Luto por suicídio e posvenção na Polícia Militar

Fernanda Novaes Cruz

Pesquisadora de Pós-Doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo - NEV/USP. Coordenadora Adjunta de Ensino e Pesquisa do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES Brasil). Doutora em Sociologia pelo IESP-UERJ. Mestre e Bacharela em Ciências Sociais pela UERJ. Bacharela em Comunicação Social (UFRJ).

País: Brasil Estado: São Paulo Cidade: São Paulo

Email: fernandanovaescruz@gmail.com Orcid: https://orcid.org/ 0000-0002-2874-5827

Amanda Neves Rastrelli

É doutoranda no Programa de Pós Graduação em Psicologia Social (PPGPS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestra pelo mesmo programa.

País: Brasil Estado: Rio de Janeiro Cidade: Nova Friburgo

Email: rastrelli.amanda@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0559-1175

Dayse Miranda

Pós-doutorado em Sociologia pela Universidade do estado do Rio de Janeiro. Atualmente, é presidente do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio e coordenadora do Grupo de Estudos em Saúde Mental, Violência(s) e Segurança Pública do IPPES. Autora dos livros: O que a Polícia quer: poder ou competência? e Por que Policiais se Matam? e co-autora da obra As vítimas ocultas.

País: Brasil Estado: Rio de Janeiro Cidade: Rio de Janeiro

Email: ensinoepesquisa@ippesbrasil.com.br Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7284-1867

Contribuições das autoras:

Fernanda Novaes Cruz trabalhou na concepção e no delineamento, na análise e interpretação dos dados e na redação final do artigo. Dayse Miranda trabalhou na concepção e no delineamento, na análise e interpretação dos dados e na redação final do artigo. Amanda Neves Rastrelli trabalhou na concepção e no delineamento, na análise e interpretação dos dados e na redação final do artigo.

RESUMO

Este artigo apresenta e analisa o processo de luto vivenciado por familiares de policiais militares mortos por suicídio. Dez entrevistas com familiares de policiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) foram examinadas. Esses dados foram coletados pela pesquisa sobre o suicídio e risco ocupacional desenvolvido na referida instituição, entre 2010 e 2012. Destacamos cinco fatores principais nas narrativas, três específicos ao suicídio, que são: (i) as diferenças nos rituais fúnebres relacionados a essas mortes em relação a outras mortes, (ii) a importância da transparência na investigação das causas desses óbitos e, (iii) a ausência de políticas específicas para esses familiares. Além desses, destacamos (iv) as mudanças na dinâmica familiar a partir das mortes e (v) os distintos percursos no acesso desses familiares aos direitos. Por fim, defendemos a inclusão desse grupo nas políticas institucionais de promoção da saúde mental.

Palavras-chave: Luto. Suicídio policial. Polícia Militar. Sobreviventes do suicídio. Posvenção.

ABSTRACT

Grieving for suicide and postvention in the Military Police

This paper presents and discusses relevant aspects of the grieving process experienced by family members of military police officers killed by suicide and the institutional responses provided by the Military Police of the State of Rio de Janeiro (PMERJ). We conducted ten interviews with family members of police officers killed by suicide. This data was part of a study on suicide and occupational risk carried out between 2010 and 2012. From the narratives we highlight five main factors, three that are specific of this type of death, such as, (i) differences in funeral rituals compared to other types of deaths, (ii) the importance of transparency in the investigation of the causes of these deaths, (iii) the absence of specific policies for these family members. Besides that, we highlight (iv) changes in family dynamics after the relative death, and (v) families’ difficulties and facilities in accessing rights. Finally, we argue for the inclusion of this group in the promotion of mental health institutional policies.

Keywords: Grieving. Police suicide. Military Police. Suicide survivors. Postvention.

Data de Recebimento: 26/01/2021 – Data de Aprovação: 04/06/2021

DOI: 10.31060/rbsp.2022.v.16.n3.1413

Introdução

A morte é um dos tabus de nossa sociedade. Temos dificuldade em aceitar e lidar com a morte, seja de nós mesmos ou de outras pessoas. Quando se trata da morte de outras pessoas, fatores como as circunstâncias do fato, as motivações, as condições do corpo e as pessoas envolvidas influenciam essas percepções e, consequentemente, o processo de aceitação (SOARES; MIRANDA; BORGES, 2006).

As mortes violentas– suicídios, homicídios ou acidentes – podem ser ainda mais difíceis de serem assimiladas do que as mortes naturais, especialmente entre os casos de violência autoprovocada. A morte por suicídio é marcada por preconceitos e estigmas que, consequentemente, afetam os familiares das vítimas. O processo de luto por suicídio, segundo especialistas, provoca questionamentos, sentimentos e emoções específicas. Trata-se de uma experiência de perda que difere do luto por mortes naturais ou até mesmo por outras mortes por causas externas, como acidentes e homicídios (BRASIL, 2011).

Estima-se que a cada morte por suicídio, cinco a dez pessoas são afetadas social, emocional e economicamente. Entre elas estão: familiares, amigos e pessoas próximas à vítima (WHO; IASP, 2008). Aqueles que são diretamente impactados pelo suicídio são chamados de “sobreviventes do suicídio”. Os sobreviventes:

têm maior probabilidade de desenvolver sentimentos de responsabilidade pela morte do ente querido do que os que perderam alguém por causas naturais, além de se sentirem mais envergonhados e isolados dos demais. Esses sentimentos são particularmente acentuados em pais cujos filhos se suicidaram. (BERTOLOTE, 2012, p. 120).

Além dessa sensação de responsabilidade pela morte, a culpa, a vergonha, a busca incessante por motivos, a rejeição, o abandono, autoacusações, isolamento e mudanças na dinâmica familiar são sentimentos e comportamentos vivenciados pelos “sobreviventes de suicídio” (WHO; IASP, 2008). Fukumitsu e Kovács (2016) salientam que filhos enlutados por suicídio relataram “sentir vergonha” ao compartilhar a causa da morte de seus pais. Por vezes, eles preferiram dizer que a vítima tinha sofrido um acidente de carro ou morrido por descuido do que assumir a real causa mortis.

Famílias com histórico de mortes violentas são altamente vulneráveis ao risco do suicídio. Soares, Miranda e Borges (2006), ao entrevistarem familiares que haviam perdido parentes por suicídio, identificaram que 1/6 (um sexto) das vítimas já tinha vivenciado pelo menos mais um suicídio na família.

A perda e o luto dos sobreviventes do suicídio são elementos relevantes para a formulação de estratégias de posvenção para esse público. A posvenção visa aliviar os efeitos relacionados com o sofrimento e a perda, prevenir o aparecimento de reações adversas e complicações do luto, minimizar o risco de comportamento suicida nos enlutados por suicídio e promover resistência e enfrentamento em sobreviventes (BERTRAIS, 2014; SCAVACINI, 2011). A posvenção busca “atenuar o abalo da perda por suicídio e possibilita ainda a prevenção do sofrimento das próximas gerações” (FLEXHAUG; YAZGANOUGLU apud FUKUMITSU; KOVÁCS, 2016, p. 4).

Este artigo é derivado do material coletado para uma pesquisa que buscava compreender o comportamento suicida entre policiais militares do estado do Rio de Janeiro. A pesquisa demonstrou como o acesso facilitado ao meio e à presença de fatores organizacionais, sociais, situacionais ou individuais eram relevantes para compreender o suicídio policial (MIRANDA, 2016). Na ocasião da pesquisa, além de entrevistas com policiais que haviam pensado ou tentado suicídio e com outros que não haviam pensado nem tentado suicídio (grupo controle), foram entrevistados familiares e amigos de policiais vítimas de mortes violentas (homicídio, suicídio e acidente). Embora o objetivo inicial das entrevistas com os familiares fosse compreender a trajetória das vítimas, a análise desse material demonstrou uma série de processos específicos vivenciados por essas famílias a partir da morte de seu ente querido, bem como ações que poderiam contribuir para amenizar o sofrimento que envolve esse processo. A partir dessa constatação, passamos a nos colocar as seguintes reflexões: como esses familiares lidaram com a perda de seus familiares por suicídio? E, em uma perspectiva institucional, qual foi a atuação da Polícia Militar nesses casos?

Neste artigo, analisamos o luto por suicídio sob a ótica de familiares de policiais militares. As narrativas elucidam as consequências das mortes por suicídio sobre o cotidiano das vítimas, como também convidam o leitor a refletir acerca do papel das organizações de segurança pública no enfrentamento do luto dos sobreviventes do suicídio. Por fim, reforçamos a importância de ações de posvenção na condução desses processos.

Metodologia

O projeto de pesquisa Suicídio e risco ocupacional: o caso da Polícia Militar do Rio de Janeiro, realizado entre 2010 e 2012, investigou a magnitude e as dimensões do comportamento suicida entre policiais militares (MIRANDA, 2012). Foram entrevistados policiais que declararam “ter pensado e/ou tentado suicídio em algum momento de suas vidas”, assim como aqueles que disseram “nunca ter vivenciado essas experiências” (grupo controle). Os sobreviventes enlutados por homicídio, suicídio e acidente na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro também foram objeto de análise. A investigação mapeou as consequências psicossociais e organizacionais das perdas de um ente querido por mortes violentas na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Como os familiares lidam com a perda de seus entes queridos por mortes violentas? Como a Polícia pode contribuir para o processo de luto de familiares e amigos, vítimas indiretas das mortes violentas? A meta foi comparar as possíveis semelhanças e diferenças do processo do luto de familiares e amigos de policiais vitimizados por mortes violentas.

A seleção dos participantes enfrentou uma série de obstáculos. O maior deles foi o acesso aos entrevistados. A partir de duas fontes de informações, uma organizada pelo setor da Polícia Militar, intitulado Grupo de Atendimento ao Familiar do Policial Falecido (GAFPMF), e a outra, uma lista de nomes e contatos, organizada pelo Grupo de Mães e Viúvas da PMERJ, a equipe de pesquisa elaborou um banco de dados integrado com os contatos dos parentes de policiais mortos por acidentes, homicídios e suicídio.

Esses familiares foram convidados a assistirem à palestra “As Vítimas Ocultas da Violência1 na PMERJ”. Ao final da palestra, os participantes receberam um envelope que continha um formulário com uma autorização para que membros da equipe entrassem em contato com aqueles que consentissem em participar da pesquisa. Seguindo os parâmetros previstos pelo Comitê de Ética, todos que aceitaram participar da entrevista assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)2. A partir do consentimento dos entrevistados, todas as entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas com auxílio de um software para análise qualitativa. De forma a garantir o anonimato das vítimas e dos entrevistados, os nomes das vítimas e dos entrevistados utilizados neste trabalho são fictícios.

As consequências individuais e institucionais das mortes por suicídio no cotidiano de familiares de policiais são objetos de análise deste artigo. Para tanto, exploramos dez entrevistas com familiares de policiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). Em alguns casos, tivemos a oportunidade de interpretar as entrevistas com mais de um familiar da mesma vítima. Esse fato possibilitou identificar semelhanças e diferenças entre as percepções dos entes queridos das vítimas. Esse assunto será retomado nas próximas seções.

O suicídio entre policiais militares e os rituais institucionais para as mortes

Nos Batalhões da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), em unidades operacionais convencionais e especiais, é muito comum a presença de um espelho com a seguinte frase: “Esse espelho reflete você e você a PMERJ”. Segundo Muniz (1999), a formação da identidade de um policial militar passa pela construção do ethos de um profissional comprometido incondicionalmente com a sua instituição.

A construção do ethos do policial militar, ou melhor, a ressocialização no mundo da caserna imprime marcas simbólicas que são visíveis ao primeiro olhar, que se mostram evidentes logo no primeiro contato. O espírito da corporação encontra-se cuidadosamente inscrito no gestual dos policiais, no modo como se expressam, na distribuição do recurso à palavra, na forma de ingressar socialmente nos lugares, no jeito mesmo de interagir com pessoas, etc. (MUNIZ, 1999, p. 89).

O ethos policial cria o sentimento de pertencimento e laços de solidariedade, o que cumpre um papel fundamental no enfrentamento da rotina do trabalho policial. Por outro lado, “ser policial”, especialmente no contexto da cidade do Rio de Janeiro, implica em inúmeras privações, como: deixar de frequentar determinados locais, se afastar do convívio de pessoas, esconder a sua identidade profissional para não expor a si mesmo e aos seus familiares, entre outros. Portanto, soma-se aos riscos inerentes à profissão, como portar armas e enfrentar situações de violência, uma demanda de mudança de comportamento. Por vezes, essas mudanças afetam não apenas o policial, mas também seus familiares.

Apesar de todas essas dificuldades, espera-se sempre que o policial esteja pronto para vivenciar com bravura qualquer situação. Um erro na ação pode colocar em risco sua própria vida ou a de outros. Ao mesmo tempo, as vulnerabilidades a que ele se expõe, muitas vezes, não recebem a devida atenção, seja por ele mesmo, por seus colegas ou superiores, ou pelas instituições às quais ele está vinculado.

O suicídio policial pode ser pensado como o ápice dessas vulnerabilidades. O estudo conduzido com policiais militares do Rio de Janeiro mostrou que o risco relativo de morte de policiais militares por suicídio foi quase 4 vezes superior ao da população geral (homens e mulheres), entre 2005 e 2006. Ainda assim, os autores sugerem que as estatísticas oficiais de suicídios (consumados e tentativas) são subnotificadas por inúmeras razões.

Entre elas, estão as questões socioculturais – o tabu em torno do fenômeno; a proteção ao familiar da vítima (a preservação do direito ao seguro de vida) e a existência de preconceito ao policial militar diagnosticado com problemas emocionais e psiquiátricos. (MIRANDA, 2016, p. 28).

A relevância do espírito de corpo para a construção do ethos dos policiais militares, que iniciou a discussão desta seção, é fundamental para a compreensão dos rituais simbólicos das homenagens institucionais aos policiais quando são vitimizados. Esses rituais estão associados à bravura do policial e à gratidão pela dedicação da vítima à atividade policial.

Na PMERJ, a morte de um policial pode ser classificada por “falecimento em ato de serviço, em consequência de ato de serviço ou falecimento sem ato de serviço” (PMERJ, 2015). Se o policial é morto durante um confronto armado, por exemplo, o fato é considerado um “ato de serviço”. Essa categoria de morte implica em uma série de rituais e serviços oferecidos pela Polícia Militar, entre eles, os serviços de Capelania3 e a Guarda Fúnebre com salva de tiros para o local do sepultamento, a banda com músicos, o corneteiro e a disponibilização da bandeira nacional. A instituição deve informar que o fato ocorreu em decorrência de “ato de serviço”. Os custos do sepultamento4 e os rituais são de responsabilidade da Polícia. O Comando, nessas circunstâncias, determina também a criação de uma Comissão de Pêsames composta por policiais militares pertencentes à unidade de trabalho do falecido que acompanhará o sepultamento (PMERJ, 2015).

O “ato de serviço” também pode se estender às mortes provocadas por acidentes. Nesses casos, parte das honrarias descritas no parágrafo anterior é concedida. Quando não há “ato de serviço”, a instituição policial não oferece honrarias e nem financia os custos do sepultamento. O velório fica a cargo dos familiares, se a vítima não possuir algum plano funeral.

Quando a causa mortis é o suicídio, há outras especificidades. De acordo com o Decreto N° 544 (de 7 janeiro de 1976), o “ato de serviço” não se aplica às mortes autoinflingidas. Todos os sobreviventes entrevistados tiveram as despesas do velório pagas pela família ou por financiamento coletivo realizado pelos colegas de trabalho. Houve casos em que colegas da vítima não tiveram autorização para o comparecimento ao velório e ao enterro. Esses relatos reforçam o estigma social que caracteriza as mortes por suicídio na Polícia Militar. Silva (2015) explica que a morte por suicídio na PM, por estar associada ao preconceito e ao estigma social, por vezes, torna-se não reconhecida, podendo intensificar o véu de silêncio que se forma em torno dos enlutados.

A fala da esposa Laís traduz a indignação dos familiares com a ausência de apoio institucional no momento da perda. Quando perguntamos quem havia arcado com as despesas do velório, em suas palavras: “Tudo foi a gente. Tudo foi a gente. Tudo foi a gente. A PM não deu nenhum tostão. Nem uma salva de tiros a PM deu pra ele. O tempo que ele trabalhou, nada. Nem uma bandeira, nada botaram” (Laís, esposa do sargento Denis).

Quando questionada se a polícia havia liberado os colegas da vítima para comparecerem ao velório, a esposa respondeu: “Todos os policiais amigos dele [compareceram ao velório]. Todos eles foram fardados. Carregaram o caixão, todos eles. Mas porque eram amigos dele. Trabalhavam com ele, amigos dele. Até os que não trabalhavam” (Laís, esposa do sargento Denis).

Por fim, a pesquisadora questionou se os colegas compareceram porque houve uma comitiva liberada pela polícia e a esposa desabafa: “Nada disso. Nada disso. Nada disso”, indicando que o comparecimento dos colegas foi uma iniciativa individual (Laís, esposa do sargento Denis).

As narrativas dos familiares denunciam um sentimento de injustiça frente ao regulamento da corporação, no que tange à concessão diferenciada do “ato de serviço”. A ausência dos rituais fúnebres nas mortes por suicídio é percebida pelos familiares entrevistados como falta de reconhecimento institucional do trabalho realizado pelo seu ente querido. Trata-se de um sentimento de abandono e rejeição por parte da PMERJ, segundo os entrevistados.

A perda, o trauma e o luto

Na seção anterior, analisamos os rituais de morte. Contudo, esse é apenas o primeiro passo de um longo processo vivenciado por sobreviventes enlutados por suicídio. Lidar com a perda de algum ente querido já é, por si só, um episódio doloroso e marcante na vida de uma pessoa. A sensação de desamparo provocada pela morte intencional pode ocasionar um trauma. O trauma é oriundo de um acontecimento na vida do indivíduo que, por sua intensidade, e pela incapacidade de o sujeito responder de forma adequada, provoca transtornos e efeitos patogênicos na organização psíquica do indivíduo (FUKUMITSU; KOVÁCS, 2016). Trata-se de um período de desequilíbrio psicológico, resultante de um evento ou uma situação danosa que o indivíduo não consegue resolver utilizando suas estratégias defensivas usuais, geralmente levando a um estado de crise (ANTON; FAVERO, 2011).

A elaboração e a superação do trauma são essenciais para evitar que os sobreviventes revivam a angústia da perda, quando em contato com pessoas, locais ou situações que rememorem o ente que se foi. Essa elaboração acontecerá por meio de um processo de luto. O luto adquire a função de transformar a dor da perda em outra potência que favoreça quem o sofre. É importante que a fase de luto não seja ignorada; expressar e lidar com os sentimentos são essenciais para a vivência da perda pelas vítimas ocultas (ANTON; FAVERO, 2011).

O luto é um processo que acompanha toda a vida do sujeito, uma experiência pela qual a vítima indireta terá que se desvencilhar do objeto amado perdido. Ele faz parte da elaboração de uma perda e não se configura como uma patologia (FREUD, 2008). Alguns fatores-chave influenciam o luto: (i) a relação com a pessoa perdida; (ii) a natureza da ligação (intensidade, segurança, ambivalência ou conflitos); (iii) a forma da morte: repentina e violenta; (iv) antecedentes históricos; e (v) variáveis de personalidade e sociais (KOVÁCS, 2007).

No que tange às especificidades do luto por suicídio, encontramos, nas entrevistas, a negação da causa mortis. As mortes, para estes sobreviventes, teriam ocorrido em consequência de um acidente ou um homicídio. É curioso ressaltar que as narrativas sobre as discrepâncias são relativas ao mesmo caso contadas por membros de uma mesma família. As contradições sobre as circunstâncias da morte apareceram em dois casos específicos.

O policial militar Mateus foi encontrado morto na residência da família. Ele havia retornado há alguns dias de uma viagem de visita à sua filha de um casamento anterior. Era um dia de jogo da Copa do Mundo e os familiares ouviram barulhos de tiro, ao mesmo tempo em que fogos de artifício comemoravam o resultado do jogo. Seu filho, Leonardo, conta que:

Nesse dia, no sábado, eu saí de manhã pra ir ao mercado, porque a minha mãe me mandou comprar umas coisinhas né, comprar carne pra nós fazermos um churrasco no jogo do Brasil. Aí comprou, depois ele saiu, e eu fiquei em casa também, com minha mãe e as crianças, ele pegou as crianças, pegou a menina menor e saiu, foi pro mercado, até levou a televisão pra lá pra ver o jogo por lá, e o churrasco aqui, depois ele voltou pra ver o final do jogo com a gente né, com meu cunhado, a minha irmã e minha mãe também, e os outros menores, depois nós descemos, que ele falou que tinha que descansar e ir ao mercado, porque ele tinha um mercado né. Como segurança. [...] Ele voltou pra casa e ficou com a gente lá em cima vendo o jogo. Quando acabou o jogo, aí ele falou que ia descansar né, aí todo mundo desceu, meus irmãos, meu cunhado, e ele ficou vendo o final do jogo (Leonardo, filho do policial militar Mateus).

Em seguida, perguntamos: “E como ele morreu?”. Leonardo respondeu: “De tiro [...] com a própria arma”. Entretanto, Cecília, que é irmã do policial militar Mateus, tem outra versão. Cecília afirma que seu irmão foi assassinado. Em sua narrativa, ela explica como os possíveis assassinos do irmão poderiam ter entrado na casa:

Porque a casa, ela tinha, assim, a laje e ela não tinha porta, não tinha portão. Sim, uma tinha uma escada que dava pra laje de casa, tipo um terraço e não tinha nem porta e nem portão. Então, a parte de cima era um terraço, aí tinha essa escada, por essa escada descia assim onde uma sala lá em cima e os dois quartos. E o quarto dele inclusive é com banheiro. Embaixo da parte da casa era outra sala e um outro banheiro e cozinha, entendeu? E atrás, que eu fiquei sabendo, aquelas casas de conjunto, tinha uma casa abandonada, por onde, acho que, duas pessoas passaram por ali, dois homens, passaram por ali e entraram. Quer dizer, todo mundo na época falava que quem fez isso conhecia a casa e ele estava deitado dormindo (Cecília, irmã do policial militar Mateus).

No segundo caso, Carlos, que é pai do policial militar João, afirma que o disparo da arma que matou o filho poderia ter ocorrido por acidente. João discutia com a ex-namorada quando disparos de arma de fogo foram efetuados contra a sua cabeça. Quando perguntamos o que havia ocorrido com João, ele explica: “Olha, eu até agora eu não sei. Eu, no meu entender, até por ele conhecer arma, acho que, até hoje, no meu entender, que ele tava brincando. Eu acho. Pode ser. Ninguém provou, nem a PM fez nada com isso. Que não tinha informação” (Carlos, pai do policial militar João).

Quando perguntamos se houve perícia ou investigação sobre o caso, ele respondeu:

Não. Não teve nada. Houve o que aconteceu, veio um carro da PM, pegaram ele, botaram ele dentro do carro, levaram ele para o hospital. E levaram a menina pra delegacia. A menina desesperada. Disseram, aí não sei, que houve até um tipo de coação pra falar que ele se matou. Até hoje ninguém houve apuração nenhuma. Só a declaração dela (Carlos, pai do policial militar João).

Então perguntamos qual foi a declaração da namorada, e Carlos respondeu: “Eu não sei. Eu não tenho. Dizem que ela falou que ele se suicidou, que botou a arma na cabeça e atirou. Mas, aí, se ele tivesse brincando?”. Doralice, que é irmã de João, também tem desconfiança sobre os motivos da morte do irmão:

Tem amigos meus e até primos que acreditam que chegou alguém por trás e deu um tiro na cabeça dele. Não acreditam que ele tenha feito isso. E porque eles não acreditam, eles vão conversar com você e vão fazer você acreditar nisso. [...] só que eu tenho ainda muita dúvida. Tem momentos que eu acho que ele fez e tem momentos que eu acho que foi por acaso. Foi uma distração ou a arma disparou acidentalmente, não acidentalmente porque ele colocou, mas acidentalmente porque ela disparou. Pelo que eu sei, a arma da polícia fica sempre uma na agulha, ele sempre falou que uma vez ele limpando aqui a arma, a arma disparou. Então eu tenho essa dúvida até hoje. Ou uma coisa ou outra. Tem horas que eu não acredito que por si só fez, por querer, mas no decorrer da briga também pode ser que sim, cada um fala uma coisa, cada um fala uma história. Uns dizem que ela gritou com ele e disse que não queria mais, se ele quisesse fazer que ele fizesse; que ele quisesse se matar que ele se matasse, uns falam isso (Doralice, irmã do policial militar João).

Em outros momentos da entrevista, o pai de João se apega à inexistência de uma mensagem do filho para justificar sua dúvida de que a morte tenha sido um suicídio. Também identificamos, nas entrevistas, a negação do suicídio quando associado à menção de planos de futuro próximo da vítima. Carlos nega a possibilidade da causa da morte por suicídio, pois o seu filho, João, tinha planos para o futuro próximo. Por essa razão, o pai atribuiu a morte do seu filho a outras causas externas.

Soares, Miranda e Borges (2006), ao estudarem as “vítimas ocultas da violência” – familiares de vítimas de homicídio, suicídio ou acidente –, salientam que, muitas vezes, os familiares das vítimas por suicídio duvidam que o fato tenha sido cometido pela própria pessoa, atribuindo a morte a um terceiro, um agressor desconhecido ou conhecido. Além disso, os autores apontam que a falta de informações seguras sobre as vítimas impede o “fechamento” psicologicamente necessário para que as vítimas ocultas prossigam com suas vidas. No caso apresentado, a ausência da perícia reforçou a negação da causa morte por parte do pai de João.

Um segundo aspecto que destacamos nas entrevistas é um padrão de comportamento em situações de estresse agudo (avoidance behaviors). São as tentativas de evitar situações que possam lembrar a dor da perda. No trecho a seguir, a esposa fala sobre a forma que a filha lida com a morte do pai:

Ela nem gosta de falar, não comenta. Nem no nome dele ela fala. Não fala porque ela lembra e chora igualzinha a mim. Aí ela não fala. Ele era vascaíno doente, como te falei, né? Ela também. Depois que ele morreu, desistiu, falou que “Nunca mais vou ser Vasco na minha vida”. Trocou. Ela é Fluminense hoje. Aí é Fluminense: “Eu não quero mais ser Vasco”; “Mas por que filha?”; “Porque lembra o meu pai e eu não quero”. (Laís, esposa do policial militar Denis).

Para Soares, Miranda e Borges (2006), “procurar não lembrar” da vítima é uma das formas de lidar com o sentimento trazido pela perda. Os autores destacam ainda os sentimentos de revolta e descontentamento, de culpa e de incompreensão nos relatos das vítimas secundárias que tiveram parentes e amigos mortos por suicídio. O ato, por vezes visto como covardia ou loucura, pode ajudar a explicar a revolta ou a raiva com relação à vítima.

O terceiro aspecto aborda as mudanças significativas no dia a dia das casas a partir da morte do familiar. Diversos familiares relataram a perda como ponto de inflexão em dinâmicas, como a casa estar sempre cheia de pessoas, festas, músicas etc. As narrativas sugerem que a morte expõe essas pessoas a situações de isolamento social, seja por iniciativa dos próprios enlutados ou ainda das pessoas próximas que não sabem como lidar com a situação.

E a única pessoa mais próxima é quem tá junto com a gente. Mas a gente tenta superar, sair. Muitos amigos aí, eu fico bobo. Teve colegas que sumiram. Muitos chegam pra mim, olham pra mim: “Carlinhos, não sei nem o que falar contigo”. Falei: “Meu irmão, a vida tá continuando, rapaz”. E tem outros que são assim, chegam em cima, em cima, em cima. Liga todo dia. Chama: “Vamos pra tal lugar?”. Ontem mesmo eu fui trabalhar. Aí um amigo: “Pô, Carlinhos, vamos pra praia? Vamos pra praia?”; “Porra cara, não tô a fim de ir pra praia”. E sai com grupo. Aí tu chega meio desanimado, eu sempre fui alegre. Eu sempre fui de fazer festa, de chamar todo mundo. A casa lá em cima ficava cheia. E tudo isso diminuiu (Carlos, pai do policial militar João).

Outros relatos apontaram o afastamento de alguns amigos. Aqui reside uma quarta especificidade do luto por suicídio. Pessoas, por não saberem como lidar com o familiar enlutado por suicídio, acabam se afastando das mesmas. Sendo assim, além do afastamento gerado pelos próprios familiares, quando relatam não sentirem mais vontade de fazer atividades de lazer, existe o afastamento das pessoas que não sabem como lidar com a questão, o que acaba por reforçar ainda mais o isolamento social desses “sobreviventes do suicídio”. Muitas vezes, as vítimas eram os principais provedores financeiros de suas famílias. Nesses casos, soma-se às dificuldades do processo de luto a necessidade de reconfigurar financeiramente a família enlutada. Esse assunto será debatido em maior profundidade adiante.

As narrativas confirmam a literatura especializada (FUKUMITSU; KOVÁCS, 2016, p. 4). Trata-se de uma morte e suas consequências sui generis. Nelas, encontramos: (i) a importância dos rituais fúnebres; (ii) as demandas por transparência no esclarecimento das mortes para esses familiares; e (iii) o isolamento social desses familiares, seja por iniciativa própria ou pelo afastamento de pessoas próximas. A seguir, discutiremos os mecanismos e procedimentos institucionais que podem contribuir, positiva ou negativamente, na elaboração do luto pelos familiares das vítimas de suicídio da PMERJ.

Os entraves e os dispositivos institucionais da PMERJ no processo do luto

A perda de um ente querido por suicídio é uma experiência difícil por inúmeras razões, conforme vimos no decorrer deste artigo. Não obstante, as narrativas sinalizam uma série de dispositivos que podem contribuir para atenuar o sofrimento gerado pela perda de um ente querido. Alguns exemplos, nesse sentido, seriam: o acompanhamento psicológico dedicado aos enlutados, o engajamento com a religiosidade, o fortalecimento dos laços familiares, a presença de amigos ou pessoas próximas, entre outros.

Sabe-se que, além do sofrimento e da dor da perda, a morte implica em lidar com questões burocráticas. Essa tarefa normalmente cabe aos parentes mais próximos da vítima. São inúmeros trâmites que familiares vivenciam para terem acesso aos direitos previdenciários e sociais, como, por exemplo, as pensões e os auxílios financeiros. As vítimas são muitas vezes os principais responsáveis pela provisão da renda familiar. Nessas circunstâncias, além do sofrimento pela perda, a morte pode acarretar uma desintegração social e econômica nas famílias de policiais militares. Os familiares entrevistados das vítimas na PMERJ não são diferentes. Muitos sobreviventes confessaram ter tido problemas financeiros após a morte do seu ente querido, em especial, quando houve demora para que a família pudesse acessar a pensão ou outros benefícios, conforme as dificuldades mais citadas nas entrevistas.

As entrevistas mostram que o apoio institucional em termos materiais é um fator importante a ser considerado na superação do luto. O amparo financeiro temporário das famílias pode minimizar eventuais consequências negativas para o processo de luto de parentes próximos. Portanto, a burocracia que envolve o acesso a esse auxílio financeiro também pode afetar essa fase.

É preciso destacar ainda que os familiares do policial morto por suicídio não têm direito a acessar o seguro que os policiais contribuem mensalmente, tampouco outras indenizações. O único direito que esses familiares conseguem acessar é a pensão destinada aos dependentes da vítima. No entanto, mesmo esse direito demanda uma série de trâmites que muitas vezes os familiares não estão preparados para enfrentar. Quando perguntamos se a Vania (mãe do policial militar João) tinha recebido algum apoio da Polícia Militar, ela respondeu:

Não. Nenhum apoio. E aqui com esse negócio da demora de laudo, o que é que eles iriam falar, o que eu acho... É que eles botaram lá que ficou como suicídio, porque eu acho também que mesmo sendo suicídio, acho que tem a ver com a profissão dele, eu acho que tudo está incluído, e nisso tudo ficou sem ganhar nada, a filha ficou sem ganhar nada, a pensão que ele “coisava”, mas ele estava pagando, se ele descontava, seguro de vida eu acho que desconta de todo o policial, mesmo que não saia todo, mas por causa da menina, mas não saiu nada (Vania, mãe do policial militar João).

Esta mãe da vítima demonstra descontentamento por saber que a neta não terá acesso ao valor referente ao seguro de vida que o policial militar pagava. Então, perguntamos o que havia sido alegado para não conceder o direito ao seguro, e ela respondeu: “Só disseram que o laudo ficou como suicídio, sem direito a nada. Mas eu acho que tem que procurar um advogado, e vê e correr atrás disso aí. Porque mesmo sendo suicídio, eu acho que esse suicídio gerou dentro da profissão dele. Pra mim foi.” (Vania, mãe do policial militar João).

Mesmo nos casos em que o suicídio foi atribuído a questões passionais, alguns familiares identificaram um comportamento mais agressivo da vítima a partir da entrada delas na polícia. Essa constatação, de relação entre o suicídio e algum comportamento identificado a partir da entrada na polícia, aumenta o sentimento de injustiça desses familiares diante das diferenças de tratamento desse tipo de morte, já que para esses familiares é perceptível uma relação entre a morte e o trabalho policial.

Além do auxílio com os trâmites burocráticos e o apoio financeiro, os entrevistados mencionaram a importância de um espaço de escuta e acompanhamento para as famílias. As entrevistas sugerem como primordial a relevância de acompanhamentos psicológicos dirigidos, especialmente, aos filhos de policiais vítimas de mortes violentas. Anton e Favero (2011) explicam que a perda de um genitor representa, para a criança, um duplo dano: a perda do pai/mãe e a ausência do familiar que ficou, porém que se encontra fragilizado pela situação traumática. Esse fato acarreta uma sensação de maior desamparo para a criança/adolescente.

No entanto, observamos que o apoio – formal e/ou informal – recebido pelas famílias entrevistadas variou de acordo com o perfil do comandante do batalhão ao qual a vítima estava lotada até o momento da morte. Encontramos disparidades entre os relatos que abordaram o apoio oferecido pelos comandantes e colegas de trabalho. Enquanto uma esposa indica que:

Tive, tive sim apoio de todo mundo. Tive apoio de coronéis; do próprio presídio em que ele estava preso. Eles durante um tempo me ligaram pra saber como é que eu estava, e foi sempre assim. Sempre tive muito apoio de muita gente. De coronel, de comandante de onde ele estava preso (Rosane, esposa do policial militar Osmar).

Outra esposa narra uma experiência muito distinta:

Da polícia não tive apoio nenhum, assim, como eu tô tendo agora uma conversa com você. Não veio ninguém pra poder falar nada. Eu que tive que ficar correndo atrás, entendeu? Me mandavam pra um batalhão, me mandavam pra outro, me mandavam pra outro. Não teve nenhuma pessoa que chegasse lá de dentro que viesse conversar comigo, saber como tá minha filha, se ela tá precisando de uma cesta básica, sei que ela até tinha direito nisso, nunca levaram uma cesta básica até ela. Eu desempregada, né? A única coisa que eu tive direito, porque ele deixou pra mim, foi o seguro que eu te falei, e é só. A pensão que ela recebe, que é de quatrocentos reais, que é dividido com essa mulher que prejudicou a vida do cara ainda, né? (Laís, esposa do policial militar Denis).

Portanto, além dos temas apresentados na seção anterior, identificamos a importância do amparo institucional no que tange os trâmites burocráticos e o acolhimento para essas famílias. Além disso, reforçamos como a questão financeira pode ser um ponto de atenção no atendimento a essas famílias enlutadas.

A Assistência Social e Psicológica às Famílias de Policiais Militares Falecidos5

Desde o ano de 2002, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro conta com um serviço de atendimento psicológico, vinculado à Diretoria Geral de Saúde. Atualmente, cerca de 100 policiais oficiais psicólogos atuam no atendimento clínico de policiais militares ativos e inativos e de seus dependentes. As entrevistas indicam que a cobertura do atendimento psicológico aos familiares enlutados é ainda insuficiente. As unidades localizadas no interior do estado do Rio de Janeiro são mais prejudicadas nesse atendimento. Os entrevistados chegaram a buscar o apoio psicológico, mas não conseguiram dar prosseguimento ao tratamento, devido à distância de suas residências.

A mais recente iniciativa na PMERJ, voltada para atender e orientar os familiares de policiais militares, ativos e inativos, falecidos em situação de violência, em serviço ou em folga, foi protocolada por meio de uma instrução normativa. Ela foi elaborada em julho de 2017 e publicada em Boletim interno em novembro do mesmo ano (PMERJ, 2017), devido à crescente vitimização policial no estado do Rio de Janeiro. Nela, constam as diretrizes para o protocolo de busca ativa, no âmbito das políticas de Assistência Social, Previdência e Atendimento Psicológico.

O Protocolo de Busca Ativa para Assistência Social e Psicológica às Famílias de Policiais Militares Falecidos visa: (i) oferecer assistência social e psicológica às famílias desde o momento de falecimento do Policial Militar por causas externas, em serviço ou folga; (ii) proporcionar orientações e esclarecimentos sobre os direitos previdenciários; (iii) disponibilizar atendimento psicológico às referidas famílias, de acordo com a necessidade de cada caso; e (iv) viabilizar suporte de entidades externas à PMERJ às famílias mencionadas.

É inegável que a instituição tenha buscado expandir e oferecer um atendimento psicológico aos policiais militares ativos e inativos e aos seus dependentes. Contudo, os relatos dos familiares de policiais falecidos por suicídio revelam que a rede de atenção psicossocial aos enlutados pode ser aprimorada. O serviço de Psiquiatria, por outro lado, é o “Calcanhar de Aquiles” do sistema de saúde mental da PMERJ. O restrito quadro de médicos oficiais psiquiatras prejudica o atendimento clínico de policiais militares na ativa, inativos e seus dependentes. Esse fato não só compromete o trabalho da tropa na promoção do policiamento ostensivo seguro e de qualidade, como também sobrecarrega os profissionais de saúde responsáveis pelo atendimento psicológico.

Apesar dos avanços, a instituição ainda não possui um serviço especializado de posvenção que possa auxiliar na redução do sofrimento psíquico associado ao luto dos sobreviventes de suicídio. Não há ações de suporte aos familiares, por meio de recrutamento ativo dos familiares “sobreviventes do suicídio”, como as abordagens de grupo de apoio ao luto, conduzidas por facilitadores treinados. Ao mesmo tempo, é sabido que as ações focadas na posvenção são eficazes na ajuda ao processo de luto e na redução em curto prazo do sofrimento psíquico associado ao luto dos sobreviventes de suicídio (ABP, 2014). Esse é um desafio que a PMERJ terá que enfrentar a médio e a longo prazo.

Considerações finais e Recomendações

O luto é um processo que precisa ser vivenciado. Neste trabalho, buscamos compreender como a composição do ambiente policial (a família, o profissional de saúde mental, a instituição de trabalho, entre outros) pode colaborar para reduzir o sofrimento emocional dos sobreviventes.

Os dados analisados sugerem que o tratamento diferenciado aos policiais militares vítimas de suicídio na PMERJ está associado à falta de reconhecimento das mortes por suicídio como um problema de saúde pública. Entrevistas com policiais militares da ativa revelaram que o apoio e o cuidado com o sofrimento do policial correspondem ao perfil de seus comandantes (MIRANDA, 2016). O amparo aos familiares segue a mesma lógica. O adoecimento e o apoio à família do policial morto por suicídio estão relacionados ao comportamento dos líderes das unidades administrativas e/ou dos batalhões convencionais e especializados.

As narrativas dos familiares sugerem que a solidariedade de policiais, colegas das vítimas, é essencial no amparo das famílias enlutadas, seja por ajuda financeira seja por iniciativas coletivas, a saber: a doação de dinheiro para cestas básicas e/ou despesas com o sepultamento. Amigos e colegas de policiais mortos por suicídio oferecem, acima de tudo, o acolhimento emocional às famílias das vítimas por meio de ligações telefônicas e visitas em datas marcantes.

A atuação do profissional de saúde mental nesse processo, especialmente quando existem crianças entre os “sobreviventes do suicídio”, é fundamental. Como vimos, as mortes por suicídio produzem um isolamento social que amplia ainda mais a necessidade de acompanhamento médico e terapêutico aos familiares sobreviventes.

Esses fatos reforçam a urgência por ações de prevenção e posvenção ao comportamento suicida nas instituições policiais militares no país. As políticas de posvenção devem contemplar a condição emocional das vítimas policiais e de seus familiares. A família é uma instituição de suma importância para o policial. A conscientização dos familiares sobre o suicídio e a sua participação na prevenção pode ser um fator preventivo ao suicídio. Ao mesmo tempo, é preciso considerar que a perda do policial pode desencadear uma série de processos dolorosos entre aqueles que convivem com ele. Esse fato reforça a relevância de incluir na agenda de políticas de saúde mental a prevenção e a posvenção do suicídio nas instituições policiais.

A Corporação, portanto, pode contribuir oferecendo ferramentas comprometidas com o amparo das famílias. Essa cobertura abrange desde a valorização da vida do policial até o pós-morte, como ocorrem nos casos de “ato de serviço”. O investimento no acompanhamento dos parentes com os vínculos mais fortes, em especial os filhos dos policiais, é essencial. Medidas como acelerar os trâmites burocráticos para obtenção do auxílio financeiro e ter um serviço específico de atendimento psicológico para os parentes próximos das vítimas de suicídio podem contribuir diretamente na passagem por cada uma das fases do luto, fazendo com que elas não se tornem patológicas. E, ao mesmo tempo, essas medidas podem somar para o não agravamento do sofrimento à perda, seja por conta de instabilidade financeira seja pelo sentimento de abandono por parte da instituição.

Ressaltamos, ainda, a necessidade de repensar o significado da morte por suicídio na PMERJ e os rituais inerentes a essa morte dentro da corporação. Acreditamos que o simbólico adotado hoje dentro das corporações gera um sentimento de não reconhecimento do trabalho policial do falecido. É necessário rever questões, como o direito ao seguro de vida nos casos de suicídio, entendendo o suicídio como o ato final de um processo de adoecimento do indivíduo.

Entendemos que, da mesma forma que a satisfação profissional pode contribuir como um fator de proteção emocional, o cuidado com as famílias enlutadas pode somar positivamente para o amparo ao longo do processo de luto, ao passo que a desatenção a esse público pode tornar essa experiência ainda mais dolorosa.

Em suma, é preciso destacar a urgência de estender esse olhar para os colegas de trabalho dos policiais e para a tropa como um todo. As entrevistas evidenciam o quanto os policiais se sensibilizam e vivenciam o luto de seus colegas, seja por suicídio ou por outras mortes violentas. A perda de um colega por morte violenta é uma dimensão que merece destaque quando estamos analisando as consequências psicossociais e individuais dos sobreviventes enlutados em contexto de polícia ostensiva (militar).

Referências Bibliográficas

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  1. Vítimas ocultas, secundárias ou indiretas são pessoas atingidas pela perda de um familiar ou amigo íntimo de forma violenta (SOARES; MIRANDA; BORGES, 2006).↩︎

  2. A pesquisa foi aprovada, em 2011, pelo Comitê de Ética da SR2 da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Processo Nº 011.3.2011).↩︎

  3. Assistência religiosa, de acordo com a religião do policial.↩︎

  4. Em 2011, no momento de realização das entrevistas, a PMERJ arcava com os custos do velório e do enterro para as mortes em atos de serviço. Em tempos de crise financeira do estado do Rio de Janeiro, a PMERJ não teve como assumir os custos do velório. Essa informação foi compartilhada por integrantes da PMERJ que participaram do Workshop de Prevenção do Suicídio, dirigido aos profissionais de Saúde, realizado no dia 26 de outubro de 2016, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.↩︎

  5. A última consulta sobre os serviços e os decretos publicados neste trabalho ocorreu junto a profissionais de saúde da Corporação, no final do ano de 2020.↩︎