EDIÇÃO ESPECIAL - VOLUME 16

“Na teoria, a prática é outra coisa!” – socialização “escolar”, estrutura bipartida e conflitos na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ)

Lenin dos Santos Pires

Doutor em Antropologia e professor do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense. É pesquisador associado do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC) e dedica-se aos estudos dos conflitos envolvendo mercados informais, segurança pública e transportes urbanos.

País: Brasil Estado: Rio de Janeiro Cidade: Rio de Janeiro

E-mail: leninpires@id.uff.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8250-467X

Elizabete Ribeiro Albernaz

Minibio: Doutora em Antropologia, pesquisadora visitante da Universidade Witwatersrand (WITS), em Joanesburgo, e coordenadora adjunto do Laboratório de Estudos sobre Conflito, Cidadania e Segurança Pública (LAESP/UFF). Desenvolve etnografias em áreas de favelas, bem como sobre a temática de segurança pública, no Brasil e África do Sul.

País: África do Sul Estado: Cidade: Johanesburgo

E-mail: betealbernaz@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3083-1473

Contribuição de cada autor: Ambos os autores foram responsáveis pela construção dos dados etnográficos, bem como pela mobilização de ferramental teórico para sua análise. A escrita foi compartilhada, bem como os processos de revisão.

Resumo

Com base em extenso trabalho de campo, o presente artigo aponta algumas implicações estruturais de representações e práticas organizadas em torno da implementação da política de formação profissional esboçada pela extinta Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (SESEG) entre os anos de 2008 e 2017, período conhecido pela chamada política de pacificação. Partindo dos objetivos da política, conforme professados por seus gestores e idealizadores, o texto explora a forma como o discurso da pacificação era consumido nos espaços ditos “escolarizados” de socialização da PMERJ no período em que esta pesquisa foi realizada. A etnografia revelou como a desautorização de discursos identificados com um funcionamento “ideal” das instituições realizava uma tensão estrutural de fundo, fazendo com que representações acerca de noções como mudança e continuidade atravessassem o cotidiano do referido projeto de formação profissional, que era também um projeto de consolidação de uma “nova polícia”. Característica amplamente reconhecida em diversos outros trabalhos sobre a formação policial militar, essa tensão encontrava sua expressão mais acabada na frase “na teoria, a prática, é outra coisa”, repetida à exaustão ao longo de todo o trabalho de campo realizado. Por fim, o artigo explora a oposição contínua entre mudança e continuidade, nova e velha polícia, entre outros binarismos que embalaram a política à época.

Palavras-chaves: Polícia Militar, Formação, Violência, Conflito, Divisão Estrutural, Pacificação

"Theory is not practice!"schooled spaces, binaries aproachs and conflict in the military police

Abstract

The article addresses the professional training policy outlined by the Rio de Janeiro State Secretary for Public Safety, among 2008 and 2017. This period was known for the “pacification policy”. Based on that public politic, the text explores developments with the sectors responsible for police education. Material conditions are explored to situate the way in which the “speech of pacification” was consumed in the schooled spaces for socialization of the PMERJ. The ethnography reveals the existence of a fundamental structural tension, making representations about notions such as change and continuity across the referred training project. The opposition between theory and practice was reworked in the continuous tension between "change" and "continuity"; new and old police, among other binaries that packed the Pacification Policy.

Key words: Military Police, Educanting Process, Violence, Conflict, Structural Division, Pacification Process

Data de recebimento: 13/12/2020 - Data de aprovação: 17/09/2021

DOI: 10.31060/rbsp.2022.v16.n0.1397

Introdução

Com o sol à pino, faziam 42 graus no abafado dia 12 de novembro de 2013. Por volta das 15h, o recruta1 Paulo Aparecido desfaleceu e não mais recobrou os sentidos. Exposto ao rigor físico da chamada semana zero2 do treinamento do Curso de Formação de Soldados (CFSD), ele não resistiu à prova. Aquela era apenas a etapa inicial para o ingresso no círculo das Praças3 da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). Naquela mesma tarde ensolarada de terça-feira outros 33 alunos, segundo o comando do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP), à época, teriam precisado de algum tipo de atendimento médico devido às condições climáticas adversas em que realizavam o treinamento. Dezoito, dentre eles, teriam apresentado também queimaduras nas nádegas e nas mãos. Os demais registraram sintomas que sugeriram insolação, dores de cabeça e pressão alta. Paulo Aparecido viria a falecer uma semana depois, no Hospital Central da Polícia Militar (HCPM). A causa mortis divulgada: “derrame causado por uma série de fatores que incluem a temperatura, a prática de exercício físico e uma possível propensão genética”4, segundo o Comandante do HCPM, à época, Coronel Armando Portocarrero. Naquele dia fatídico, a turma de Paulo Aparecido estava sob a supervisão direta de um grupo de quatro jovens oficiais, em sua maioria tenentes, todos pertencentes ao Corpo de Alunos (CA) do CFAP. Paulo Aparecido teria morrido durante uma das contumazes sessões da chamada “suga”, instituto o qual analisaremos mais à frente.

O caso suscitou questionamentos sobre as razões para a aplicação de um tipo de treinamento tão rigoroso, cruel e irascível àqueles que passariam a integrar o projeto de uma “nova polícia”, centrada na aproximação com a sociedade e na prevenção à violência, a chamada “Política de Pacificação” (2008-2018)5. À época, estávamos diretamente envolvidos com a coordenação de pesquisa empírica sobre o processo de formação de policiais que integrariam as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), e que envolvia a implementação de um novo currículo para as Escolas de Formação, tanto de Praças quanto de Oficiais. O referido projeto de formação foi chamado pela Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro (SESEG) de “Um novo tempo para a segurança pública” e pretendia promover a “profissionalização das atividades de ensino”, bem como “uma transformação cultural do fazer policial”, capitaneada pela Doutrina de Polícia de Proximidade6. Relembramos aqui a trágica morte de Paulo Aparecido para retomar uma série de questões que nos colocávamos por ocasião da pesquisa. Quais os limites e as possibilidades de projetos que propõem transformar as práticas policiais ditas tradicionais (principalmente no que se refere ao uso da força) a partir da formação e do treinamento, com foco nas formas “escolarizadas” de produção e reprodução do saber-fazer policial? Como o discurso de “reforma” era consumido no caminho entre as instâncias político-estratégicas responsáveis pela elaboração de uma política pública, e aquelas incumbidas de sua efetiva implementação? Como estas mudanças são sentidas ou recepcionadas pela sociedade?

No presente artigo buscamos refletir sobre estas questões com base em dados construídos a partir de estudo empírico realizado entre os anos de 2013 e 20157. Para o desenvolvimento da pesquisa, privilegiou-se a mobilização de técnicas qualitativas, sobressaindo a observação direta dos ambientes estudados e a realização de entrevistas com atores relevantes. Foram realizadas visitas in loco ao Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP) e a Academia de Polícia Militar D. João VI (APMDJVI), as unidades operacionais (batalhões e UPP), bem como o acompanhamento de reuniões de Conselhos Comunitários de Segurança (CCS) situados na capital e na região metropolitana do Rio de Janeiro. Nestas oportunidades, acompanhamos por horas a fio as dinâmicas afetas a tais espaços e, em ocasiões pontuais, ocupando a posição de professores. Para além de observações diretas, foram realizadas conversas informais com “recrutas” (aluno-Soldado PM), e entrevistas com Comandantes e profissionais diretamente responsáveis pela orientação e instrução de futuros Praças e Oficiais8.

Buscaremos contribuir com uma compreensão sobre as potencialidades e os limites de tais processos formativos a partir da análise dos mesmos. Estaremos dialogando com os pontos de vista consolidados na literatura especializada acerca da existência de uma “cultura” institucional ou de “éticas” policiais, argumentando para uma dimensão fenomenológica dos processos de constituição dessas identidades profissionais, que podem combinar predisposições prévias dos indivíduos com formas institucionalizadas de pensar e agir a partir da socialização dos agentes pela sensibilização sensorial e através de intervenções sobre seus corpos. Para dar conta deste objetivo, direcionamos nossa análise especificamente para a política de formação desenhada pela SESEG, expondo os termos pelos quais eram definidos seus objetivos e desdobramentos junto aos setores responsáveis pela formação policial, problematizando a forma como o discurso da pacificação era consumido nos espaços escolarizados de socialização da PMERJ na época da pesquisa. Finalmente, gostaríamos de argumentar que esse estado de coisas, uma vez exposto, só pode ser devidamente compreendido se remetido à existência de uma tensão estrutural de fundo, que se abre em uma série de inversões sociologicamente relevantes. Buscamos perseguir estas “inversões” para refletir não apenas sobre as lutas internas ao projeto de pacificação, mas sobre o papel da formação policial na consolidação de processos de reforma das organizações, principalmente no que se refere aos padrões estabelecidos de uso da força.

É muito interessante perceber como, depois de mais de três décadas de governos democráticos, os desafios para a área de segurança pública persistem em torno das tensões entre as lógicas corporativas informais e os desígnios normativos institucionais. A nosso juízo, tais tensões envolvem outras dimensões, de cortes racial, de gênero e de classe, cuja abordagem no presente texto, entretanto, não será enfatizada. Para a oportunidade, nos interessa chamar a atenção para aspectos mais cotidianos da socialização corporativa, buscando evidenciar aspectos que favorecem uma inscrição nos sujeitos das dimensões irrefletidas destas identidades.

Teoria e prática da reforma da polícia no Brasil

Entre os anos de 2012 e 2014 – período que abrange a realização de parte desta pesquisa e a morte de Paulo Aparecido –, a população do Rio de Janeiro testemunhou o auge da expansão do projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), com a inauguração de várias das 38 UPPs que funcionaram até 20189, quando se iniciou o desmonte do projeto durante a chamada intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro10. O recém elaborado Planejamento Estratégico da PMERJ previa a propagação, para toda a corporação, da chamada Doutrina de Polícia de Proximidade, filosofia criada no âmbito da Política de Pacificação. Como vimos, esperava-se que a proximidade norteasse todas as atividades finalísticas da PMERJ, promovendo a sua propalada “transformação cultural”. Apostava-se na ideia de “prevenção do delito” e na difusão de técnicas de “mediação de conflitos” enquanto estratégias para “o restabelecimento da legitimidade da polícia militar junto a população”, como afirmavam os gestores policiais entrevistados. A adoção daquela perspectiva implicava uma verdadeira inversão no foco de atuação da corporação até então, em que “a prisão de marginais da lei [tornava-se] mera consequência de uma bem articulada rede solidária de proteção baseada na aproximação entre polícia e sociedade”11.

Nesse período, o Rio de Janeiro testemunhava também os menores índices de violência observados nos últimos 10 anos, com uma acentuada queda na chamada “letalidade violenta”12 – em especial, dos ‘homicídios decorrentes de intervenção policial’13 – e dos roubos em geral, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP). Uma pergunta que passamos a nos fazer naquela época era: como, nesse cenário em que se observava a queda nos índices de criminalidade e o foco institucional na proximidade, se poderia justificar a rusticidade do treinamento que levou à morte de Paulo Aparecido? Morte esta ocorrida durante a formação dos policiais que se tornariam os principais promotores da propalada “nova forma de fazer polícia”, trazida pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e pela Doutrina de Polícia de Proximidade. Cabe destacar, entretanto, a evidente tensão entre os princípios que idealmente informavam a Política de Pacificação e sua dimensão performativa. Uma tensão entre o discurso emanado pela esfera político-estratégica, positivado nos currículos de formação e diretrizes institucionais, e aquilo que era praticado na ponta, pelos atores em situações concretas, seja na relação entre pares, seja na relação com a população.

Essas questões, em certa medida, já haviam sido colocadas em perspectiva por estudos anteriores sobre o tema das reformas policiais, no Brasil e no exterior; e a proposta de uma nova polícia, a partir das chamadas UPPs, aguçava a discussão em torno dele. Quem é o/a policial que é entregue pelo processo formativo experimentado nas escolas, a partir de saberes ditos escolarizados? Como esse ideal é consumido pelas pessoas em situações concretas no ambiente organizacional? Quais são as possibilidades reais de que esse ideal, produzido nas esferas da gestão e da política, possa chegar à "ponta da linha”, modificando comportamentos concretos na relação entre pares e com a população? Mas que polícia é essa que se esconde no plano das práticas, que se mantém blindada ao controle e à previsibilidade? Por que o discurso da “política pública” não consegue alcançá-la? Estes questionamentos não são novos no tocante às abordagens sociológicas sobre a chamada área da Segurança Pública.

Ao longo de pelo menos quatro décadas, as práticas policiais têm sido colocadas sob análise, indagando-se sobre as condições de possibilidades para suas reformas, buscando sua modernização. Barreira (2004), por exemplo, analisou as políticas de segurança pública implementadas no estado do Ceará, no período entre 1987 e 2002, chamando a atenção para as mudanças, adaptações e readaptações dos aparatos policiais às conjunturas políticas locais e nacionais. Focalizando o período posterior à ditadura militar, particular atenção foi dada às alterações na estrutura administrativa da área de segurança, buscando aumentar a credibilidade dos aparelhos policiais e, com isso, a capacidade discursiva do governo em oferecer maior segurança para a população. O estudo das transformações internas e externas da política de segurança pública ocupa uma dimensão essencial na abordagem do sociólogo, sublinhando a dificuldade da institucionalização das práticas democráticas na dimensão da segurança pública. Barreira analisa um contexto no qual se travou uma luta pela hegemonia do Estado, no ocaso dos antigos coronéis mandatários, dando lugar ao chamado “governo dos empresários”. Nele teve lugar uma disputa simbólica entre o “novo” e o “antigo”, o “moderno” e o “atrasado”, o “racional” e o “irracional”. Seu trabalho é importante de ser resgatado, em primeiro lugar, por conta destas polarizações.

Outro elemento importante é que no período analisado, a exemplo do observado no Rio de Janeiro no governo de Sérgio Cabral, se estabelece um contexto de crise de confiança da população diante dos casos de violência e corrupção. Diferentemente, porém, do observado com as chamadas UPPs, o governo cearense buscou a parceria e a participação da comunidade local com a criação de conselhos comunitários de defesa social (CCDS). Estes conselhos seriam o elo de ligação entre a comunidade e os órgãos de segurança, tendo como principal objetivo “participar ativamente na solução dos problemas de segurança do bairro, apoiando e auxiliando a SSPDC”. Contudo, o que se percebe, segundo Barreira, é que as mais variadas demandas são recepcionadas pelas polícias, bem como por parte da população, como meras distrações diante do que realmente interessa, ou seja, o “combate à criminalidade”, dificultando uma mudança de paradigma em relação ao período anterior.

Em tais contextos, todo o corolário de discussões dos chamados “Direitos Humanos”, introduzido no processo de redemocratização, perderia sua força inovadora diante das práticas tradicionais da polícia, que permaneceria enquanto balizador, uma espécie de “currículo oculto”, conforme identificou Paixão (1982) ao estudar o policiamento civil em Belo Horizonte. Paixão compreendeu que os policiais da linha de frente se orientam por um estoque de conhecimento não formalizado institucionalmente, que comporia sua cultura organizacional. Esse estoque de conhecimento seria formado por teorias sobre a origem e a natureza dos criminosos, métodos próprios de investigação e por uma série de outros conhecimentos aprendidos informalmente e que contrastam fortemente com os valores e comportamentos formalmente prescritos pela organização. O antropólogo Roberto Kant, que estudou a polícia civil no Rio de Janeiro mais ou menos no mesmo período, identificou tal dinâmica como pertencente a uma “ética policial” (KANT DE LIMA, 1995), onde os instrumentos legais e os princípios de direitos humanos seriam encarados como obstáculos à realização de um policiamento eficiente, mais ou menos como apontados em outros trabalhos sócio-antropológicos, envolvendo outras forças de segurança (ADORNO, 1998; RATTON, 2007; SAPORI; SOUZA, 2001; SAPORI, 2007).

Esta oposição estrutural original, entre mudança e continuidade, prática e teoria, se desdobra, como afirmamos, em uma série de outras oposições: rua e administrativo, escola e batalhão, e assim por diante. Binariedades que irão se alinhar em uma matriz complexa, combinando incessantemente suas componentes. Assim, afirmar que “na prática, a teoria é outra coisa”, frase que figura no título do presente artigo, significa negar legitimidade não só ao conteúdo do que é dito, mas também das próprias fontes de produção do discurso, do lugar institucional identificado com o formal/escolarizado e seus emissores. A aposta analítica que gostaríamos de desenvolver aqui, portanto, é que a oposição entre teoria e prática policial se refere, em última instância, a um tipo de antagonismo de classe; um que perpassa toda a estrutura organizacional da polícia militar: a divisão entre os círculos de oficiais e praças. Toda a estrutura da organização policial reitera essa oposição. Dos refeitórios ao tipo e à qualidade das refeições, até a formação de seus quadros, realizada em escolas separadas. Igualmente, se observados mais de perto, esses contingentes humanos apresentam formações morais e disposições estéticas diversas, balizadas por um contínuo regime de desconfianças recíprocas.

Aqui introduzimos uma breve digressão para chamar a atenção para os riscos de uma leitura enviesada nas conjugações estruturais e binárias. Os estudos e as reflexões empreendidas por Roberto DaMatta (1997) foram profícuas em sinalizar para os limites dessas estruturas bipartidas que caracterizariam a sociedade brasileira. As distinções entre Indivíduo e Pessoa, bem como as oposições entre a “Casa e a Rua” são contribuições importantes dessa forma de construir problemas e suscitar abordagens na sociologia brasileira. Nossa leitura, porém, difere da conjugação empreendida por aquele autor. No contexto por nós analisado, na maior parte do tempo, o oficial estaria moral e cognitivamente afeito ao espaço dos batalhões (ou casa, enquanto “caserna”) e os praças, às ruas. Ora, neste arranjo o espaço reservado às relações internas seria o lugar da imposição da regra, de uma suposta impessoalidade. Sobretudo se pensarmos na maneira como os oficiais administram a atividade e a carreira das praças, fundamentados numa burocracia implacável, cuja autoridade da regra advém do Regimento Disciplinar. Diferentemente, as ruas conformariam o lugar onde a regra, a lei, seria flexibilizada ao extremo; seja no que concerne à relação dos agentes com a lei ordinária, seja com os ditames da corporação. A rua é lugar de fazer “polícia de verdade”. No trato com a administração do uso da força, em nome do Estado, os agentes experimentariam nesse espaço a discricionariedade própria daqueles que devem agir, não em nome da lei, mas da ordem. Experimentando, assim, ampla liberdade na perpetração de abusos para com os direitos de cidadania.

O papel da violência na tensão entre mudança e continuidade na PMERJ

Um ponto que chamou nossa atenção durante a pesquisa – também apontado por outras pesquisas na área de formação policial no Brasil (ver CARUSO; PATRÍCIO; PINTO, 2010) – foi o papel desempenhado pelo Corpo de Alunos (CA). Uma de suas funções, segundo consta nos regulamentos da PMERJ, seria introduzir os novos recrutas à hierarquia e à disciplina militares, princípios organizativos entendidos como basilares da vida corporativa dos futuros policiais. Nesse sentido, os Oficiais e Praças que fazem parte do CA, durante a semana zero, assumem um importante protagonismo na socialização dos alunos. Nesse período, os recrutas são introduzidos nas artes da ordem unida, aprendem a prestar continência, a reconhecer os postos e as graduações de seus superiores hierárquicos. Também lhes é apresentado o Regulamento Disciplinar (RDPM), peça igualmente basilar na regulação das relações hierárquicas na PMERJ, bem como os regulamentos que regem a escola de formação, suas rotinas administrativas e pedagógicas.

Extraoficialmente, entretanto, o grupo de Oficiais e Praças do CA, durante a semana zero, é também o principal responsável pela aplicação das chamadas sugas14. Justamente um dos “rituais” que utilizam a violência como uma forma de produzir uma adesão identitária englobante por meio do suplício do corpo, como uma forma de nele inscrever uma série de significados sociais – um pouco como as técnicas de marcação corporal descritas por Pierre Clastres (2004) nas sociedades ameríndias. Estes rituais supliciantes são conhecidos, no jargão policial, como sugas e são aplicados, segundo interlocutores, para produzir “a rusticidade necessária à atividade policial militar”.

A morte de Paulo Aparecido, em meio a toda aquela agitação reformista, foi um banho de água fria. Seja para a própria pesquisa da qual participávamos ativamente – que precisou ser interrompida no âmbito do CEFAP, por um tempo –, seja para os gestores da SSEVP, diretamente implicados com a mudança cultural da PMERJ via área de educação. Dentre outras coisas, a trágica morte do jovem recruta, ocorrida nas dependências da escola de formação de Praças, expunha uma descontinuidade radical entre o discurso da pretensa política pública, seus emissores, e as práticas adotadas por seus principais consumidores, fossem estes os gestores das escolas, fossem os responsáveis diretos pelo trato com o alunado.

Essa “descontinuidade” era epitomizada pela frase “na prática a teoria é outra coisa”, um jargão amplamente difundido na corporação policial militar. Esta foi repetida à exaustão pelos entrevistados e durante todo o trabalho de campo que embasou esta pesquisa. A tensão entre mudança e continuidade atravessava o projeto das UPPs como um todo. Essa tensão, quando observada a partir dos cenários promovidos pela política de formação, encontrava sua expressão numa discursividade que se mostrou persistente ao longo de todo nosso trabalho de campo. Como referimos, a velha oposição entre teoria e prática se via reelaborada na tensão entre mudança e continuidade, entre uma nova e uma velha polícia, que habitavam simultaneamente a Política de Pacificação.

Essa tensão, segundo o argumento que gostaríamos de desenvolver, se realiza num plano de expressão simbólica que remete a uma oposição estrutural fundada sobre a estrutura bipartida da organização policial: a chamada “dupla entrada”15. Nesse sentido, a oposição entre teoria e prática – em sua dimensão sabotadora, que desqualifica e enfraquece o discurso da política – remete, em última instância, a um campo de disputas institucionais que opõe Oficiais e Praças. Na última seção do presente artigo, exploraremos os desdobramentos dessa oposição nos diversos âmbitos de socialização policial militar observados durante a pesquisa. Atribuiremos especial destaque, entretanto, às consequências dessa tensão estrutural de fundo, encarnada na imagem de uma estrutura fraturada, para as iniciativas de “reforma” focadas nos espaços escolarizados de socialização policial.

Promovendo a “mudança cultural”

Como mencionamos antes, as escolas de formação – principalmente o CFAP, onde a morte de Paulo ocorreu – deveriam ser o locus da mudança cultural que viabilizaria a transição para uma polícia de proximidade. Diversas medidas foram adotadas nesse sentido. Tanto no âmbito dos órgãos de ensino e instrução da própria PMERJ, quanto por meio da Subsecretaria de Educação, Valorização e Prevenção (SSEVP). A principal política pública na área de ensino e formação policial, para a gestão do Secretário José Mariano Beltrame (2007-2016), foi a criação do chamado Banco de Talentos. A ideia central da política, nas palavras de seus gestores na SESEG, era “profissionalizar o ensino e a instrução nas Polícias Civil e Militar”. Essa propalada profissionalização envolvia, em termos gerais, a seleção por mérito e a remuneração dos corpos docentes das unidades de ensino16 e das unidades especializadas17. Antes do Banco de Talentos, as atividades de docência nas escolas eram organizadas com base em professores voluntários; em sua maioria, policiais da ativa e da reserva.

Com a nova política, os currículos passaram a ser cadastrados por meio de uma ferramenta aberta, disponível na internet18, incluindo candidatos civis e policiais. Além disso, a seleção passou a ser feita por um sistema de pontuações que buscava ponderar a relação entre currículo acadêmico e técnico, experiência profissional e as ementas das disciplinas. Ementas estas que, diga-se de passagem, não existiam antes da implantação do Banco de Talentos, o que nos leva à segunda dimensão importante da missão de profissionalização do ensino policial: as reformas curriculares e pedagógicas.

Para serem beneficiadas pelos recursos do Banco de Talentos, as escolas e unidades especializadas, por meio de suas Divisões de Ensino, precisaram implementar uma série de medidas de gestão educacional: construção de ementas e planos de aula das disciplinas, material didático, bancos de questões, instrumentos de avaliação docente e discente, supervisão, dentre outras. Todo esse ferramental era empregado em serviço da implementação de uma revisão curricular profunda. Essa revisão, segundo os gestores da SESEG em entrevista por nós realizadas, tinha partido de uma ampla discussão envolvendo o público interno e profissionais de fora das corporações, realizada com o intuito de “identificar os conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias ao desempenho da atividade policial voltada a uma polícia de proximidade”. Como a Pacificação era uma política que mobilizava principalmente efetivos da Polícia Militar, o epicentro desse processo acabava sendo as Unidades de Ensino da PMERJ; em especial, o CFAP, onde formam-se as Praças da corporação. Na entrada da escola, na época da pesquisa, tinha sido instalada uma grande placa com os dizeres: “aqui formam-se os pacificadores”.

A despeito da afirmação dos gestores da área de educação de que a “proximidade” era um valor curricular transversal, no caso da formação de Praças, os princípios da Pacificação eram repassados de forma organizada em um módulo cursado em separado. No caso da formação de Oficiais, esse módulo sequer existia; via-se incorporado nas discussões de policiamento comunitário. O módulo de “polícia de proximidade” do CFSD era coordenado diretamente pelo setor de ensino e instrução de uma unidade externa ao ambiente do CFAP à época, a Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP). Por conta disso, na percepção do alunado do CFSD com quem conversamos, era como se a formação para a Pacificação fosse um período de suspensão da normalidade, de descolamento em relação à realidade cotidiana das escolas19. Por uma semana, as futuras Praças eram apresentadas a um “dever ser” que, segundo diziam, contradizia abertamente aquilo que era praticado no CFAP. Mas de que forma isso se relacionava com as medidas adotadas no âmbito do projeto do Banco de Talentos?

Da parte dos idealizadores da Pacificação, a expectativa que se depositava sobre a recém-criada Subsecretaria de Educação, Valorização e Prevenção (SSEVP) era de promover uma “mudança cultural” em relação às práticas policiais. Essa “mudança” deveria seguir no sentido de transformar “velhas práticas”, “aproximando a polícia da sociedade” e ampliando seu foco de atuação do crime para a promoção de “qualidade de vida” e “desenvolvimento social” nas comunidades pacificadas. Com isso, esperava-se, principalmente, enfraquecer o poder de cooptação ideológica do chamado ethos guerreiro20. Este último entendido enquanto valor referencial de uma cultura policial21 que enaltece a coragem e o destemor dos guerreiros no combate à criminalidade e que se realizaria, em sua apreensão mais arquetípica, no enfrentamento de grupos armados de narcotraficantes nas favelas cariocas.

As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e a Política de Pacificação22, na percepção de seus gestores, na PMERJ e na própria SESEG, deveriam intervir diretamente nesta dinâmica de cooptação. Herdariam, portanto, o ônus de investir ativamente na desconstrução desse imaginário guerreiro como condição de seu próprio sucesso. Era preciso fundar uma “nova polícia” no seio da velha, assim lidavam com a questão em nível político-estratégico à época. Essa velha polícia, imaginava-se, se nutria das práticas e dos vícios construídos nas ruas, com os mais antigos, na relação direta com a sociedade. Como era possível blindar, simbólica e materialmente, os aprendizados de uma nova forma de fazer polícia, a polícia de proximidade, em relação às práticas violentas e corruptas da velha polícia, também chamada tradicional?

Uma das estratégias adotadas – além de todo um trabalho de formação diferenciada e diferenciação estética – foi a decisão de compor o efetivo das UPPs majoritariamente com policiais novos. Assim, com o tempo, além de um problema de supervisão de graduado, a medida gerou questões de segurança, uma vez que expunha jovens policiais a um ambiente complexo de atuação sem o devido suporte de policiais mais experientes. Mas qual era o valor real dessa medida? Este elemento é assaz importante por duas razões. Primeiro, por que ao retirar dos batalhões a atribuição de patrulhamento ostensivo em diferentes favelas, se apostou num redimensionamento de pessoal das mesmas. Esse redimensionamento não aconteceu, uma vez que 100% do efetivo formado no CFAP, tecnicamente, era direcionado para as UPPs, deixando os batalhões tradicionais descobertos nesse sentido. A partir de um rotineiro processo de aposentadorias, desligamentos, falecimentos, entre outras variáveis que fazem oscilar o efetivo policial, este contingente superdimensionado das UPPs, a princípio, deveria atuar em outras áreas sem equalização orçamentária. Estes recursos materiais e humanos seriam distribuídos de forma desigual entre os agrupamentos policiais, privilegiando as UPPs, e deixando os ditos “batalhões convencionais” da PMERJ responsáveis pela administração de áreas muito maiores e complexas, com restrições severas para o seu desempenho.

Por outro lado, as novas unidades passaram a exibir diacríticos próprios, promovendo uma nova marca: a UPP. Esta passou a ter carros diferentes, uniformes diferentes e, dessa maneira, atrair atenções externas e evocar discursos discriminadores e contrários à polícia dita “tradicional”. Barreira e Russo (2012) relatam uma experiência análoga, em Fortaleza, com a chamada Ronda do Quarteirão, pela polícia militar cearense, que constituiu uma das principais propostas do então candidato a governador Cid Gomes, contribuindo para sua eleição em 2006. A proposta deste programa foi criar uma polícia de proximidade, com viaturas modernas, atuando em uma área restrita, de 3 quilômetros quadrados, com qualificação em Direitos Humanos. Contudo, antes mesmo de começar a funcionar, o programa recebeu críticas pelo alto custo das viaturas adquiridas e, como no caso das UPPs, por adotar um uniforme diferente do utilizado pelos demais membros da Polícia Militar do Ceará, criando uma divisão dentro da Corporação entre aqueles que eram da Ronda do Quarteirão e os que não eram. Como observado no Ceará, o pretenso processo de “reforma” que ocorreu com as UPPs no Rio de Janeiro contribuiu para mobilizar antipatia e processos de sabotagem internos à corporação.

Na prática, as métricas para avaliar esse tipo de impacto são escassas. Entretanto, durante a pesquisa, a empiria colocou em evidência a suposta eficácia de muitas das estratégias adotadas para a fundação de uma nova polícia. Em primeiro lugar, mostrou-se frágil a pressuposição de que os policiais novatos seriam menos suscetíveis à corrupção insidiosa das ruas. Afinal, as pessoas não são tábulas rasas quando entram para polícia; por ocasião do seu ingresso na corporação trazem ideias e representações claras acerca da natureza da atividade policial. A partir de uma etnografia com jovens participantes de um curso para ingresso na PMERJ, oriundos do subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, Rodrigues (2021) mostra que eles têm uma expectativa de se estabelecer naquela profissão para obter ganhos e vantagens a partir de uma representação do trabalho da polícia voltado para o uso da força, sem se preocupar com seus eventuais abusos. Um instrutor da APM, responsável pela formação de Oficiais, contava-nos uma história que era muito ilustrativa nesse sentido. Quando atuava como instrutor do CFSD, pediu a um grupo de recrutas, logo no início da aula, para realizarem um procedimento de abordagem. Para sua surpresa, antes mesmo de receberem qualquer informação técnica acerca do procedimento, o grupo já reproduzia a lógica agressiva com que a polícia realiza revistas pessoais, principalmente em áreas periféricas. Em parte, considerando o relato do instrutor, a violência policial parece ser um processo de reconhecimento. Se a polícia é violenta, é também porque a sua composição social é oriunda de áreas em que a polícia aplica a violência, principalmente contra a juventude, como forma de regulação.

O segundo ponto é a própria violência institucional, promovida entre pares no cotidiano da organização (escalas, equipamentos, judarias internas23), mas também nos próprios bancos escolares, de onde deveriam partir os policiais pacificadores. Quando se referiam a um tipo de suspensão da realidade na relação entre o Módulo de Polícia de Proximidade e o dia a dia do Curso de Formação de Soldados (CFSD) no CFAP, nossos interlocutores se referiam às sugas. As sessões de suga, como referimos, envolvem a extenuação física do alunado e alguma dose de violência controlada que, como vimos no caso de Paulo Aparecido, às vezes pode escapar das mãos dos supostos controladores. Na época da pesquisa, as sugas eram defendidas abertamente pelo comando do CFAP como forma de produzir “rusticidade”, um termo que será apresentado mais adiante. As sugas eram aplicadas pelo Corpo de Alunos (CA), órgão que divide com a Divisão de Ensino, centro da “mudança cultural” nas escolas, a responsabilidade da formação dos futuros policiais. Na prática, segundo constatou a pesquisa, o CA era um dos responsáveis por sabotar toda a teoria da Pacificação.

Entre amamãezados e rústicos

As sugas, como a que vitimou Paulo Aparecido, por diferentes ocasiões, ao longo dos anos, foram proibidas nas dependências das unidades de ensino da PMERJ por comandantes considerados de linha mais “progressista”. O mesmo ocorreu com as canções de guerra24, entoadas pelo efetivo quando em deslocamento no interior das escolas ou durante o condicionamento físico. Ambas atividades, é claro, sob responsabilidade do Corpo de Alunos (CA). Muda o comando, muda a linha de trabalho da escola (como ocorre, aliás, com qualquer unidade policial) e as sugas e as referidas canções sempre acabam sendo restabelecidas na rotina da unidade de ensino, depois de banidas por um certo período de tempo.

Pode-se dizer que é bastante difundida a percepção – mesmo entre os próprios alunos submetidos à violência ritual das sugas – de que as turmas formadas fora desses rituais de guerra seriam amamãezadas, como se diz no jargão nativo. “Cheios de direitos e opiniões” – como reclamavam os mais intransigentes na defesa de tais expedientes –, estas gerações de policiais amamãezados seriam inábeis para o desempenho do verdadeiro trabalho de polícia. A expressão faz referência às atividades ditas operacionais e de combate ao crime, incluindo aí a necessária rusticidade para o seu desempenho. O principal motivo alegado para a suposta inaptidão dos amamãezados para o trabalho policial seria exatamente a ausência desse atributo, provocada, por sua vez, pela proibição das sugas, das canções de guerra, dos trotes e de todo um universo de práticas rituais – informais, porém amplamente aceitas e cultuadas – durante a sua formação. Não é preciso dizer que os “policiais de UPP” eram considerados como uma geração de policiais amamãezados, o que conduzia a uma certa tolerância e permissividade no controle de práticas como a suga no interior das escolas, prática que visa, como vimos, imprimir rusticidade ao futuro policial militar.

Abertamente valorizada como um atributo positivo pela cultura policial (PONCIONE, 2003), a rusticidade é uma dessas competências “não-escolarizadas” desenvolvidas nos interstícios da implementação do currículo formal das escolas de formação da PMERJ. O já referido “currículo oculto”25. Faz referência a uma suposta capacidade física e mental para resistir às condições adversas da atividade policial militar. A rusticidade – como nos foi explicado diversas vezes – prepararia o policial para a “dura realidade das ruas”, para enfrentar “os níveis crescentes de violência da criminalidade”, mas também a precariedade de suas próprias condições laborais. Entre elas, as escalas de 24 horas, a carga pesada de trabalho, as horas em pé no sol, o peso dos equipamentos, entre outros26.

A rusticidade do policial, segundo nossos interlocutores da pesquisa, deveria ser fustigada ao longo de todo o processo formativo dos recrutas. Entretanto, era na semana zero que ela vinha a desempenhar um papel fundamental. Por meio das sugas, os alunos seriam testados no domínio desse atributo, promovendo uma separação entre os vocacionados e aqueles ditos não-vocacionados para o serviço de polícia. Ficou patente que, desde o início de seu processo formativo, contradizendo abertamente o que era propalado em sala de aula, o alunado era exposto a um ambiente organizacional que buscava suscitar o velho ethos guerreiro. Além disso, para o grupo envolvido com a pesquisa, era como se a Polícia Militar estivesse tentando, por meio de um tipo de pedagogia informal, ensinar os recrutas a adotarem uma postura cínica em relação à institucionalidade de sua própria instituição. Uma coisa é o que está escrito, outra é o que se faz na prática; na sala de aula, um discurso de mudança, no cotidiano da escola, órgãos como o Corpo de Alunos (CA) desautorizavam todo um esforço baseado em diretrizes formais para a área de educação.

Neste contexto no qual se praticava uma certa pedagogia da dor parecia operar, subliminarmente, uma lógica que é alcançada por um adágio bastante popular no Brasil que afirma: “quando a cabeça não pensa, o corpo padece”. Como sugeriu Clifford Geertz (2002: 114), os ditados populares podem encerrar um conhecimento socialmente instituído, calcado na experiência e nas práticas dos indivíduos. Nas situações comuns, faz-se apelo a uma racionalidade que se antecipa aos atos irrefletidos, protegendo os indivíduos em seus interesses e direitos. No caso da PMERJ, o adágio “quando a cabeça não pensa, o corpo padece”, nos pareceu aludir a um ensinamento básico para a internalização da hierarquia. Quando o superior – a cabeça que pensa – não era obedecido, o corpo do desobediente sofria. No caso específico, um corpo que padecia em função de não ser prescrito que este recorra ao ato de pensar. A resistência à introdução dessa heresia – o pensar – no ambiente escolar castrense se dava a partir das lições da chamada ordem unida. Não por acaso, os cursos de formação de praças da PMERJ, ao longo do período de pesquisa, teve acrescido o número de horas dessa disciplina. Consiste, aparentemente, em ensinar a tropa a marchar e perfilar. Contudo, é muito mais que isso, constituindo-se em um processo pedagógico, ritualizado, de internalização de valores fundamentais da hierarquia militar. Os comandos de ordem unida são dados por um oficial, graduado ou o mais antigo presente à frente de um grupo, por corneta ou clarim, apito, gestos ou pela voz de comando. Emitido em tom enérgico, tem por objetivo fundamental inspirar respeito à figura da autoridade presente27.

Esse conjunto de oposições em constante tensionamento – mudança/continuidade, teoria/prática, escrito/não-escrito, formal/informal –, como trataremos a seguir, apresentam um caráter aparentemente estrutural. Em um plano simbólico, reflete a estrutura de relações e os valores comungados pelos membros da instituição policial. No plano material, é a expressão da própria estrutura bipartida da corporação, cindida pela chamada “dupla entrada”, que separa os círculos de praças e oficiais28. Como esperamos demonstrar, porém, essa estrutura bipartida é apenas uma versão desse mundo que se erige e que cobra uma racionalidade própria, bem como um entendimento sofisticado daqueles que julgam ser partícipes dele. Há outras conjugações e possibilidades para as interações. Para que tenham vigência, entretanto, deverão fazer referência aos elementos que nos parece estruturar essa versão bipartida para que seja autorizada a passagem para uma espécie de matrix, uma versão paralela e, supostamente, independente29.

“Na teoria, a prática é outra coisa”

Como referimos, existe um jargão muito difundido, pelo menos nos meios policiais militares que nos são mais familiares, na qual se veicula que, “na teoria, a prática é outra coisa”. Este dito, quando evocado nas interações sociais entre pares, busca quase sempre colocar em oposição a realidade dos batalhões de polícia, seu caráter operacional, e a das escolas de formação, construídas no imaginário institucional como um lugar para o dever ser. Esta seria a dualidade original contida na expressão, digamos. Na PMERJ, como era de se esperar, a frase tem a mesma conotação. À despeito de seu caráter desqualificativo, de submissão do saber formal à prática policial, ela foi ouvida reiteradamente pelas equipes de pesquisa durante a realização do trabalho de campo nas próprias escolas de formação de Oficiais e Praças. Mas dizer “na prática, a teoria é outra coisa” pode se referir também a uma série de outras circunstâncias, que não se restringem à área de educação.

A expressão tem suas variações, podendo ser aplicada a diversos outros contextos relacionais. Seu sentido forte, entretanto, se mantém. Seu efeito é atribuir um valor negativo a todo e qualquer referencial que, no quadro de oposições entre teoria e prática, se situe do lado do conhecimento formal. Por exemplo, afirma-se que “a radiopatrulha é a verdadeira escola de polícia” (CARUSO, 2004). O que essa frase quer dizer? Principalmente, que o verdadeiro trabalho de polícia se aprende na prática, na dura realidade da rua, não nas escolas de formação. Ora, existem grandes mercados de bens materiais e simbólicos – políticos, morais, financeiros e mesmo acadêmicos – disputando o poder de dizer o que é ser polícia, o que é o trabalho policial. Esses campos de disputas, como se referiu Bourdieu (1983), estão organizados em formas de dizer esses campos que, no caso da PMERJ, implica o constante tensionamento entre teoria e prática. Quando os policiais dizem “na prática, a teoria é outra coisa” estão opondo campos de forças, expondo divisões e tensões, as linhas em disputa e o que está sendo disputado.

É claro que o aprendizado do ofício policial, como todos os demais, tem uma dimensão prática que agrega competências e conhecimentos experienciais ao fazer profissional. Mas por que, no caso da polícia militar, ao invés de se complementarem, uma forma de saber parece assumir a desqualificação da outra como condição? Como essa tendência, reconhecida por uma sólida bibliografia sobre o tema da formação policial (KANT DE LIMA; MISSE; MIRANDA, 2000; VEIGA; SOUZA, 2018a; 2018b), de desqualificação do saber formal, pode sabotar as pretensões de transformação cultural de uma política pública, como o fez com a Política de Pacificação? Primeiro, porque essa oposição, segundo nos parece, pertence ao mundo do trabalho, não necessariamente à política de educação e à gestão do conhecimento profissional. Ela está presente nas escolas de formação, é responsável, por exemplo, pelo baixo status da política de educação na corporação, mas não se restringe a ela.

Os policiais militares, via de regra, se referem às transferências para atuarem profissionalmente vinculados às escolas de formação como ficar na geladeira. Isso porque os afasta daquilo que realmente importa para a constituição do “ser policial”, o controle das ruas (MUNIZ, 1999). Um policial pode desejar tal coisa. Mas o fará sabendo como seus pares interpretarão seu movimento, optando por ser do administrativo em lugar do operacional. Neste contexto, fazer cursos pode ser uma maneira de galgar posições esperadas, sobretudo, entre os regimes do oficialato. Mas também pode exprimir um castigo diante de algo equivocado que se tenha feito. Ou, como diz o termo nativo, “uma cagada”. Nesse último caso, entre os oficiais muitas vezes se trata de um policial com “costas quentes” ou que tenha padrinho e o curso significa que seu translado o fará cair pra cima e ascender na hierarquia das patentes. Entretanto, dependendo do curso que fizer (e com quem faça e o momento que o faça), poderá selar sua identidade mais voltada para a lógica operativa ou administrativa. Esta última selaria seu afastamento das ruas, episódica ou definitivamente.

Analisando os currículos dos cursos de formação e aperfeiçoamento dessas escolas, ficou claro para nós que, mesmo formalmente, eles se integravam unicamente sob a perspectiva de formar “comandantes” e “comandados”30. Essa divisão primal da organização policial militar, como vimos, inaugura uma série dinâmica de oposições estruturais que organizam campos de disputas em torno do “ser policial”31 e da natureza do “verdadeiro trabalho de polícia”. Quem pode saber sobre essas coisas? Ou, pelo menos legitimamente, afirmar um lugar para falar sobre elas? É em torno do poder de traçar essas linhas, entre o que é ou não o “ser policial” e a natureza de suas atribuições, que se organiza todo um campo de disputas que tem na oposição oficial/praça o seu enclave primal.

Por outro lado, no cotidiano da PMERJ, existem linhas divergentes em relação a essa estrutura que, ao se propagarem nos espaços relacionais, a reafirmam a todo instante. Vanessa Cortes (2005), em seu estudo sobre o chamado “bico policial”, ou situação de segundo emprego não-regulamentado nas folgas32, chama a atenção para a maneira como os interesses de oficiais e praças se conjugam, se combinam, possibilitando premiações tais como mudanças nas escalas de serviços, destinação para funções mais tranquilas, de forma a que uma praça, ao assumir a função de gestor de um serviço privado, possa beneficiar um oficial direta ou indiretamente, seja com sociedade na empreitada, seja acolhendo policiais que fazem parte do “esquema” do superior hierárquico. Essa interessante inversão apenas reforça que, afinal, esses universos concebem diferentes regimes e públicos sobre os quais se exercem soberanias e mandatos policiais distintos, combinando processos pedagógicos conflitantes que favorecem o exercício da desigualdade jurídica e a deslegitimação de direitos básicos, seja em nome da ordem, seja em nome da hierarquia.

Comentários finais

No momento em que concluímos o presente texto, a política das UPPs é mais uma página virada no capítulo da Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, por uma combinação de elementos, que correspondeu a uma sucessão de episódios que minaram a credibilidade do modelo. Por um lado, a ocorrência de situações de violências nas favelas, rompendo definitivamente com a noção de uma polícia de proximidade, versão não pacificada dentro da própria Polícia Militar e, por conseguinte, não estabelecida como um padrão em todas as localidades. Por outro lado, a dispersão dos mercados ilegais de drogas e armas para outras localidades da região metropolitana e do estado, gerando uma maior pressão e certo desequilíbrio nas relações internas da corporação.

Como um sumário de todo esse processo, se pode depreender que aquilo que foi uma nova polícia na teoria, era uma velha polícia na prática. A tensão estrutural entre mudança e continuidade esteve sempre enraizada no coração da Política de Pacificação. Como sabemos hoje, a implementação da mudança cultural pretendida pelos gestores da política não aconteceu. O imperativo prático, dimensão associada à velha polícia experimentada no calor das ruas, distante dos gabinetes climatizados, de onde emanam os princípios da política e da gestão, acabou por englobar a nova proposta33. São variados os motivos de tal desfecho para mais uma iniciativa de “reforma” da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. E desde seus primeiros momentos foi constituído um esforço acadêmico para abordá-los em suas mais diversas facetas (CANO, 2012; MISSE, 2014; 2019; MACHADO DA SILVA, 2015; PIRES; EILBAUM; KANT DE LIMA, 2017). Afirmamos que foi a partir das vicissitudes das relações estruturais acima descritas que o projeto se exauriu. As rusgas internas se conjugaram com uma forçosa dispersão de práticas violentas que encontram abrigo no interior da corporação militar, construindo novos espaços para o exercício de sua territorialidade de poder e alcance de suas expectativas econômicas.

Nesse sentido, não menos importante é sublinhar as formas de atuação particularizada com que alguns policiais podem se relacionar com criminosos em áreas de favela, os chamados “arregos” (PIRES, 2010). Com as UPPs, num primeiro momento, as práticas extorsivas que garantiam vantagens econômicas para determinados grupos dentro da Polícia Militar sofreram mitigações, sobretudo em áreas extremamente rentáveis da região metropolitana. Entretanto, como pudemos observar, essas práticas acabaram sendo exercidas em outras localidades, gerando um efeito não desejável de dispersão das dinâmicas inerentes ao que o sociólogo Michel Misse (2006) denominou por “acumulação social da violência” ou, numa outra chave de leitura, o que os meios de comunicação chamaram de “migração do crime”.

Um lugar para falar dessas coisas é o lugar da teoria, que nesse imaginário bipartido é o lugar da gestão e da política pública. O lugar de um discurso que se pretende mais processual, previsível, lugar dos princípios, das métricas e das ponderações. Esse discurso tendia a ser consumido pelo público interno de forma cínica. Era como se todos já soubessem que existe uma teoria que opera como um verniz para a manutenção de velhas práticas. Estas velhas práticas, por sua vez, estão sempre nas ruas, onde o calor dos acontecimentos promove inexoravelmente a deturpação do princípio, do plano, do procedimento, dando substância aos vícios das ruas, dos antigos. Afinal, a rua é o lugar onde acontecem as interações com a população, o “cartão de visitas da polícia”. É onde se exibem também as aplicações de força, dando lugar ao exercício da violência do Estado. Assim, o lugar da teoria, na perspectiva das Praças, é o lugar do Oficial, do nível de gestão da corporação, seu ambiente interno/administrativo, de onde emana uma concepção idealizada da atividade policial, que nada tem a ver com a prática, com a rua, com a rotina da ponta da linha nos batalhões, vivida pelas Praças.

Poderíamos afirmar, alternativamente, que “a teoria depende da prática, e vice-versa”, como nos foi também afirmado no campo. Sobretudo no que concerne à disposição econômica dos serviços policiais, numa perspectiva autônoma – ou "para si" – da organização da corporação policial frente ou contra a sociedade. Como afirmou Nogueira (2013), o cotidiano dos batalhões é alimentado por uma gestão criteriosa e interessada, econômica e financeiramente, do que ocorre ou deve ocorrer nas ruas. Economia essa que envolve recursos monetários, mobiliza muito mais recursos políticos e simbólicos, manejados a partir de uma concepção de ordem pública estranha à ordem democrática34.

Nesse sentido, a polarização a que fazemos alusão se aproxima mesmo de uma “ideologia” sobre o que venha a ser a “verdadeira” atividade policial. Ou seja, uma consciência alternativa, autoafirmada, do que venha a ser a ordem pública patrocinada pelas polícias, que não se conjuga com a ordem pública ou ordem política como preconizada constitucionalmente (ARAÚJO FILHO, 2003). Neste exercício, onde se observa a prática do Estado no controle da sociedade, os universos do oficial e da praça, bem como seus diacríticos, são embaralhados. Ainda que estes antagonismos possam ser reinterpretados na prática, dando lugar a formas mais ou menos temporais de convivência com estruturas relacionais alternativas – ou um tipo de “antiestrutura”, para lembrarmos de Victor Turner (1974) –, via de regra, nossos interlocutores, praças e oficiais, procuravam se apresentar como seres bipartidos, referindo-se a uma discordância perpétua e persistente entre “teoria” e “prática” que, no fundo, visava blindar o seu fazer e repelir o controle democrático de sua atividade.

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SOUZA, T. Morte decorrente de intervenção policial: a quem compete a investigação?. Jusbrasil, 29 jun. 2018. Disponível em: https://tiagopereira1015.jusbrasil.com.br/artigos/595143206/morte-decorrente-de-intervencao-policial-a-quem-compete-a-investigacao. Acesso em: 9 abr. 2020.

TURNER, V. O processo ritual. Estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.

UNIDADE DE POLÍCIA PACIFICADORA. In: Wikipédia, a enciclopédia livre. Florida: Wikimedia Foundation, 2021. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Unidade_de_Pol%C3%ADcia_Pacificadora. Acesso em: 9 abr. 2019.

VEIGA, C. C. P. S.; SOUZA, J. S. A produção científica sobre formação dos policiais militares no Brasil. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 12, n. 1, p. 50-70, 2018a.

VEIGA, C. C. P. S.; SOUZA, J. S. Coerção e consenso: dilemas da formação policial militar. Revista Brasileira de Estudos de Segurança Pública, Goiânia, v. 11, n. 2, 2018b.


  1. Utilizaremos aspas quando estivermos reproduzindo uma fala ou escrita literal. Já o uso do itálico buscará dar tratamento a categorias específicas ou termos nativos que merecem do leitor atenção para o significado dos mesmos através de conteúdos por nós veiculados ao abordar os problemas em si, no corpo do texto, ou através de notas de rodapé.↩︎

  2. A semana de adaptação ou semana zero é o principal marco de “ruptura com a vida civil” do aluno, seja ele praça ou oficial. Foi o que depreendemos do material empírico construído a partir de trabalho de campo, em pesquisa financiada pela FAPERJ entre 2013 e 2015, como apresentaremos a seguir. Nos pareceu ser uma espécie de “rito de separação”, nos termos de Victor Turner (1974), a simbologia mobilizada no contexto da semana zero busca despir os neófitos, futuros policiais militares, dos signos e significados de sua vida pregressa, de suas origens sociais, para que possam abraçar sua nova condição identitária.↩︎

  3. O chamado ciclo das praças corresponde às graduações de soldado, cabo, sargento e subtenente.↩︎

  4. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/coracao-de-recruta-da-pm-para-depois-de-dez-dias-de-internacao-10852509. Acesso em: 31 maio 2020.↩︎

  5. O Programa foi instituído pelo Decreto Nº 42.787 de 06/01/2011, exarado pelo governo do estado do Rio de Janeiro, e dispõe sobre a implantação, estrutura, atuação e funcionamento das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências. Alterado, posteriormente, pelos Decreto Nº 44.177/2013 e, finalmente pelo Decreto Nº 45.186/2015. Posteriormente, a Lei Estadual Nº 7.799, de 04/12/2017, de iniciativa do Poder Executivo, autorizou que batalhões incorporassem as UPPs, o que é interpretado como a pá de cal no programa.↩︎

  6. Publicada na Instrução Normativa N° 22, através do aditamento ao Boletim Ostensivo da Corporação N° 027, de 12 de fevereiro de 2015.↩︎

  7. O Projeto “Saber Policial e Segurança Pública: formas escolarizadas e não escolarizadas de produção, reprodução e transmissão do saber policial” registrou seu desenvolvimento entre 22/6/2013 e 21/6/2015. Teve por objetivo, durante seu desenvolvimento, compreender, privilegiando a utilização do método etnográfico de pesquisa, quais processos de produção, reprodução e transmissão dos saberes orientam a ação e o discurso policial em diversos âmbitos de atuação. Buscou-se perceber como se podem identificar e estabelecer possíveis diálogos e trânsitos entre a(s) “ética(s) escolarizada(s)” transmitida(s) nas escolas de formação da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, perfazendo um código institucional para determinados universos profissionais, e a(s) “ética(s) não escolarizada(s)”, compartilhada(s) e transferida(s) no dia a dia do fazer policial “operacional”, prático ou corporativo (KANT DE LIMA, 1995; OBERLING, 2011). Ambas “éticas” entendidas como pautadas em regras e valores institucionalizados e formalmente estabelecidos, embora nem sempre oficialmente instituídas. Durante as variadas etapas do projeto, a construção de dados foi objeto de discussões patrocinadas pelos pesquisadores, em seminários de pesquisas mediados por leituras de textos que contribuíssem para a captação de problemáticas surgidas nas interações em campo envolvendo pesquisadores da universidade e membros da Secretaria de Estado de Segurança Pública.↩︎

  8. Entre as entrevistas formais, conduzidas mediante roteiros previamente estabelecidos, a equipe de pesquisa ouviu oficiais coronéis (2, sendo 1 aposentado), tenentes-coronéis (3), majores (2), capitães (2) e, entre as praças, sargentos (4), cabos (2) soldados (5) e um tenente recém saído do sub-oficialato.↩︎

  9. Ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Unidade_de_Pol%C3%ADcia_Pacificadora (Acesso em: 9 abr. 2019).↩︎

  10. A referida intervenção federal na segurança pública teve desdobramentos e efeitos que fogem aos interesses da presente análise e será, certamente, objeto de uma avaliação futura de nossa parte. Entre fevereiro e dezembro de 2018, o governo estadual ficou restrito a essa área e praticamente acéfalo nas demais. Evidentemente, porém, para lidar com os aspectos bipartidos e estruturais que aqui elencamos, a estratégia do governo federal foi nomear um general do exército como interventor. Este, por sua vez, nomeou um outro general como secretário de segurança para submeter as polícias e, dessa maneira, tentar dar alguma coerência à atuação numa área de difícil governabilidade, como sabemos. Como resultado mais gritante, observa-se um aumento considerável entre as mortes decorrentes das intervenções policiais no ano de 2018, padrão mantido em 2019.↩︎

  11. Ver: https://www.iets.org.br/IMG/pdf/apresentacao_seguranca_cel_robson.pdf (Acesso em: 9 abr. 2020).↩︎

  12. Categoria/indicador que inclui homicídios, latrocínios, homicídios decorrentes de intervenção policial e lesão corporal seguida de morte (Fonte: ISP).↩︎

  13. A morte decorrente de intervenção policial é um termo criado para substituir a antiga denominação oficial “ocorrência de resistência seguida de morte ou auto de resistência”, que ficou popularmente conhecida como “Auto de Resistência”. Como sua predecessora, faz referência à ocorrência na qual o policial, ao atuar para cessar uma agressão considerada injusta, leva o infrator a óbito. Ver: https://tiagopereira1015.jusbrasil.com.br/artigos/595143206/morte-decorrente-de-intervencao-policial-a-quem-compete-a-investigacao (Acesso em: 9 abr. 2020).↩︎

  14. A "suga" é uma categoria que designa a exposição dos recrutas a exercícios e atividades físicas extenuantes, muitas vezes ambientalizadas em situações de insulto às condições existenciais dos atores. Sobre seu emprego no meio policial, pode-se ler Ramos (2017).↩︎

  15. A chamada dupla entrada, como é conhecida, inaugura distintas e mensuráveis trajetórias institucionais para Oficiais e Praças na Polícia Militar: uma vez ingressando como Soldado, chega-se, no máximo, ao posto de Major QOA (Quadro de Oficiais Administrativos), por meio de um concorrido concurso interno; apenas para aqueles que ingressam direto como Tenentes, no meio da pirâmide hierárquica da corporação, é possível chegar ao posto máximo de Coronel. A pirâmide hierárquica completa envolve, no ciclo das Praças, nesta ordem de progressão, Soldados, Cabos, Sargentos e Subtenentes; no ciclo de Oficiais, Tenentes, Capitães, Majores, Tenente-coronéis e Coronéis.↩︎

  16. Academia de Polícia Civil (ACADEPOL), CFAP, APM, Escola Superior de Policia Militar (ESPM), entre outras.↩︎

  17. Batalhão de Operações Especiais (BOPE), Batalhão de Choque da PMERJ, dentre outras.↩︎

  18. Disponível em: https://bancodetalentos.pmerj.rj.gov.br/. Acesso em. 21/12/2020.↩︎

  19. Escolas estas que, por sua vez, eram uma suspensão e uma antecipação da realidade vivida nas ruas, socializada pelos instrutores, nas unidades operacionais, nos batalhões, da “verdadeira prática de polícia”.↩︎

  20. Segundo Fromm (2010), a categoria guerreiro conota um defensor da guerra, alguém que não só é habilidoso, mas também sanguinário e primitivo – ou “antigo e medieval” –, que luta por sua própria glória e deleite e até mesmo por um prazer visceral. Fromm faz alusão ao termo “warrior ethos”, cunhado por Gray (1998) e é com este sentido que empregamos o termo, considerando a utilização do termo por parte de nossos interlocutores.↩︎

  21. Roberto Reiner afirma que a cultura policial, na democracia liberal, não significa meramente atitudes da polícia. Ela, como toda cultura, é um complexo conjunto de valores, atitudes, símbolos, regras e práticas que resultam da reação do grupo, enquanto categoria profissional, em virtude das pressões estruturais que os estimulam, cognitivamente (e corporalmente, acrescentamos nós, em virtude de nossa etnografia). No exercício de suas faculdades e atribuições, adotam estratégias e iniciativas comuns à diversidade existente no âmbito da agência policial, bem como nos grupos profissionais e sociais com os quais interagem. Modelada por diferentes padrões e legados históricos, a Polícia parece desenvolver suas ações entre regras de engajamento constituídas a partir de distintas dimensões. As regras legais e de apresentação perfazem os valores, as normas, as perspectivas e as orientações de ofício que direcionam sua conduta (REINER, 2000).↩︎

  22. A política de pacificação se insere na doutrina da Polícia de Proximidade e, subliminarmente, estabelece diferenciação com a lógica de confronto que, no jargão nativo, se refere ao “tiro-porrada-e-bomba”. historicamente empregado em áreas de favelas. Especialmente nas favelas da zona norte do Rio de Janeiro. As UPPs seriam, assim, aquelas unidades que, instaladas em áreas de favela, abrigariam agentes orientados por essa política, buscando prestar serviços de mediação de conflitos, substituindo atores vinculados aos grupos criminosos que, atuantes no território, se dedicariam a resolver disputas e conflitos entre os moradores dessas regiões.↩︎

  23. Ver novamente Ramos (2017).↩︎

  24. As “canções de guerra” são cânticos motivacionais para inspirar força aos alunos. Não são oficiais, mas são aceitas e informalmente incentivadas. Cada pelotão, que constitui as turmas de formandos da PMERJ, tem as suas. Como, por exemplo: “Quando eu morrer eu vou de FAL e de BERETTA/Vou lá no inferno dar três tiros no capeta/E o capeta vai ficar desesperado/Meu Deus do céu tira daqui esse soldado”. Ver Milagres, 2001.↩︎

  25. Alguns estudos, oriundos da Pedagogia, entre 1960 e 1970, destacaram a existência de vários níveis de currículo: Formal, Real e Oculto. O Currículo Formal refere-se ao currículo estabelecido pelos sistemas de ensino, expresso em diretrizes curriculares, objetivos e conteúdos das áreas ou disciplinas de estudo. O Currículo Real é aquele que acontece a cada dia dentro da sala de aula com professores e alunos, em decorrência de um projeto pedagógico e dos planos de ensino. Já o Currículo Oculto é o termo usado para denominar as influências que afetam a aprendizagem dos alunos e o trabalho dos professores. Ele representa tudo o que os alunos aprendem diariamente em meio às várias práticas, atitudes, comportamentos, gestos e percepções que vigoram no meio social e escolar. Ver Moreira e Silva, 1997.↩︎

  26. Dentre os vários perigos dessa representação, certamente está a naturalização das condições adversas de trabalho dos agentes. Ao prepará-los para esse tipo de situação, a corporação acaba por reificar essa condição como um dado inelutável da realidade, dando a sua própria parcela de contribuição para a perpetuação dos riscos de vitimização a que está exposto o seu efetivo. Sobre o tema da vitimização policial e das condições de trabalho das polícias ver Minayo, Souza e Constantino (2007, 2008); Minayo, Assis e Oliveira (2011).↩︎

  27. Segundo a doutrina, é através dessa autoridade que se alcançam valores fundamentais como disciplina, autocontrole, senso de grupo, autoestima e desenvolvimento físico. Ver: http://forcasarmadasbrasil.blogspot.com/2012/03/oque-e-ordem-unida.html. (Acesso em: 30 maio 2020).↩︎

  28. Os oficiais na PMERJ são responsáveis por comandar as praças (soldados, cabos e sargentos), tendo como premissa institucional a hierarquia e a disciplina. Entende-se por hierarquia a ordenação da autoridade em níveis diferentes e por disciplina o rigoroso acatamento de leis, normas, regulamentos e disposições que fundamentam o organismo policial militar. Os oficiais são organizados em três ciclos distintos: a) os oficiais superiores que reúnem coronéis, tenentes-coronéis e majores; b) os oficiais intermediários, que são os capitães; e c) os oficiais subalternos que são os tenentes e subtenentes.↩︎

  29. Fazemos recurso à imagem da Matrix, conforme explorado no filme de mesmo nome, de 1999, dirigido por Lilly e Lana Wachowski. Trata-se de uma simulação computadorizada que cria um mundo imaginário onde as pessoas são prisioneiras daquela realidade virtual. Enquanto isso, o corpo humano é preservado em uma cuba com múltiplos fios ligados à Matrix, cujas máquinas se alimentam de sua energia vital como se fossem pilhas. A analogia aqui, a princípio, se refere à existência de dois planos de realidade, uma cobrando um plano mais hierárquico. Contudo, a prostração dos corpos guarda relação com a densidade da descrição que queremos empreender neste texto.↩︎

  30. O que mais vimos, seja a partir da análise dos currículos, seja nas incursões pelo CFAP, foi que os praças tinham muito mais ordem unida e menos sala de aula, bem como empregados em atividades de limpeza e manutenção das instalações. Os oficiais, por seu turno, estavam a maior parte do tempo em sala de aula, como instrutores. Por outro lado, considerando os conteúdos curriculares, era muito maior a carga de direito positivo e dogmático, bem como conteúdos herméticos voltados para noções de gestão, liderança e comando.↩︎

  31. "Ser policial”, afinal, “é sobretudo uma razão de ser”, como diz o Hino da PMERJ.↩︎

  32. Quando o trabalho foi realizado ainda não existiam legislações que permitiam o emprego do trabalho policial para além de suas escalas de serviços. Atualmente existe o RAS – Regime Adicional de Serviço, ao qual se associa o Programa Estadual de Integração de Segurança (PROEIS), que permite o estabelecimento de convênios entre órgãos estaduais e municipais para a percepção de serviço direcionado de policiais militares visando complementar as demandas por segurança. Em que pese as mudanças, as lógicas estruturalmente descritas não apenas seguem sendo observadas, como incrementadas em nível significativo. Ver Misse, 2019.↩︎

  33. Que também não era tão “nova” assim, diga-se de passagem, tendo em vista iniciativas anteriores como o GPAE – Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais, por exemplo, cuja proposta de “policiamento comunitário em favelas” era quase idêntica à da UPP.↩︎

  34. O que Reiner, para resgatar sua contribuição a respeito da “Política da Polícia”, afirma ser um desafio permanente nas democracias liberais. O que dizer, no Brasil, onde o liberalismo sempre teve dificuldades de enraizar-se (SANTOS, 1979; KANT DE LIMA, 1995; PIRES, 2010; ALBERNAZ, 2018).↩︎