, diminuiria no transcorrer do tempo. Dessa forma, buscou-se analisar se a implantação do policiamento comunitário nesses territórios impactou o uso da força nos atendimentos das ocorrências de resistência, por meio dos resultados finais das ocorrências, quais sejam mortes, lesões corporais ou presos ilesos. A hipótese que subjaz a essa questão se alicerça na suposição de que orientações mais comunitárias da oferta de serviços policiais sejam indutoras de uma mudança cultural no interior das corporações policiais que privilegiassem formas menos repressivas para a solução das questões de segurança pública e, portanto, menos recorrentes ao uso da força.
A pesquisa junto ao
Tabela 1: Ocorrências de resistência atendidas pela Polícia Militar/SP na cidade de São Paulo (2003-2005)
2003 | 2004 | 2005 | Total | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | N | % | N | % | |
Ocorrências sem prisão de pessoas | 12 | 2,60 | 25 | 6,60 | 20 | 7,02 | 57 | 5,06 |
Ocorrências com prisão (lesão corporal e ilesas) de pessoas ou morte de pessoas | 450 | 97,40 | 354 | 93,40 | 265 | 92,98 | 1069 | 94,94 |
Todas as pessoas foram mortas | 213 | 47,33 | 143 | 40,40 | 71 | 26,79 | 427 | 39,94 |
Todas as pessoas foram lesionadas | 65 | 14,44 | 64 | 18,08 | 62 | 23,40 | 191 | 17,87 |
Todas as pessoas foram presas (sem lesões) | 21 | 4,67 | 49 | 13,84 | 53 | 20,00 | 123 | 11,51 |
Todas as pessoas foram mortas ou lesionadas, sem prisão de pessoas em outras condições (ilesas) | 29 | 6,44 | 12 | 3,39 | 8 | 3,02 | 49 | 4,58 |
Todas as pessoas mortas ou presas ilesas | 55 | 12,22 | 40 | 11,30 | 21 | 7,92 | 116 | 10,85 |
Todas as pessoas foram lesionadas ou presas ilesas | 56 | 12,44 | 41 | 11,58 | 47 | 17,74 | 144 | 13,47 |
Todos foram mortos, lesionados ou presos ilesos | 11 | 2,44 | 5 | 1,41 | 3 | 1,13 | 19 | 1,78 |
Fonte: Centro de Inteligência da Polícia Militar/SP. Elaboração própria.
Das 1069, ou 94,94%, ocorrências que resultaram em alguma forma de custódia, seja morte, lesão corporal ou prisão sem lesões, em 427, ou 39,94%, não houve sobreviventes; em 191, ou 17,87%, todas as pessoas sofreram lesões corporais, e em 123, ou 11,51%, todas as pessoas foram presas sem lesões. O conjunto mostra uma predominância de ocorrências em que todos morrem, seguido por ocorrências em que todos ficam feridos e, por último, por ocorrências em que todos são presos sem danos.
Essas categorias foram analisadas em concomitância. Todas as pessoas foram lesionadas ou presas ilesas em 144 ocorrências, ou 13,47%; todas foram mortas ou presas ilesas em 116 ocorrências, ou 10,85%; todas foram mortas ou lesionadas em 49 ocorrências, ou 4,58%. A presença de mortos, pessoas presas lesionadas e ilesas se deu em 19 ocorrências, ou 1,78%, dos fatos analisados.
Em uma análise longitudinal (2003-2005), verifica-se que dentre os eventos analisados, o resultado das ocorrências variou significativamente. Para a variável “mortos”, isolada ou cumulativamente, ocorreu uma variação negativa, com uma queda de 20,54% para “todos mortos”, 3,43% para “todos mortos ou lesionados” e 4,30% para “todos mortos ou presos ilesos”. As resistências com a ocorrência de pessoas feridas, isolada ou cumulativamente, apresentaram variação positiva de 8,95% para “todos ficam lesionados” e de 5,29% para “todos ficam lesionados ou são presos sem lesões”; a presença de pessoas lesionadas teve variação negativa apenas quando combinadas com mortes, com queda relativa de 4,30%, como já trazido acima. Já “pessoas presas sem apresentarem lesões corporais” apresentaram uma variação positiva, de 15,33% para “todos presos sem lesões” e 5,29% para “todos presos ilesos ou com lesões”. Tal qual o observado quanto às lesões corporais, a variável “preso ileso” apresentou variação negativa, 4,30% apenas quando foi associada a mortes.
Gráfico 1: Resultados das ocorrências de resistência atendidas pela Polícia Militar/SP na cidade de São Paulo (2003-2005)
[CHART]
Fonte: Centro de Inteligência da Polícia Militar/SP. Elaboração própria.
Com o intuito de avaliar o impacto da implantação do policiamento
comunitário, as ocorrências foram categorizadas em dois diferentes
grupos, conforme o local onde as pessoas foram mortas ou presas (com ou
sem lesões): Companhias de Policiamento
O percentual de resistências em que todas as pessoas morreram
apresentou variação negativa para ambos os grupos, tendo sido maior a
queda dentre o grupo de companhias
Gráfico 2: Resultado das ocorrências de resistência atendidas pela Polícia Militar/SP na cidade de São Paulo em que todas as pessoas foram mortas (2003-2005)
[CHART]
Fonte: Centro de Inteligência da Polícia Militar/SP. Elaboração própria.
O percentual de ocorrências em que todas as pessoas foram lesionadas
apresentou variação positiva para ambos os grupos, havendo uma
aceleração a partir do ano de 2004 para o grupo de companhias
Gráfico 3: Resultado das ocorrências de resistência atendidas pela Polícia Militar/SP na cidade de São Paulo em que todas as pessoas foram feridas (2003-2005)
[CHART]
Fonte: Centro de Inteligência da Polícia Militar/SP. Elaboração própria.
No que se refere ao conjunto das ocorrências em que todas as pessoas
foram presas sem que fossem feridas, ambos os grupos apresentaram uma
variação positiva: 14,29% para o grupo de companhias
Gráfico 4: Resultado das ocorrências de resistência atendidas pela Polícia Militar/SP na cidade de São Paulo em que todas as pessoas foram presas ilesas (2003-2005)
[CHART]
Fonte: Centro de Inteligência da Polícia Militar/SP. Elaboração própria.
Os resultados mostram que houve uma variação negativa para ambos os
grupos quanto ao resultado morte nas resistências atendidas pela PMESP
no período; todavia, esse resultado se fez mais presente nas companhias
A primeira delas diz respeito às limitações estatísticas da amostra,
pois a distância quantitativa (958 casos
As demais explicações referem-se à questão da correlação entre
policiamento comunitário e uso da força pelas polícias. Cabe dizer que
não foram encontradas análises nesse sentido, não obstante a implantação
dessa política pública ter sido objetivo de reiteradas avaliações, tais
como em Kahn (2003), Universidade Federal de Minas Gerais (2009),
Oliveira (2012), Tavares dos Santos
Dito isso, a segunda hipótese é a de que o policiamento comunitário
não tem o efeito de produzir menores níveis de uso da força. Análises
nacionais e internacionais apontam que uma das consequências da
implantação do policiamento comunitário é que, ao mesmo tempo em que
estabelece melhores laços entre a polícia e as comunidades a que se
destinam, acentua, de maneira contrafactual, antigas práticas contra
populações que não faziam parte daquele específico segmento social,
configurando um recorte social denominado “anticomunidade” (Roussel,
2013), formado em função de recortes de raça, condição econômica e
Entre 2002 e 2004 houve tendência ascendente dos índices de letalidade policial, período em que o coronel Alberto Silveira Rodrigues esteve no comando da PMESP. Substituído pelo coronel Elizeu Eclair Teixeira Borges, a polícia militar registrou letalidade policial decrescente abrupta em 2005. Em análise dos membros da comissão sobre o período, duas conclusões principais são acionadas: 1) a mudança no comando da PM teve impacto direto na redução desse índice, já que o coronel Eclair faz parte de uma “[...] linha mais moderada no que diz respeito à violência policial”; 2) o episódio da morte do dentista negro Flávio Sant’Anna, conforme já citado, assassinado por policiais militares por engano, causou grande repercussão na mídia e provocou uma série de reuniões e orientações internas na PM, bem como “[...]o sentimento de que o incidente passou dos limites” (ambas as citações constam de documento interno da Comissão de Letalidade). (BUENO, 2014, p. 116).
A terceira explicação para a redução do uso da força no período segue no sentido de que o policiamento comunitário tem o efeito de produzir menores níveis de uso da força, haja vista que a redução do uso da força coincide com a implantação do policiamento comunitário em São Paulo. Nessa hipótese, pode-se defender que enquanto para os territórios em que foi implantada, o policiamento comunitário significou medidas pontuais de gestão das Bases Comunitárias de Segurança já instaladas, como já tratado anteriormente, para o restante da corporação, mais distantes do pragmatismo da implantação, ressoa com uma disposição mais geral de aproximação comunitária, o que indicaria uma disposição mais profunda por parte do governo e da alta direção da Polícia Militar em refutar o uso da força. Para tanto, com o intuito de aprofundar essa discussão, foram analisadas as dinâmicas da Companhia em que foi instalada a Base Comunitária de Segurança do Jardim Ranieri, na qual o projeto de policiamento comunitário atingiu os maiores níveis de reconhecimento, sendo premiado em duas edições do Prêmio Polícia Cidadã (2005 e 2006), promovido pelo Instituto Sou da Paz, e com o Concurso Nacional de Polícia Comunitária Senasp/Motorola (2005) (SILVA, 2006). Alia-se a isso o fato de seu comandante de Companhia à época, capitão Gilberto Tardochi da Silva, ter se destacado por suas iniciativas em prol do projeto, alcançando, dali a alguns anos, a função de chefe da diretoria de Policiamento Comunitário e Direitos Humanos da PMESP. Acredita-se que, com essa análise, seja possível aproximar-se de compreender se o policiamento comunitário nos moldes implantados teve a capacidade de atingir alguma mudança comportamental para além dos policiais militares envolvidos com o projeto. Diferentemente dos outros gráficos, que apresentaram o resultado percentual dos resultados das dinâmicas das ocorrências, o Gráfico 5 exibe a diferença entre os resultados das ocorrências de 2005 e 2003.
Gráfico 5: Variação dos resultados das ocorrências de resistência atendidas pela Polícia Militar/SP na cidade de São Paulo (2003-2005)
[CHART]
Fonte: Centro de Inteligência da Polícia Militar/SP. Elaboração própria.
Houve 26 ocorrências de resistência na Companhia em que a Base Comunitária de Segurança do Jardim Ranieri se localizava, o que equivale a 2,43% do total estudado. Verifica-se que a variação do resultado morte nos eventos apresentou uma diminuição se comparada com o restante da cidade de São Paulo ou com as demais Companhias inseridas no projeto de implantação, ao mesmo tempo em que, também comparativamente aos demais grupos, houve maior percentual de pessoas presas feridas e presas ilesas, indicando que, em uma gradação do uso da força, as ações praticadas pelos policiais militares foram menos violentas.
Atribuímos os menores níveis de uso da força no Jardim Ranieri à profundidade que o policiamento comunitário atingiu naquele território em relação às demais Companhias do projeto. Como pontos a serem brevemente elencados, têm-se maior envolvimento da liderança policial e dos policiais militares operadores da BCS Ranieri.
Para o microcosmo da BCS, portanto, o “mundo de fora" também inclui o mundo burocrático (médios e altos oficiais). Eles impõem politicas incongruentes, surgidas de caminhos administrativos e acadêmicos que são distantes das realidades das ruas. Em parte, isso explica porque sargentos se sentem insatisfeitos e desmotivados quando seus comandantes de companhia não se importam ou não apoiam os esforços relacionados às BCS no modelo koban. A BCS Ranieri (bastante influenciada pelo koban), pelo contrário, representa um caso onde tais contradições diminuíram pela intensa informação entre os diferentes níveis hierárquicos. (FERRAGI, 2013, p. 61, grifo nosso, tradução livre).
Alia-se a isso o fato que a implantação e a consolidação do policiamento comunitário no Jardim Ranieri envolveram um conjunto plural de atores locais, tanto estatais, como o Ministério Público (SILVA, 2006), como não-estatais, como, por exemplo, o Fórum em Defesa da Vida Contra a Violência, constituído em 1996 pela Região Pastoral do M’Boi Mirim, pelo Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo e pela Central de Movimentos Populares do Campo Limpo (SILVA, 2006, p. 76). Esse arranjo político-social, aliado ao envolvimento das lideranças policiais, pode ter tido a capacidade de promover mudanças na cultura policial, seja pela mudança na percepção por parte dos policiais quanto ao ambiente em que trabalham, seja por uma maior vigilância sob suas práticas.
As políticas públicas requerem avaliações periódicas de suas ações com a finalidade de aferir seus impactos e, assim, reorientar os rumos adotados. A segurança pública, cujo campo reúne uma série de iniciativas de gestores políticos e policiais, carece de trabalhos que consubstanciem um determinado corpo de práticas que orientem as decisões sobre como auferir ganhos em relação à segurança das pessoas concomitantemente ao respeito aos direitos civis e ao Estado de Direito. Nessa lacuna, a sociedade brasileira fica refém da má gestão do Estado pelo fato de que, mesmo com o empenho de considerável parcela de recursos públicos, se vê vítima ora da criminalidade ora da violência estatal.
Uma das mais eloquentes apostas para novos patamares em segurança
pública permanece sendo o policiamento comunitário, que promete a
entrega de menores níveis de crime e de ganhos de confiança em relação
às polícias. Uma parcela dos trabalhos que se dedicaram a avaliar seus
resultados traz os impactos positivos da implantação, como o aumento da
sensação de segurança ainda mais significativamente quanto maior for a
proximidade com a polícia (CARDIA
Neste artigo, procurou-se, em específico, analisar a correlação entre essa política e o uso da força pelas polícias militares. Dialoga com a pesquisa publicada por Emanuel Nunes de Oliveira (2012) que, recorrendo a modelos quantitativos, buscou avaliar se as mortes produzidas por policiais militares de São Paulo atendiam a critérios ligados ao território em que eles trabalhavam ou se tinham correlação com as mudanças em relação às políticas de segurança pública adotadas pelos governos estaduais. Para o autor, há uma “clara relação entre a plataforma política do Executivo e o tipo de padrão da polícia” (op. cit., p. 42). Assim, se há essa correlação, as configurações introduzidas pelo policiamento comunitário, ao se constituir um discurso governamental, também traria redução da letalidade policial?
Os resultados apontam que o modelo
ALVES, B. B. M. P.
BOWLING, B.; PARMAR, A.; PHILLIPS, C. Policing minority ethnic
communities. In: NEWBURN, T. (Ed.).
BRASIL (EXECUTIVO).
BRASIL (LEGISLATIVO).
BUENO, S.
BUENO, S. Letalidade na Ação Policial: os Desafios para a
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Segundo Silva (2006), já em 1999, a PMESP e a Jica assinam um
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Comunitárias de Segurança (BCS)