EDIÇÃO ESPECIAL - VOLUME 16

A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE POLICIAL NA DEMOCRACIA – A EDUCAÇÃO POLICIAL EM FOCO

Paula Ferreira Poncioni

Doutora em Sociologia pela USP (2004), Pós-doutorado no Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da UnB (2008-2009) e pós-doutorado no Kings Brazil Institute, Kings College, Londres (2014-2015). Professora aposentada da UFRJ. Conselheira do FBSP. Atualmente é Editora Chefe da Revista Brasileira de Segurança Pública (2019 - ).

País: Brasil Estado: Rio de Janeiro Cidade: Rio de Janeiro

E-mail: paulaponcioni@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7722-8984

Resumo

O presente trabalho visa discutir o tema da legitimidade policial, a partir da assertiva que a legitimidade das autoridades e das instituições é uma questão central na democracia. Busca-se explorar os padrões requeridos nesta perspectiva para a chamada “educação policial”, com vistas a moldar o comportamento dos policiais no tipo de policiamento almejado para o provimento da segurança pública democrática. Para atingir os objetivos propostos, este estudo compreendeu pesquisa bibliográfica e documental. A pesquisa bibliográfica consistiu no exame da literatura especializada sobre os temas concernentes a: democracia, justiça procedimental, legitimidade e educação policial. A pesquisa documental abrangeu o exame de documentos oficiais que versam sobre reforma policial, com especial atenção para o incremento da formação profissional de policiais.

Palavras-chave: Democracia. Legitimidade. Justiça procedimental. Educação policial.

Abstract

The present work aims to discuss the theme of police legitimacy, based on the assertion that the legitimacy of authorities and institutions is a central issue in democracy. It seeks to explore the standards required in this democratic perspective for the so-called “police education” to mold the police officer’s behavior into the type of policing desirable to provide a democratic public security. To achieve the proposed objectives, the study comprised bibliographical and documentary research. The bibliographical research consisted of an examination of specialized literature on themes concerning to democracy, procedural justice, legitimacy, and police education. The documental research included the examination of official documents, which deal with police reform, with special attention to increasing the professional training of police officers.

Key words: Democracy. Legitimacy. Procedimental justice. Police education

Data de recebimento: 30/04/2021

Data de aprovação: 19/07/2021

DOI: 10.31060/rbsp.2022.v16.n0.1512

Introdução

Ao final da segunda década do século XXI, a questão do provimento da segurança pública nas democracias permanece ainda sendo um constante desafio diante das exigências de eficiência, efetividade e accountability do serviço policial.

Casos de violência policial – particularmente com características de cunho racista – têm gerado protestos de diferentes segmentos da sociedade civil e política em diversos contextos nacionais. Como consequência, propostas de reformas têm gravitado em torno da necessidade de mudanças nos procedimentos e nas práticas, bem como na implementação de indicadores de desempenho para responsabilizar a polícia dos desvios e crimes cometidos, buscando restaurar a confiança no policiamento, principalmente entre as comunidades étnicas minoritárias.

Desde o século passado nos EUA e na Inglaterra, são inúmeros os casos que têm chamado a atenção pública para as práticas discriminatórias e a violência policial contra minorias étnicas, particularmente em relação aos afrodescendentes, seguidos de tentativas para alterar o quadro de violência policial.

Um caso emblemático na Inglaterra foi o de Stephen Lawrence, um adolescente negro que foi morto a facadas em um ataque racista no sudeste de Londres, em 1993. O caso ganhou destaque nacional em meio a denúncias de incompetência policial, racismo e corrupção, e o inquérito sobre a morte do adolescente exigiu uma revisão dos procedimentos policiais e das atitudes em relação à raça no Metropolitan Police Service, em outras forças em toda a Inglaterra e no País de Gales e no sistema de justiça criminal mais amplo.

O relatório final do inquérito do caso realizado por Sir William Macpherson, um juiz aposentado da Corte Suprema, foi publicado em 24 de fevereiro de 1999, e caracterizou a resposta da polícia ao assassinato do adolescente como “institucionalmente racista”. No relatório, Macpherson definiu o “racismo institucional” como:

a falha coletiva de uma organização em fornecer um serviço adequado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica. Pode ser visto ou detetado em processos, atitudes e comportamentos que equivalem à discriminação por preconceito involuntário, ignorância, imprudência e estereótipos racistas que prejudicam as pessoas étnicas minoritárias. (CLUNY, 1999, p. 49 [capítulo 6], tradução livre).

O Relatório Macpherson apresentou 70 recomendações, estabelecidas no capítulo 47, que variaram entre os seguintes temas: maior controle público sobre a polícia, reconhecimento oficial dos direitos para as vítimas de crimes e ampliação da quantidade de crimes categorizados como racistas. Das recomendações estabelecidas no capítulo destacam-se as seguintes: inspetores do governo terão poderes plenos e irrestritos para fiscalizar os serviços policiais; o governo estabelecerá indicadores de desempenho para monitorar o tratamento de incidentes racistas, como também os níveis de satisfação com relação ao serviço policial prestado entre as minorias étnicas; deverá ser instituído o recrutamento de minorias étnicas; um novo Código de Prática deverá ser instaurado para registrar todos esses crimes; deverá ser realizada a revisão dos procedimentos policiais (MET) – de detenção e busca, na cena do crime, no registro dos crimes, suas inspeções internas e a ligação entre os policiais uniformizados e o CID; estabelecimento de processos disciplinares referidos a todas as palavras ou atos racistas comprovados, cuja punição poderá implicar com demissão do funcionário; obrigatoriedade de relatórios e registros de todas as operações, particularmente de incidentes e crimes racistas a serem publicados, com uma cópia do registro fornecida à pessoa envolvida, bem como relatórios de progresso (CLUNY, 1999, tradução livre).

No conjunto de políticas proposto para abordar algumas das causas do racismo institucional, o papel da educação policial nas recomendações foi incontestável: treinamento de conscientização racial e valorização da diversidade; treinamento de oficiais de ligação com familiares e testemunhas; treinamento de primeiros socorros; envolvimento das minorias étnicas locais no treinamento regular para todos os policiais, entre os mais importantes para a prevenção do racismo.

Embora haja críticas quanto aos efeitos duradouros das reformas implementadas, para alguns autores (SOUHAMI, 2014) o conceito de “racismo institucional” se tornou um potente conceito de mobilização para uma ampla reforma policial dirigida ao antirracismo e à igualdade no Reino Unido1 – e para além de suas fronteiras – após a publicação do Inquérito Stephen Lawrence em 1999.

Fazendo um retrospecto, pode-se inferir que o Inquérito Macpherson levou a mudanças significativas nos procedimentos policiais. Entretanto, uma década depois, parlamentares do Comitê de Assuntos Internos, por intermédio do relatório de aniversário de 10 anos do relatório de Macpherson, expuseram que o progresso das reformas foi mais lento na própria força de trabalho da polícia, o que parece permanecer como evidência até os dias atuais (HOUSE OF COMMONS, 2009).

Nos Estados Unidos, um caso representativo da acepção oficial de racismo institucional foi o de Rodney King, que nos anos 1991 foi perseguido por uma viatura policial quando voltava para casa, sendo abordado, algemado e espancado brutalmente por policiais do Departamento de Polícia de Los Angeles. Como consequência, quatro policiais foram julgados sob acusação de brutalidade policial, mas três foram absolvidos, ocasionando uma onda de protestos que se espalhou por vários estados dos EUA, especialmente em Los Angeles. O caso alcançou a atenção nacional para o problema da má conduta policial, em particular de cunho racista, gerando propostas de reformas importantes relativas ao monitoramento e à regulação das práticas policiais. Se, até então, casos como esse eram atribuídos a “má conduta individual” de um ou de outro policial, a partir do caso Rodney King a responsabilidade por essas ocorrências foi conferida à instituição policial como um todo, e não apenas como fruto de um “desvio individual”2.

Enquanto, em algumas sociedades democráticas, denúncias sobre ocorrências de abusos, incompetência, racismo e corrupção policiais ganham destaque nacional, e são assumidos como ponto de inflexão para a análise com vistas a mudanças nos comportamentos e nas atitudes de organizações policiais, no Brasil os casos verificados são relegados à desconsideração e ao esquecimento, sem contar com uma revisão profunda das condutas policiais e do sistema de justiça criminal mais amplo em relação aos problemas apresentados.

Na última década no país algumas iniciativas foram tomadas pelo governo federal e por alguns governos estaduais com vistas a alterar o padrão arbitrário e violento das polícias, sem produzir, contudo, efeitos na cultura, nos procedimentos e nas práticas policiais, no sentido da redução das altas taxas de letalidade produzidas pela polícia ou da promoção de uma maior responsabilização dos policiais envolvidos nesses casos.

No caso brasileiro, os números do racismo institucional aparecem especialmente associados às mortes produzidas por policiais, particularmente em operações contra o tráfico de drogas, quando o “confronto” é a palavra de ordem que orienta os procedimentos e as práticas de “guerra”.

Segundo o Atlas da Violência 2020 (CERQUEIRA; BUENO et al., 2020), os dados mais recentes de 2018 indicam que houve 57.956 mortes, das quais os negros (soma de pretos e pardos) representam 75,7% das vítimas de homicídios, sendo 30.873 jovens mortos, o que significa uma taxa de 60,4 homicídios a cada 100 mil jovens e 53,3% do total de homicídios do país. Os dados compilados no 13º Anuário do FBSP (BUENO; LIMA et al., 2019) registram que houve naquele mesmo ano 5.159 mortes violentas intencionais provocadas pelas Polícias, sendo 99,3% homens, 77,9 % entre 15 e 29 anos e 75,4% negros.

De acordo ainda com o Atlas da Violência 2020 (CERQUEIRA; BUENO et al., p. 47), na última década (2008-2018) evidenciou-se um aprofundamento das desigualdades raciais, com uma grande disparidade de violência experimentada entre negros e não negros; no período, as taxas de homicídios diminuíram 12,9% entre não negros e aumentaram 11,5% entre negros. O estudo salienta a maior probabilidade de um negro ser morto do que um não negro e, ainda, a preponderância dessas vítimas serem jovens negros (15 a 29 anos), do gênero masculino.

A altíssima frequência da ação letal da polícia contra essa parcela da população no cotidiano das grandes cidades brasileiras sugere que essas mortes não são casos individuais isolados, mas configuram-se como racismo profundamente enraizado na estrutura da sociedade e nas organizações policiais do país.

Embora os cenários nacionais sejam bastante distintos, a literatura especializada revela que boa parte das reformas implementadas baseou-se quase exclusivamente na crença de que os problemas que envolvem a polícia devem-se à inadequação de pessoal qualificado, o que poderia ser solucionado com o incremento do status educacional da polícia, tornando-a mais profissionalizada; a educação policial aparece como um recurso argumentativo importante nas reformas propostas para fornecer as competências requeridas às práticas e às necessidades do trabalho policial considerado profissional.

Contudo, a persistência da má conduta policial contra as chamadas minorias étnico-raciais nos diferentes contextos sugere que as reformas nesse setor não foram suficientes para o arrefecimento do número de ocorrências que envolvem o uso excessivo da força e mortes pela polícia. As propostas de mudanças parecem acompanhar episódios pontuais, em detrimento de alterações fundamentais que fizessem uma diferença efetiva e duradoura.

Além disso, com relação às propostas no plano das reformas educacionais, o exame de algumas dessas iniciativas evidencia que, de modo geral, persistem os tradicionais arranjos para a transmissão do conhecimento, o que privilegia enormemente os aspectos normativos e técnicos requeridos para o desempenho da profissão. Neste sentido, salienta-se a negligência de outra dimensão, que diz respeito ao universo cultural – valores, normas e perspectivas – que orienta atitudes, comportamentos e linguagens, que podem incluir uma ampla gama de discriminação relacionada ao racismo, ao sexismo e à homofobia no trabalho policial.

Não obstante se possa questionar o papel efetivo da educação policial para a mudança de comportamentos e atitudes de policiais, ela tem um lugar importante na formação das competências, habilidades e posturas do policial para o desempenho das práticas profissionais.

Como afirma Poncioni (2021, p. 247), embora não haja um alto grau de simetria entre a realidade objetivada – transmitida pela formação profissional – e a subjetiva – apreendida pelo novato – e mesmo entre essas e o contexto em que se vai atuar, considera-se que uma das funções importantes dos programas de ensino profissional é prover uma base para a constituição de uma comunidade profissional e uma orientação pela qual motivação, compromisso e aderência a uma visão de “mundo profissional” sejam, supostamente, desenvolvidas.

Em decorrência, uma questão fundamental para análise diz respeito às ferramentas possíveis no âmbito da educação policial que podem servir para promover e sedimentar modos de policiamento legítimos para a produção da manutenção da ordem e da prevenção do crime democraticamente viáveis.

Com base em trabalhos que discutem a questão da legitimidade da autoridade policial no escopo da teoria da justiça procedimental, buscou-se fazer um exercício teórico sobre alguns elementos que a educação policial deve conter para a preparação do policial, especialmente em relação à promoção de um modelo de policiamento que produza legitimidade para o trabalho policial na tarefa de redução da violência e prevenção do crime na sociedade democrática.

A exposição deste artigo está organizada do seguinte modo: além desta introdução, há duas outras seções que buscam refletir, respectivamente, a questão da legitimidade da autoridade policial na democracia a partir da teoria de justiça procedimental e os elementos que a educação policial deve abranger para a preparação do policial, notadamente em relação à legitimidade policial no contexto democrático. Por fim, ao término do trabalho, encontram-se as considerações finais e as referências bibliográficas consultadas.

A questão da legitimidade da autoridade policial na democracia – breves considerações

Diferentes estudos têm explorado a maneira como as organizações policiais lidam com a problemática da violência e do crime, apontando o fracasso das investigações policiais, os abusos, as múltiplas e frequentes discriminações e violações dos direitos humanos, especialmente com cunho racista. Sem falar da ineficácia à prevenção e ao controle da criminalidade violenta e da corrupção policial. Acrescente-se a isso a debilidade de mecanismos de controle e de responsabilização das ações da polícia que possam na prática acolher as queixas contra os desvios cometidos pela polícia.

Todos esses problemas têm levantado o questionamento acerca da competência e, sobretudo, sobre a legitimidade das organizações policiais para atuar em um contexto de maior complexidade dos problemas sociais e de sofisticação do comportamento criminal. A constatação de alguns desses problemas tem evidenciado a necessidade de reformas de amplo espectro que produzam a mudança dos procedimentos policiais, do comportamento e das atitudes dos agentes policiais no provimento da segurança pública com vistas ao estabelecimento da legitimidade à polícia.

Tyler (2004), a partir do paradigma weberiano da obediência pela legitimidade, qualifica autoridade legítima como aquela que os cidadãos consideram adequada e necessária em termos normativos, que representa os valores comuns e por isso deve ser obedecida. Para ele, quando as autoridades legais são consideradas legítimas, os indivíduos são mais propensos a se envolver em atitudes e comportamentos normativamente desejáveis ​​relacionados à lei, às normas, às regras, etc.

Deslocando essa discussão para o campo do sistema de segurança e de justiça criminal, a obediência voluntária é crucial para assegurar o respeito às leis, normas e regras, evitando-se, assim, que dispendiosas e intrusivas práticas de controle sejam aplicadas para assegurar o comportamento adequado. Aplicada à polícia, a parte mais tangível da lei e da regulação no cotidiano dos indivíduos, a legitimidade, está relacionada à ideia de que os policiais devem exercer sua autoridade de maneira justa e adequada para estabelecer e manter a sua legitimidade aos olhos dos cidadãos, (JACKSON et al., 2012; SUNSHINE; TYLER, 2003; TYLER; JACKSON; MENTOVICH, 2015), propiciando, assim, a obediência – voluntária – às ordens e às regras emanadas dessa autoridade, em contraste à obediência pelo medo de punição ou pela antecipação de recompensa.

A partir dessa literatura, a legitimidade policial compreende tanto aspectos instrumentais quanto normativos: os primeiros têm a ver com avaliações instrumentais de três elementos – o risco, o desempenho e os julgamentos sobre a distribuição da justiça. A visão instrumental sugere que a polícia pode aumentar o apoio do público quando: (1) produz um risco presumível de que as pessoas que infringem a lei podem ser apreendidas e sancionadas (dissuasão); (2) controla efetivamente o crime e o comportamento criminoso (desempenho) e; (3) distribui de forma justa os serviços policiais entre as pessoas e as comunidades (justiça distributiva) (SUNSHINE; TYLER, 2003; HINDS; MURPHY, 2007).

Em outras palavras, a perspectiva instrumental de legitimidade sugere que a polícia desenvolve e mantém a legitimidade por meio de sua eficácia no controle do crime e da desordem na comunidade (dissuasão). Já a perspectiva normativa tem a ver primordialmente com justiça processual. Ou seja, a legitimidade policial está relacionada principalmente aos processos por intermédio dos quais a polícia toma decisões e exerce autoridade nas suas relações com os cidadãos (regulação).

Considerando-se que a teoria da justiça procedimental se concentra na questão da legitimidade e dos aspectos a ela associados, como a aceitação da decisão das autoridades e o apoio para autoridades, com acatamento e cumprimento das determinações por elas emanadas, alguns pressupostos são base e instrumento para a cooperação pública com a polícia e o aumento da identificação e do envolvimento nas comunidades, tais como: 1) participação dos cidadãos nas decisões (voz ativa), possibilitando, assim, que as autoridades tenham informações antes de tomarem decisões sobre como lidar com um problema; 2) neutralidade na tomada de decisões, que são mais justas quando as autoridades usam indicadores objetivos e não opiniões pessoais; 3) qualidade do tratamento interpessoal, que compreende dignidade, respeito, polidez e reconhecimento dos direitos das pessoas por parte das autoridades legais; e 4) confiança nos motivos das autoridades, uma vez que suas decisões levem em consideração o bem-estar das pessoas envolvidas, suas necessidades e preocupações (TYLER, 2004).

Desse modo, quanto mais a polícia usar a justiça, mais as pessoas verão a polícia como sendo legítima e mais darão mais apoio, com consentimento/aceitação e justificação do poder da polícia, para a imposição de comportamentos e atitudes normativamente desejáveis ​​relacionados à lei, às normas, as regras, etc. –- incluindo o uso da força quando se fizer necessário –, como também para sua capacidade de produzir obediência, respeito e cooperação às suas determinações (regulação)3. Sunshine e Tyler (2003) argumentam que o uso policial de procedimentos injustos ao exercer sua autoridade pode levar à alienação, insatisfação, ao desafio e não cooperação do público.

O sucesso do trabalho da polícia depende da disposição da população em cooperar fornecendo informações e dando respaldo às suas atividades, [...], este tipo de colaboração voluntária tem sua existência condicionada à qualidade da relação estabelecida entre polícia e sociedade. Ademais, a polícia precisa que as pessoas aceitem suas decisões e respeitem a lei não porque se sentem ameaçadas, mas porque escolhem fazê-lo. (NATAL et al., 2016, p. 9).

Como resultado, a polícia usando a justiça terá mais legitimidade e apoio e, assim, o argumento da legitimidade com relação ao exercício da autoridade policial estará vinculado à maneira como a polícia procede na resolução dos conflitos e como as pessoas são tratadas cotidianamente pelos policiais. Esses são dois aspectos centrais que balizam, na teoria da justiça procedimental, a qualidade do processo de tomada de decisões e do tratamento interpessoal no policiamento em um contexto democrático. E, como é propugnado nas pesquisas sobre justiça procedimental, o policiamento deve ser fornecido da maneira mais aberta, honesta e respeitosa possível. Não só esse policiamento é desejável em termos éticos, como também é provável que ganhe maior cooperação pública, deferência e conformidade. Portanto, (r)estabelecer a confiança entre as comunidades atendidas pela polícia é primordial.

Nesta direção, é preciso salientar que as estruturas internas das organizações policiais têm um papel importante, porque condicionam a capacidade e, de fato, a vontade dos policiais de fornecer um estilo de policiamento comprometido com os procedimentos que compõe a justiça procedimental, e uma vez que estejam estruturados em linhas democráticas estarão em melhor posição para fazê-lo. Processos democráticos dentro de organizações policiais também podem ter o efeito de “ensinar” policiais – encorajando-os a internalizar valores democráticos (BRADFORD; QUINTON, 2014, grifo dos autores).

Organizações policiais que são internamente democráticas operarão de maneira que possam promover ou reforçar democraticamente modos de policiamento desejáveis. [...] o policiamento democrático respeita os direitos de todos aqueles que entram em contato com os policiais e, em tal contexto, estes se comportam da maneira mais processualmente justa possível. As organizações policiais democráticas têm o cuidado de não usar de força excessiva e exercer força física de forma proporcional e somente quando for absolutamente necessário. Elas também são responsáveis por suas ações dentro de sistemas de governança baseados em princípios de participação cidadã, equidade, capacidade de resposta e priorização do serviço, ampla distribuição de poder, fornecimento de informações e vias claras de reparação. (BRADFORD; QUINTON, 2014, p. 1025, tradução livre).

O trabalho de Bradford e Quinton (2014) sugere que as percepções dos policiais sobre “justiça organizacional” em seus relacionamentos com gerentes e líderes, particularmente no que concerne aos procedimentos organizacionais – e como são aplicados pela alta administração –, bem como a qualidade de interação e comunicação estão relacionadas com o compromisso com regulamentos, objetivos organizacionais e “comportamentos de cidadania organizacional”, que podem aumentar suas vontades de se envolverem com os membros do público de forma positiva e construtiva.

Os autores argumentam que a justiça organizacional4 proporciona um senso de valor e integração entre policiais, gera orgulho e identificação com a organização, aumenta a legitimidade de estruturas e processos internos e encoraja orientações positivas para o policiamento orientado para serviços. Organizações injustas, ao contrário, dificilmente encorajam tais atitudes entre seus funcionários, e as percepções de injustiça internamente podem levar ao desenvolvimento de um conjunto diferente de adaptações culturais tipicamente associadas na literatura sobre policiamento como subculturas ocupacionais.

Bradford e Quinton (2014) chamam a atenção ainda para a importância da noção de identidade social para entender a autolegitimidade. A identidade social positiva em relação a um grupo (ocupacional) pode servir a várias funções psicológicas importantes para o indivíduo, como promover a autoestima, ajudar a compreender as pessoas e as situações, e satisfazer a necessidade de pertencer. Uma identidade social forte, estimulada por percepções positivas da justiça, também pode ajudar os indivíduos a lidar com a incerteza do local de trabalho em relação aos resultados, status, à confiabilidade e moralidade, pois proporciona estabilidade emocional e senso de interesse e apoio mútuos.

Nesta perspectiva, assume-se aqui como pressuposto que a maneira como são processadas as etapas de socialização profissional no contexto institucional, incluindo a formação profissional, pode fornecer algumas indicações importantes para a apreensão das representações, bem como dos meios utilizados para moldar a identidade profissional dos futuros policiais, como também suas atitudes e seus comportamentos no campo de trabalho (PONCIONI, 2021).

Legitimidade policial: a educação em foco

Como colocado anteriormente, o exame da literatura especializada, em especial a anglo-saxã, sobre reforma policial, evidencia que é relativamente consensual a noção de que os problemas que cercam a polícia decorrem da inadequação de pessoal pouco qualificado, ganhando proeminência algumas alternativas, tais como: a seleção de policiais com um nível elevado de escolaridade como condição para o ingresso na organização policial e a atualização de pessoal da gestão – chefias e comandos – como forma de conduzir e disseminar conhecimentos, atitudes e comportamentos “apropriados” a uma polícia profissionalizada.

Para Carter, Sapp e Stephens (1989), não restam dúvidas sobre os efeitos positivos do aumento do nível de escolaridade para o universitário no policiamento com vistas ao enfrentamento dos desafios colocados contemporaneamente, associados aos problemas sociais complexos e ao incremento de sofisticação do comportamento criminal, bem como às exigências de accountability, eficiência e efetividade. Resultados de estudo empírico realizado em diferentes departamentos de polícia de três cidades dos EUA – Tulsa (Oklahoma), Largo (Flórida) e Nova York (Nova York) –, recomendam que, embora tenham sido encontrados distintos modelos de políticas para aumentar gradualmente as exigências educacionais com vistas ao ingresso nesses departamentos de polícia, uma vez estabelecido o requisito de educação universitária para o ingresso em qualquer departamento, alguns critérios precisam ser estabelecidos: deve ser elaborado um documento de política validando a educação universitária como qualificação profissional com vistas a determinar padrões educacionais realistas em relação aos recursos disponíveis e às características da comunidade; a política desenvolvida deve incluir também contribuições de todos os níveis da agência, considerando particularmente a inclusão da(s) organização(ões) de policiais locais nas discussões preliminares, objetivando aumentar a aceitação e a aceleração de sua implementação; devem ser especificados que os créditos e os diplomas universitários devem ser concedidos por faculdades ou universidades que tenham recebido o credenciamento de uma das principais organizações credenciadoras; deve-se definir cursos de graduação em áreas relacionadas ao trabalho policial, como direito, administração pública, sociologia, psicologia ou outras áreas que possam ser demonstradas como diretamente relacionadas às práticas e à necessidade de policiamento; entre os mais importantes. De acordo com os autores (CARTER; SAPP; STEPHENS, 1989, p. 124): “a questão para o século XXI não é se a educação universitária é necessária para os policiais, mas sim quanto e quando”.

No entanto, não obstante, seja uma tendência crescente a seleção de policiais com um nível elevado de escolaridade, esse critério não é homogêneo, e tampouco consensual entre as polícias. Observa-se que o incremento da educação policial – ensino e treinamento – proporcionado pelas academias de polícia sobrevém, ainda, como um importante recurso que pode contribuir substantivamente para melhoria da performance policial em um contexto cada vez mais complexo das sociedades modernas.

A academia não apenas fornece a maior parte do treinamento formal de conhecimento de que o oficial precisará para a carreira, mas também “desempenha um papel significativo na formação das atitudes do policial e é o ponto inicial para a socialização ocupacional do oficial”. (PEAK, 1993, p. 82 apud MARION, 1998, p. 72, tradução livre).

Análoga à argumentação de Carter, Sapp e Stephens (1989), depreende-se, portanto, que não é uma questão se a educação policial é necessária para estabelecer as importantes habilidades para a melhoria do policiamento, mas sim quais conhecimentos, quanto e quando.

Como mencionado antes, segundo o modelo de justiça procedimental, a legitimidade da autoridade policial associa-se ao estabelecimento de um tipo de policiamento que produz consenso com relação às atribuições da polícia para a realização das tarefas de manutenção da ordem e aplicação da lei, uma vez que há conformidade com as expectativas da sociedade quanto à conduta correta no uso da autoridade. Quanto mais justos os meios para cumprir seu mandato, mais legitimidade e apoio as pessoas atribuirão à polícia, com consentimento e justificação do poder da polícia para imposição de comportamentos e atitudes normativamente desejáveis ​​relacionados à lei, às normas e regras vigentes em determinado contexto.

O importante papel que a polícia desempenha na sociedade contemporânea, que vai muito além do provimento de segurança física contra o crime por meio de patrulhas de rua e fiscalização do trânsito, com o desempenho de várias funções, desde a manutenção da ordem em grandes eventos públicos até a prevenção de ataques terroristas, e da administração do medo do público em relação ao crime comum (HUQ; JACKSON; TRINKNER, 2017), conjugado às demandas de accountability, eficiência e eficácia, exige que a formação profissional do policial abranja a complexidade de questões que emergem no variado e complexo campo de trabalho.

Entretanto, frequentemente nas academias de polícia predomina um ambiente quase militar e os treinamentos de armas, condução e habilidades físicas são enfatizados para o preparo do futuro policial5. Os conhecimentos transmitidos na sala de aula baseiam-se fundamentalmente em leis, políticas e regras pertinentes ao trabalho; isso é importante porque os futuros policiais devem obter o conhecimento necessário para desempenhar as funções de manutenção da ordem e de aplicação da lei, mas não bastam. De modo geral, os professores são policiais ou ex-policiais escolhidos mais por suas experiências como policiais do que como docentes qualificados para a função docente. A falta de diálogo, o assédio verbal, a crítica contínua e hostil e a atividade física como punição são, ainda, deliberadamente incitados nos programas de formação profissional nas academias de polícia como justificativas de que o stress ali produzido é uma “ferramenta” que desenvolve a disciplina e a coesão do grupo e que pode ajudar na preparação do policial para as ruas (MARION, 1998). No entanto, a hostilidade e o desrespeito encontrado na academia tende a afetar negativamente a capacidade do recruta de lidar com os problemas do público; a falta de “comportamentos de cidadania organizacional” gera percepções e sentimentos negativos de justiça, ética e confiança.

Desse modo, é importante destacar que qualquer curso que pretenda “moldar” um estilo de policiamento comprometido com os procedimentos legítimos aos olhos do cidadão deve também comprometer-se com “comportamentos de cidadania organizacional”.

Nessa perspectiva, as academias de polícia devem assegurar que os conhecimentos transmitidos nos programas dos cursos de formação profissional, particularmente com relação à supressão do preconceito e da desvantagem racista e à demonstração de justiça em todos os aspectos do policiamento, tenham um currículo apropriado, com conteúdo programático interdisciplinar que envolva, para além do conhecimento das leis e dos normativos pertinentes ao trabalho, temáticas como diversidade cultural, gerenciamento de crise e resolução de conflitos, participação, respeito, entre as mais importantes. A experiência e a expertise também devem ser incorporadas para facilitar a conexão entre os princípios da justiça procedimental e a realidade cotidiana do policial.

Igualmente, novos métodos devem ser desenvolvidos para preparar o policial para lidar com diferentes situações, buscando reproduzir os cenários mais próximos das condições de trabalho “nas ruas”: estudos de caso, vídeos seguidos de debate, simulações, etc. são estratégias desejáveis para isso. É imprescindível que se dê especial atenção ao treinamento do uso da força que deve ser realizado com armamento menos letal (spray, armas defensivas, etc.) lado a lado ao do armamento letal. Os futuros policiais devem aprender que não podem abordar todas as situações com uma arma. Em vez disso, eles devem usar todos os outros métodos para subjugar um alvo antes de usar a força letal (uso progressivo da força). A ideia de que atirar em um suspeito deveria ser a última opção possível, até mesmo para a segurança do policial. É também imprescindível a composição de um corpo docente constituído por policiais e não policiais, buscando-se operar, sobretudo, uma mudança de cultura organizacional – crenças e valores acerca de questões como gênero, raça, religião, etc. – que compreenda a linguagem verbal e não-verbal – o comportamento e as atitudes frente ao “outro-diferente”, incluindo as necessidades especiais.

Nessa direção, o processo educativo se traduz no estímulo à reflexão, criatividade, empatia, flexibilidade e iniciativa com vistas a possibilitar a análise inteligente no uso da discricionariedade, com decisões justas para a resolução de problemas locais e/ou para encaminhá-los ao próprio público e aos setores competentes – agências públicas e/ou privadas. O treinamento é uma complementação do ensino essencial, tendo como finalidade fundamentalmente a exposição e a explicação de técnicas que, praticadas várias vezes, se tornam um reflexo, com vistas à execução de uma tarefa ou para responder a uma determinada situação6.

Entende-se que a premissa fundamental que deve alicerçar o processo de ensino/aprendizagem na perspectiva da justiça procedimental envolve respeito à comunicação bilateral, maior horizontalidade nas relações intraorganizacionais, normas acordadas de modo a permitir maior confiança e tolerância, de modo a estabelecer um sistema de valores profissionais democráticos mais consistentes no policiamento.

Esse processo precisa envolver todos os integrantes de um departamento de polícia para o desenvolvimento do trabalho policial, de diferentes níveis hierárquicos e diferentes gerações.

Estudo realizado por Gould (1997) sobre a receptividade de policiais do Arizona, nos EUA, com relação aos conteúdos de um curso ministrado sobre diversidade cultural intitulado Cultural diversity, cultural sensivity, or race relations training, evidenciou diferenças nas percepções entre gerações de policiais – cadetes e policiais antigos – no que diz respeito à utilidade do ensino para o policial na relação com a comunidade no policiamento diário. Para os cadetes, de modo geral, o curso foi útil haja vista sua pretensão em servir a toda a comunidade, e não apenas a um grupo de pessoas. Parte dos policiais mais antigos expôs sentimentos de raiva relacionados a cinco aspectos: a comunidade não compreender ou apreciar o que os policiais tentam realizar; administradores e supervisores perderem o contato com a realidade do policiamento que eles enfrentam diariamente; muitos gestores e políticos estarem procurando um bode expiatório rápido e, portanto, muitas vezes culpando os policiais por coisas sobre as quais eles não têm controle; “regras da rua” muitas vezes pesadas contra a polícia; e, finalmente, a existência de uma divergência entre o que é ensinado nas academias de polícia e o que a sociedade de fato demanda ao policial fazer (GOULD, 1997, p. 351). A análise realizada no estudo mencionado indica que: “Os comentários de oficiais mais experientes sugerem fortemente que eles se sentiram culpados por problemas raciais, quando na verdade os problemas raciais são uma parte da história institucional do departamento” (Ibid., p. 354).

Uma alternativa proposta pelo autor para o arrefecimento do sentimento desses policiais de que estão sendo punidos por um problema sistêmico seria mesclar administradores e policiais de linha em salas de aula sobre diversidade cultural, com vistas ao compartilhamento de pontos de vistas e experiências sobre a maneira como tratar minorias. Além disso, esse tipo de conteúdo deveria ser dado no começo da carreira policial e reforçado ao longo da trajetória profissional, visando estabelecer mais a compreensão do problema e as efetivas práticas policiais de tolerância e respeito às diferenças culturais presentes na sociedade.

Outra opção para o desenvolvimento do processo educativo para a formação profissional de policiais encontrada na literatura especializada aponta variações nos modelos de currículos associados à educação policial: um poderia ser considerado de base mais restrita e outro, de base mais ampla. A primeira alternativa se circunscreveria aos “muros” da organização policial, contendo os programas elaborados pelas academias de polícia.

Para Gilbert, Wakeling e Crandall, o currículo de um curso baseado em legitimidade e justiça procedimental deve:

definir legitimidade policial e justiça procedimental, explicando como eles se relacionam; ajudar os policiais a compreender como os conceitos os beneficiam e apoiam o bom trabalho policial; mostrar que o relacionamento que a polícia tem com a comunidade que ela serve é importante e que atender às expectativas compartilhadas requer um trabalho conjunto; explorar o impacto de cinismo do policial em suas interações com o público; explicar como a avaliação dos membros da comunidade sobre a polícia é influenciada por como eles são tratados, independentemente do resultado final; discutir o tratamento das minorias nos EUA e no exterior, destacando o impacto duradouro do policiamento sob as leis de Jim Crow e durante o movimento de direitos civis; empregar o conceito de “conta bancária comunitária” em que a cada transação é feito um depósito ou um saque. (GILBERT; WAKELING; CRANDALL, 2012, p. 4, grifo do autor, tradução livre).

A alternativa seguinte envolveria a experiência de ensino-aprendizagem com uma perspectiva mais ampliada, combinando os cursos realizados pelas academias de polícia com os desenvolvidos por universidades. Essa última opção é desejável no sentido de propiciar um ambiente que tende a ser mais aberto e flexível, expondo policiais a diferentes e mais adaptáveis pontos de vista.

Certamente, a educação universitária não pode ser generalizada como boa por si só; a qualidade da instituição educacional bem como os conhecimentos oferecidos devem estar consonantes com as necessidades do trabalho policial, como também devem ser monitorados e avaliados. Tanto uma quanto outra opção deve levar em conta, além da formação acadêmica de qualidade, a formação contínua especializada em serviço e a experiência prática.

Estudos sobre a problemática da educação policial indicam que, uma vez restrita à formação profissional básica, a instrução tem efeito temporário, haja vista que o serviço policial continuado acaba por solapar os conhecimentos transmitidos nas academias de polícia (PONCIONI, 2021). Nesta direção, ressalta-se que a educação policial continuada é imprescindível e necessária para produzir a sedimentação de conhecimentos, habilidades e competências requeridas com vistas ao policiamento baseado em protocolos de justiça procedimental.

Gilbert, Wakeling e Crandall (2012, p. 12, trad. livre) argumentam, ainda, que: “além disso, o treinamento contínuo ofereceria uma oportunidade de incorporar mais perspectiva comunitária e feedback recebido desde o primeiro treinamento”.

Seguramente nada disso garante êxito no desempenho geral do policiamento. O ambiente de trabalho policial é usualmente difícil e estressante, o que certamente afeta o julgamento com os cidadãos; possivelmente o maior benefício exercido pela educação policial continuada é servir como alicerce para fornecer não apenas conhecimentos relacionados ao trabalho, mas também habilidade introspectiva, possibilitando a análise detalhada das próprias experiências para determinar quando o equilíbrio de julgamento está começando a mudar (CARTER; SAPP; STEPHENS, 1989).

Considerações Finais

A partir da análise de algumas propostas de reforma policial que envolveram diretamente casos de violência policial – especialmente com características racistas –, e cujo enfoque foi no aprimoramento do quadro de pessoal, buscou-se discutir alguns elementos que a educação policial deve conter para a preparação do policial com vistas à promoção de um policiamento que produza legitimidade para o trabalho policial na sociedade democrática.

O exame de algumas dessas iniciativas demonstra, primeiramente, que perduram alinhamentos teórico-metodológicos no processo de ensino-aprendizagem que concentraram a atenção quase que exclusivamente nos aspectos normativos e técnicos, descuidando de outros que poderiam contribuir para iluminar áreas potencialmente inexploradas do campo social para o controle ou a erradicação de diversos tipos de discriminação – étnica, religiosa e de gênero – presentes nas sociedades; as tentativas de reforma, funcionamento e controle das polícias têm deixado intacta a cultura policial.

Constata-se que a cultura policial corrente tem reproduzido um sistema de valores e crenças associado a um modelo profissional policial “tradicional” que privilegia o papel meramente reativo das agências policiais, pautado essencialmente na repressão – que valoriza o uso da força, dos procedimentos operacionais padrão e da cadeia de comando quasi-militar para o “combate” ao crime –, em detrimento de formas cooperativas e criativas para responder aos problemas relativos à segurança pública (PONCIONI, 2021).

a subcultura ocupacional policial tem sido repetidamente descrita como tendo uma série de características centrais, elementos-chave dos quais incluem suspeita e cinismo (particularmente em relação às políticas, procedimentos, autoritarismo, bem como uma distinção rígida entre) entre “eles” e “nós” acoplados com solidariedade em grupo. (BRADFORD; QUINTON, 2014, p. 1028, grifos do autor, tradução livre).

Nesta direção, ressalta-se que um instrumento importante para dar suporte ao estabelecimento de comportamentos e atitudes legítimas sob o ponto de vista dos quatro princípios da justiça procedimental é a utilização de uma abordagem teórico-metodológica que favoreça o diálogo, a interdisciplinaridade, o enfoque de temáticas como relações interpessoais e a diversidade cultural, em conjunto com assuntos associados aos conhecimentos tradicionalmente transmitidos para a realização do trabalho policial; um corpo docente qualificado e a cooperação com universidades são essenciais para o êxito de qualquer intervenção neste campo. É imperativo, ainda, que a educação policial não se restrinja apenas à formação profissional básica dos policiais, mas também permeie toda a trajetória profissional do policial, envolvendo todos os integrantes de um departamento de polícia de diferentes níveis hierárquico e de gerações.

No entanto, não obstante, se reconheça a importância da educação policial para a construção de valores e normas, das competências e habilidades para o desempenho do trabalho policial, a ela não deve ser atribuída a capacidade de resposta para impedir ocorrências de má conduta policial; esse é um limite indicado por diversos trabalhos que versam sobre o tema da reforma policial baseada na noção de que o aprimoramento profissional solucionaria os problemas relacionados à prática policial. Mais do que isso, revela que a despeito de que a educação policial seja uma ferramenta institucional importante, ela não deve ser assumida como panaceia de justificação e solução para os casos de desvio policial.

Neste sentido, a educação policial pode ser vista como um fator positivo, mas há uma série de outros fatores que afetam diretamente as atitudes de um cargo policial e os desempenhos no trabalho. Os fatores incluiriam o contexto sociopolítico, as políticas departamentais, o ambiente de trabalho, as práticas disciplinares e a preocupação percebida com relação ao apoio da abordagem profissional ao policiamento pelos detentores de cargos políticos locais e gestores de políticas públicas na área (CARTER; SAPP; STEPHENS, 1989).

Entende-se que o enfrentamento de alguns dos problemas colocados, como o racismo institucional, exige mais do que formação e aprimoramento profissional, demanda igualmente a responsabilização por má conduta – discriminação, violência e letalidade policial –, superando a perspectiva centrada apenas no indivíduo, tornando-se objeto de preocupação e mobilização de esforços da instituição policial para orientar e encorajar mudanças na estrutura e na organização do trabalho policial. Mas é necessário também que a eliminação do preconceito e da desvantagem racista e a demonstração de justiça em todos os aspectos do policiamento se constituam problemas para a agenda política a serem enfrentados por toda a sociedade por intermédio de políticas públicas.

Ressalta-se que em contextos em que há altas taxas de crime, como no Brasil, a atribuição de legitimidade da polícia baseia-se sobretudo na perspectiva instrumental de legitimidade, segundo a qual prevalece a eficácia do trabalho policial no controle do crime e da desordem na sociedade, em detrimento dos aspectos normativos que estão associados primordialmente com justiça processual7.

Pode-se afirmar que a aplicação dos princípios da justiça procedimental nas polícias é uma agenda aberta e depende de múltiplos fatores.

A teoria da legitimidade e da justeza procedimental se constitui como uma concepção muito promissora no que diz respeito a aprimorar as relações entre a população e os agentes públicos de segurança, em especial os policiais. Essa concepção tem como seus principais potenciais a capacidade de possibilitar a construção de uma obediência normativa dos cidadãos com relação às leis e às autoridades, estreitando seus vínculos e reduzindo os custos da ação estatal e seus efeitos nocivos [...] A contribuição dessa teoria à reforma das polícias se relaciona sobretudo aos aspectos que caracterizam os contornos da cultura do país, e às possibilidades de transformação dos comportamentos desses agentes em relação aos cidadãos. (NATAL et al., 2016, p. 18).

Embora o emprego dos princípios da justiça procedimental nas polícias brasileiras possa parecer uma miragem, haja vista que a promessa de uma segurança “cidadã” no país chegou no século XXI colidindo com uma frágil e debilitada democracia, essa é uma aposta otimista para uma agenda que não se pode abandonar.

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  1. Para uma análise cuidadosa dos impactos do conceito de “racismo institucional” nas polícias da Inglaterra e de Wales concebido no Relatório Macpherson, consultar Souhami (2014).↩︎

  2. Com relação à iniciativa de “reforma estrutural” da polícia nos EUA promovida pelo Departamento de Justiça a partir do caso Rodney King, consultar Rushin (2014).↩︎

  3. Sobre os modelos dissuasório e regulatório, consultar na literatura nacional: Oliveira, Zanetic e Natal (2020); e Natal, et al. (2016).↩︎

  4. Justiça organizacional refere-se à percepção do funcionário sobre os comportamentos, as decisões e ações de sua organização, e como isso influencia as atitudes e os comportamentos no trabalho. O termo está intimamente ligado ao conceito de justiça; os funcionários são sensíveis às decisões tomadas diariamente por seus empregadores, tanto em pequena como em grande escala, e julgarão essas decisões como injustas ou justas. Esses julgamentos influenciam o comportamento de um indivíduo e podem, nos casos em que as ações têm um efeito pessoal sobre o funcionário e são julgadas como injustas, levar ao desvio (BRADFORD; QUINTON, 2014).↩︎

  5. No caso brasileiro, em particular, consultar especialmente Kant de Lima (2002); Muniz (1999); Miranda (2008) e Poncioni (2021).↩︎

  6. Consultar, a respeito, Poncioni (2021).↩︎

  7. Ver os casos de Ghana (TANKEBE, 2009) e do Brasil, em particular em São Paulo (NATAL et al., 2016).↩︎