Percepções sobre a igualdade entre homens e mulheres na Polícia Militar do Rio Grande do Sul

Juliana Krupp da Silva

Advogada especialista e pós-graduada em Direitos da Mulher (OAB/RS 119.885) e graduanda de Bacharelado em Filosofia (UFRGS). Integrou projeto de pesquisa na área de Direito Penal e atuou como bolsista de Iniciação Científica FAPERGS (PROBIC 2016-2017) em projeto voltado ao estudo da Polícia Militar do Rio Grande do Sul e Direitos Humanos.

País: Brasil Estado: Rio Grande do Sul Cidade: Canoas

Email: julianakrupp@outlook.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9362-6533

Dani Rudnicki

Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1995) e em Comunicação Social, jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1991). Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1999) e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007). Professor do PPG Direito da Universidade La Salle/Canoas. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Sociologia da Violência (pesquisa sobre polícia e presídios). Além da vivência acadêmica, dedica-se à advocacia e milita junto ao Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul.

País: Brasil Estado: Rio Grande do Sul Cidade: Porto Alegre

Email: danirud@hotmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4984-3127

Carmen Hein de Campos

Doutora em Ciências Criminais (PUCRS). Foi professora do Mestrado em Direitos Humanos (UniRitter) e do Mestrado em Segurança Pública (UVV)

País: Brasil Estado: Rio Grande do Sul Cidade: Porto Alegre

Email: charmcampos@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4672-0084

Contribuições dos Autores:

Juliana Krupp da Silva - Realização dos grupos focais (organização e coleta de dados) e participação igualitária em relação aos demais autores para a redação e formatação do texto.

Dani Rudnicki - Concepção, planejamento e execução do artigo. Interpretação dos resultados. Participação na escrita. Discussão. Aprovação final da versão a ser publicada.

Carmen Hein de Campos - Toda/os os/as autores/as contribuições igualmente

Resumo

Este artigo busca analisar e compreender as percepções de gênero das mulheres policiais militares do estado do Rio Grande do Sul e se o discurso igualitário da corporação é consistente com as práticas internas existentes. Para tanto, será abordado o contexto histórico-social acerca das construções do gênero feminino e o seu espaço de atuação profissional no âmbito das instituições policiais militares. A pesquisa qualitativa, realizada em 2018, utilizou como técnica para a coleta de dados grupos focais compostos por mulheres policiais que ocupam o cargo de soldado na Polícia Militar do Rio Grande do Sul (Brigada Militar). Observou-se que as policiais entrevistadas sofrem situações de opressão e enfrentam dificuldades profissionais em razão do gênero, o que contraria o discurso da corporação.

Palavras-chave: Mulheres policiais. Gênero. Igualdade. Polícia Militar do Rio Grande do Sul.

Perceptions of equality between men and women in the Military Police of Rio Grande do Sul

Abstract

This article seeks to analyze and understand the gender perceptions of female military police officers in the State of Rio Grande do Sul and if the corporation's egalitarian discourse is consistent with existing internal practices. To this end, the historical-social context about the constructions of the female gender and their space for professional performance within the scope of military police institutions will be addressed. The qualitative research realized in 2018 used focus groups composed of policewoman's who occupy a Soldier's position in the Military Police of Rio Grande do Sul (Military Brigade) as a data collection technique. It was observed that the interviewed policewoman's suffer situations of oppression and face professional difficulties due to gender, which goes against the corporation's discourse.

Keywords: Policewoman. Gender. Equality. Military Police of Rio Grande do Sul.

Data de Recebimento: 19/04/2021 – Data de Aprovação: 29/06/2021

DOI: 10.31060/rbsp.2023.v17.n1.1485

Introdução

Este estudo tem como objetivo compreender as relações de gênero no âmbito da Brigada Militar1 a partir das percepções das policiais femininas que atuam como soldadas2 na Instituição. A partir de dois grupos focais realizados, no total, com 18 mulheres policiais, analisou-se a congruência das afirmações sobre igualdade entre homens e mulheres na profissão a partir de situações práticas experienciadas pelas policiais em suas rotinas profissionais.

A inserção das mulheres no campo de atuação policial foi uma importante conquista feminina. No entanto, apesar do espaço alcançado em ocupações tradicionalmente masculinas, a noção de que a atividade policial é relacionada ao gênero masculino e à virilidade ainda se faz presente. Logo, tem-se que a abordagem na esfera da Brigada Militar sob um recorte de gênero revela-se imprescindível não apenas para desvelar a existência da desigualdade de gênero, mas também para proporcionar melhorias nas condições e relações de trabalho das policiais militares femininas, impulsionando, desta forma, avanços na instituição e, por conseguinte, inúmeros benefícios para a sociedade.

Este artigo está alicerçado em uma pesquisa de campo realizada entre setembro e outubro de 2018 e que procurou responder à seguinte questão: como se produz o discurso sobre igualdade de gênero na Brigada Militar? Esta indagação requer profunda análise histórico-social acerca das construções sobre o gênero feminino e o seu espaço de desenvolvimento profissional nas instituições policiais (militares).

A pesquisa utilizou como técnica para a coleta de dados o grupo focal. Houve dois encontros: um grupo realizado no 9º Batalhão de Polícia Militar (9º BPM), em 5 de setembro de 2018, e outro no Batalhão de Operações Especiais (BOE), em 10 de outubro de 2018, ambos em Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul. Todas as participantes eram policiais mulheres que ocupavam o cargo de soldado, razão pela qual foram convidadas a participar da amostra, e foram voluntárias3, selecionadas aleatoriamente, em razão da disponibilidade no batalhão, não havendo escala operacional a cumprir no momento da realização dos grupos.

Ressalte-se que a metodologia aplicada – a realização de grupos focais – foi imprescindível para uma produtiva obtenção de dados. Isso porque, na dinâmica proposta, as participantes foram convidadas a sentarem-se em círculo, sendo questionadas sobre assuntos pessoais e profissionais, o que se desenvolveu em tom de conversa e as deixou mais à vontade para expressarem as suas opiniões. As perguntas, que faziam referência à vida pessoal das voluntárias, de modo geral, eram realizadas para cada uma, ao passo que as perguntas acerca do âmbito profissional eram direcionadas ao grupo. Neste aspecto, embora as perguntas direcionadas aos dois grupos tenham sido idênticas, bem como os apontamentos em relação aos anseios e às dificuldades profissionais tenham sido semelhantes em diversos pontos, foi possível vislumbrar diferenças no perfil das policiais dos dois grupos. Em relação à desenvoltura e à comunicabilidade das participantes, percebeu-se que as voluntárias do 9º BPM apresentaram um comportamento mais retraído, exprimindo respostas bastante objetivas, sem grande desenvolvimento de opiniões, e mantiveram a seriedade ao longo de quase toda a conversa, com breves momentos de descontração. Por outro lado, as voluntárias do BOE mostraram-se bastante à vontade, foram mais receptivas e comunicativas, proporcionando uma coleta de dados fluída e entrevistas com maior duração.

Importa mencionar que pesquisas sobre policiais militares femininas têm sido objetivo de vários estudos (RIBEIRO, 2018; MUSUMECI; SOARES, 2004; CALAZANS, 2003; SCHACTAE, 2010; CAPELLE; MELO, 2010; MOREIRA, 2009; SOARES; MUSUMECI, 2005) e permitem compreender as formas de resistência feminina criadas pelas mulheres policiais militares a fim de contraporem-se à imposição de um modelo convencional masculino e militar. Assim, observando os reflexos que decorrem desse processo difuso entre a figura feminina e uma profissão historicamente masculinizada, tomaremos como orientação referencial teórica a substancial contribuição de Joan Scott (1995) sobre o estudo de gênero e as relações de poder.

As participantes dos dois grupos focais declararam-se brancas e o debate sobre racismo não apareceu nos grupos focais, limitando o estudo, uma vez que o feminismo negro e os estudos decoloniais há muito têm demonstrado a interseccionalidade de gênero, raça e classe (CARNEIRO, 2019; CRENSHAW, 2002; DAVIS, 2016; LUGONES, 2019). Nesse sentido, compreendemos o sexismo, o racismo e a classe como estruturantes das desigualdades e das opressões no Estado brasileiro e, portanto, presente nas instituições policiais.

Acreditamos que esta pesquisa se soma aos estudos que buscam compreender as relações de gênero em instituições marcadamente masculinas.

As dimensões de gênero: mulheres nas instituições militares

O Estado e as suas instituições de poder, a exemplo das entidades militares, polícias civil e federal, são ambientes predominantemente ocupados por homens, onde suas ações e personificações são afirmadoras de masculinidade (SCHACTAE, 2010, p. 1). Desse modo, as construções que circundam a masculinidade atribuída aos indivíduos atuantes na área policial são identificadas pelo uso da violência, pelo uso das forças física e bélica, e pela coragem, representadas em fardas e armas utilizadas pelo Estado como instrumentos de poder (SCHACTAE, 2010, p. 1).

Por outro lado, o desenvolvimento social que levou a modificar algumas funções da polícia culminou no debate sobre a inserção das mulheres nas instituições policiais para acompanhar e atender às demandas sociais mais recentes. Assim, os preceitos tradicionais das organizações policiais, tais como força física e virilidade, são postos em discussão, passando a valorizar a inovação, a inteligência, a capacidade de resolução de conflitos e a desenvoltura no trabalho em equipe (CALAZANS, 2003, p. 37).

O ingresso das mulheres nas polícias militares ocorreu, inicialmente, na década de 1950 (RIBEIRO, 2018, p. 1), no entanto, este processo de inclusão foi lento, pois a participação de mulheres nas polícias de todo o país passou a ser regulamentada, de fato, somente no ano de 1977, ainda no período da ditadura militar, por meio de uma portaria do Estado-Maior do Exército, que era incumbido de aprovar a organização normativa das polícias militares (SOARES; MUSUMECI, 2005, p. 29). No ano de 1984, surge a nova redação do Decreto-Lei Nº 667, de 2 de julho de 1969 – que, até então, nada mencionava sobre o tema – incluindo “o ingresso de pessoal feminino” nos quadros regulares das polícias militares de todo o país (CALAZANS, 2003, p. 29).

Por volta de 1986, após o período ditatorial, acompanhando uma evolução social que atendia a “demandas e pressões sociais pela democratização de um campo de trabalho secularmente fechado à participação feminina” (SOARES; MUSUMECI, 2005, p. 15), as mulheres passaram a fazer parte oficialmente das corporações policiais brasileiras.

Outro fator de relevância que impulsionou a inclusão de mulheres nas polícias foi a necessidade de “humanizar” as instituições de controle no período final e posterior à ditadura militar, a fim de dissociar a imagem da Polícia Militar da brutalidade e das violações de Direitos Humanos cometidas durante a ditadura e modificar as concepções de segurança pública. Note-se, neste ponto, que a simbologia de humanização atrelada à mulher reforça os estereótipos relacionados ao gênero feminino. Conceitualmente, estereótipo alude a uma “representação cultural preexistente” que antecipa as concepções imagéticas sobre o outro a partir de “modelos culturais pregnantes” (AMOSSY, 2008, p. 125) e que, neste contexto brasileiro de inserção de mulheres nas polícias, importou na necessidade de um padrão de instituição ligado à performance do feminino e suas noções naturalizadas de amabilidade, delicadeza e sensibilidade.

Assim, as polícias militares não passaram por uma reestruturação profunda em sua estrutura ou cultura institucional (MUSUMECI; SOARES, 2004, p. 185) e não se modificaram com o ingresso de mulheres, apenas incorporaram uma demanda já existente em outros países (SOARES; MUSUMECI, 2005, p. 15). Como destaca Calazans (2003, p. 16), a organização começou um processo de feminização sem que esse ingresso fosse discutido e preparado, consequentemente, apenas aderindo à modernização do mundo do trabalho.

Neste panorama, importa referir que o gênero tem sido uma importante categoria de análise feminista, pois desloca-se da concepção biologizante associada ao conceito de “sexo”. Uma das definições de gênero mais usuais no Brasil e que, oportunamente, respalda o desenvolvimento teórico deste artigo, é a formulada por Joan Scott (1995, p. 72), que afirma que: “gênero é um processo de construção de identidade” que ocorre a partir de fenômenos sociais de aspecto histórico e, também, cultural. A autora rejeita, portanto, “explicações biológicas” na formação das “identidades subjetivas de homens e mulheres” e indica que estas identidades são, em sua origem, “construções culturais” (SCOTT, 1995, p. 75). Para Scott (1995, p. 72), gênero é, essencialmente, uma “organização social da relação entre os sexos” e sua definição substancial possui duas asserções, quais sejam: “é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” e, conjuntamente, “uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86). Esta estruturação e conceituação da categoria gênero, situada sob as óticas do feminino e do ofício policial, revela-se elementar para compreender a forma como a idealização sobre o gênero feminino e seus determinados “papéis sexuais” (SCOTT, 1995, p. 75) afastam a mulher de um ser dotado de propriedades como virilidade, força e bravura para a ação e o combate – noções que constroem o homem – e que são característicos na expressão das atividades desenvolvidas pela polícia (MOREIRA, 2009, p. 1). A construção do gênero feminino afasta a mulher, sobretudo, do poder.

Para Scott (1995, p. 92), o “processo social das relações de gênero” é parte do significado de poder, de modo que contestar ou desconstruir a concepção de gênero e suas relações representa uma ameaça a toda ordem política e social. Com efeito, a designação de que cada sujeito binário (homem ou mulher) deve comportar-se de certo modo e desempenhar um correspondente papel social definido de acordo com o gênero, moldando-se a uma hierarquia de poder, pode ser evidenciada não apenas nos discursos das policiais entrevistadas, como veremos adiante, mas também na composição e estruturação das relações estabelecidas na instituição.

Se o estereótipo feminino sempre conferiu às mulheres, sobretudo às mulheres brancas, uma condição de pouca força física e grande sensibilidade emocional – daí a função maternal associada ao cuidado, à proteção e ao suporte do lar (LUZ; FUCHINA, 2009, p. 4) –, o ingresso das mulheres na Polícia Militar provoca fissuras, mas não rupturas, pois a maioria delas ainda exerce funções administrativas e não operacionais (CAPELLE; MELO, 2010, p. 85). Não raras vezes, a presença feminina nas polícias militares reproduz os padrões sociais vigentes, seja pela ocupação de cargos de menor importância, pelo acesso limitado aos postos de comando ou pelo desempenho de funções mais desvalorizadas, tipicamente associadas ao mundo doméstico (SOARES; MUSUMECI, 2005, p. 17).

Nem mesmo a Constituição democrática (Brasil, 1988), com seu programa antidiscriminatório, conseguiu impor a igualdade, de fato, nas polícias militares no Brasil. Importa referir que, conforme a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), foi somente na primeira década do século XXI que as mulheres atingiram os cargos mais altos das instituições policiais (SENASP, 2013, p. 13).

Nesse sentido, os dados apresentados em 2015 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) sobre as mulheres nas instituições policiais informam a baixa representação feminina nas polícias de todo o Brasil e revelam que as mulheres que atuam nessas instituições sofrem abusos, assédio, preconceitos e enfrentam diversas barreiras na vida profissional em razão do gênero. A pesquisa quantitativa foi realizada por meio da aplicação de questionário virtual e contou com a participação de agentes homens e mulheres de todo o país. Segundo os dados, a Polícia Militar é a instituição que apresentou o menor número de mulheres na corporação, sendo apenas 12,3%, enquanto as mulheres tiveram a maior representação na polícia científica/perícia, significando 38,6% da corporação (FBSP, 2015, p. 9).

Sobre discriminação e violência de gênero nas instituições, apurou-se que 62,9% das mulheres policiais que responderam à pesquisa já experimentaram pessoalmente comentários inapropriados ou sexuais no ambiente de trabalho e que 55,2% consideram as piadas ou comentários sobre sua aparência física, orientação sexual ou capacidade cognitiva como formas de violência de gênero. Ainda constatou-se que 38,8% dos respondentes acreditam que as mulheres usam de trocas de favores sexuais para ascenderem hierarquicamente em sua instituição e 40,4% das mulheres também concordam com essa afirmação (FBSP, 2015, p. 15-16).

Com base nesses dados, é possível perceber que a inserção das mulheres na atividade policial está longe de significar um avanço na igualdade entre os gêneros nas instituições de segurança pública. Apesar de todo o progresso histórico no sentido de acompanhar as novas estruturas sociais e políticas, as mulheres ainda são minoria nas corporações e enfrentam preconceitos e degradações em âmbito profissional, do que se depreende que a masculinidade é um instrumento de poder intrínseco às instituições policiais. A Polícia Militar do Rio Grande do Sul não foge à regra.

Brigada Militar e presença feminina nos batalhões

A Brigada Militar existe há 182 anos e possui forte ligação com a tradição rio-grandense. Isso porque uma primitiva organização de polícia que operava no arranjo de defesa e manutenção da ordem e que, mais tarde, se constituiria na Brigada Militar, sempre esteve presente nos momentos mais importantes e decisivos do estado; em sua narrativa, ela declara a própria história confundida com a história do Rio Grande do Sul (RUDNICKI, 2007, p. 155).

Nesta linha, percebe-se que a Brigada Militar é uma polícia bastante orientada por seus valores. De inspiração tradicional, a essência estrutural da instituição reforça, sobretudo, a disciplina e a honra no compromisso com a sociedade, e salienta, em seus princípios, o empenho em atuar dentro dos parâmetros legais.

Na instituição, a hierarquia de cunho militar é basilar no sistema de gestão das funções e atribuições da atividade policial, sendo aspecto-chave para a compreensão da estrutura vertical de comando e autoridade na Brigada Militar. A hierarquia da Polícia Militar gaúcha é dividida entre praças e oficiais, em que os soldados e sargentos, que pertencem à categoria de praças, acatam as ordens de capitães, majores, tenentes-coronéis e coronéis, que constituem a categoria de oficiais, sendo que cada um, respectivamente, deve obediência ao seguinte da escala hierárquica.

Acompanhando a tendência no país, as características militares e o conservadorismo existentes na Brigada Militar não foram limitadores para o ingresso das mulheres após a sua abertura ao trabalho feminino. Neste aspecto, é fundamental compreendermos a representatividade feminina na corporação nos dias de hoje.

O número total de agentes que compõem a categoria de praças é de 15.519, sendo que destes, 12.956 agentes são do sexo masculino e 2.563 são do sexo feminino, o que corresponde a 16,3% de mulheres. Na classificação de oficiais, o efetivo total é de 1.310, em que os homens representam um número de 1.156 agentes, enquanto as mulheres nesta mesma categoria somam 154 agentes, o que representa 11,7% de mulheres4. Nesse sentido, é possível extrair que, de um efetivo geral de 16.829 agentes, existem somente 2.717 mulheres nos quadros da Brigada Militar, representando apenas 16,1% do efetivo geral, o que talvez possa ser atribuído à recente inclusão do sexo feminino na instituição.

Analisando o panorama histórico em âmbito gaúcho, foi em 1985 que se criou a Companhia de Polícia Militar Feminina da Brigada, por meio da Lei Estadual Nº 7.977 (RIO GRANDE DO SUL, 1985), regulamentando o ingresso de soldadas, cabos, sargentas e oficiais femininas. A criação dessa primeira companhia de Polícia Militar feminina gaúcha, que se deu no fim do período ditatorial brasileiro, tinha objetivo manifestamente conservador na atribuição de funções às mulheres, incumbindo-as dos atendimentos considerados mais sensíveis, tais como a assistência em ocorrências envolvendo idosos, crianças e mulheres (CHAGAS, 1987, p. 38).

Com um efetivo de dez agentes, a primeira turma de policiais militares feminina foi admitida em 17 de fevereiro de 1986 e, de início, participariam das aulas ministradas na Academia de Polícia Militar (APM), no Curso de Habilitação de Oficiais Femininas (CHOFem), cuja conclusão ocorreu em 24 de julho de 1987, momento em que se tornaram aptas a exercer as atividades de coordenação dentro da Brigada Militar. Outras duas datas de grande importância foram o dia 31 de julho de 1987, quando se formou a primeira turma de sargentas, e o 25 de setembro do mesmo ano, quando aconteceu a formatura da primeira turma de soldadas. Por conseguinte, é nesta data que se instaura efetivamente a 1ª Companhia de Polícia Militar Feminina (CONSUL, 1999, p. 47).

Considerando que os comandantes não tinham confiança suficiente na capacidade do trabalho das agentes femininas, criaram-se normas que limitavam consideravelmente a atuação das mulheres dentro da instituição. Entre elas, estavam a estipulação de horário laboral, que seria somente das 7 horas às 18 horas, e escalas em locais de pouco risco, como escolas, rodoviárias, eventos culturais e festivos com acompanhamento de numeroso efetivo masculino, bem como houve redução da jornada de trabalho em relação à dos policiais homens (CONSUL, 1999, p. 48).

O quadro especial de Polícia Militar feminina do RS foi extinto e unificado aos quadros masculinos em 1997, doze anos após a criação da Companhia de Polícia Militar Feminina da Brigada Militar, possibilitando às mulheres a concorrência aos mesmos cargos que até então eram reservados e ocupados, por força de lei, exclusivamente pelos seus colegas homens. Em razão dessa unificação, as tarefas entre homens e mulheres passaram a ser atribuídas sem levar em conta o gênero, tendo as policiais femininas a possibilidade de alçarem os postos mais altos da hierarquia da Brigada Militar (CALAZANS, 2003, p. 47).

É importante referir que a equiparação formal existente entre os sexos hoje, na Brigada Militar, não significa oportunidades homogêneas de ascensão na carreira. Isso porque, como anteriormente revelado por meio dos dados sobre o número de agentes na instituição, categorizados por posto e sexo, tem-se que o número de mulheres, em geral, ainda é bastante baixo na Brigada Militar e, proporcionalmente, é menor ainda quando se analisa o número de oficiais mulheres ocupando os postos mais altos da hierarquia.

Analisando o discurso da igualdade de gênero na instituição

Considerações gerais sobre o perfil das soldadas participantes

Para a pesquisa de campo desenvolvida, foram ouvidas, no total, dezoito policiais militares mulheres pertencentes à categoria de soldado. No grupo focal realizado no 9º BPM participaram dez soldadas, sendo uma delas transexual, e todas atuavam tanto no policiamento ostensivo quanto no setor administrativo do batalhão, com revezamento de escalas. Elas tinham idades entre 25 e 34 anos, sendo que, destas, oito eram solteiras e duas casadas, e somente uma delas era mãe (tinha um filho). O ano de ingresso na Brigada Militar variava entre 2007 e 2017, e, quanto ao grau de escolaridade, quatro voluntárias tinham Ensino Médio, duas eram graduadas em Direito e as outras quatro estavam frequentando a faculdade de Direito.

O grupo focal realizado no BOE contou com a presença de oito soldadas, que também estavam internamente distribuídas nas funções administrativas e operacionais. As participantes tinham idades entre 24 e 35 anos; três delas eram casadas, três eram solteiras, uma vivia em união estável e outra era divorciada; três tinham filhos e outra, à época da realização do grupo focal, estava grávida. Elas ingressaram na Brigada Militar entre 2003 e 2017 e, com relação ao nível escolar, duas tinham Ensino Médio completo, três estavam cursando faculdade de Direito e outras três já eram graduadas nos cursos de Educação Física, História e Ciências Contábeis.

As soldadas do 9º BMP foram enfáticas ao afirmarem que a escolha da profissão se deu em razão da estabilidade profissional, sendo que apenas duas mencionaram também a admiração pela profissão policial, acrescentando que “Foi a estabilidade e tentar ascender na carreira” e “Estabilidade financeira, fato”. Por outro lado, as participantes do BOE declararam que a escolha foi determinada, sobretudo, em razão da admiração ao militarismo e à atividade policial, ocorrendo, muitas vezes, por influências familiares:

Eu tinha uma vontade de contribuir de alguma forma com a sociedade, tanto é que eu fiz magistério antes, que eu queria algo pra ajudar as crianças a terem uma boa educação e tal. Aí depois, eu sempre admirava muito o militarismo, aí eu tentei conciliar os dois, né, militarismo mais alguma forma de ajudar a sociedade, e aí eu busquei a Brigada Militar. Soldada do BOE.

“Eu, também, foi meus irmãos, eu tenho meus irmãos da Brigada, sempre quis ser polícia, sempre gostei do militarismo e procurei... E quando eu fazia o curso, eu queria vir pro BOE.” Soldada do BOE.

Uma das participantes mencionou que, apesar do suporte e da influência familiar para a escolha da profissão, encontrou dificuldades de aceitação em seu círculo de convivência, o que atribuiu a posições políticas:

Eu também... É de família, meu pai é policial militar. Até enfrentei um pouco de barreira antes de fazer o concurso, perdi conhecidos de faculdade porque eu era estudante de História, eu tinha 21 anos, a grande maioria é da linha de esquerda [palavra inaudível], mas eu entrei com aquele pensamento que eu acho que a Brigada Militar tinha que ter, sim, pessoas, né, que fossem da área de humanas. Soldada do BOE

Acerca disso, os estigmas que circundam a estrutura, as atribuições e os modos de operação da Brigada Militar e que, consequentemente, refletem na concepção sobre grupo de policiais militares, podem ser as razões pelas quais as agentes acabam enfrentando barreiras e afastando-se de seu círculo social. Para elas, resta evidente a incompreensão das pessoas em relação aos hábitos e às rotinas da esfera militar.

Veja-se, outrossim, que o trabalho policial prescinde de uma socialização e adaptação com a rotina e o modo de vida da Polícia Militar, que distancia os sujeitos de formas de vida não conciliáveis a esta (NUMMER, 2005, p. 44-45). O fato de tornar-se policial militar e partilhar com colegas de trabalho os mesmos estigmas e situações decorrentes da profissão cria nos sujeitos relação de cumplicidade e noção de pertencimento a um grupo social determinado que, neste caso, é a corporação da Brigada Militar.

Neste panorama, importa observar que no regime de socialização e treinamento para a atuação na Polícia Militar ocorre um processo de institucionalização do sujeito que leva à desconstrução de sua identidade profissional individual e estabelece uma identificação coletiva associada ao heroísmo da investidura policial, consumando a mortificação do eu (CALAZANS, 2003, p. 101). É, portanto, sob a ótica de instauração e apropriação do espírito de corpo que a dimensão institucional é posta acima da dimensão individual e as mulheres policiais percebem-se ocupando o mesmo lugar de seus colegas homens (CALAZANS, 2003, p. 101).

A partir do sentimento de pertencimento ao grupo na identidade militar e a percepção de que a coletividade prevalece sobre o indivíduo (CASTRO, 1990, p. 43), tem-se que uma conduta considerada negativa praticada por uma agente pode afetar a imagem de todo grupo de policiais femininas. Sobre isso, as soldadas afirmaram que: “Durante o curso acontecem muitas coisas, assim, em relação a colegas, né, de namoro, enfim, né, que as mulheres acabam não se dando ao respeito e a tudo isso que elas conquistaram… Tem isso também.” Soldada do 9º BPM. “Acaba que as próprias mulheres fazem rebaixar esse pensamento de ‘ai, porque as mulheres são assim’. É uma que outra, que daí ‘ah, porque fem (policial feminina) não presta’, porque uma não quer trabalhar às vezes.” Soldada do BOE.

[...] Foi que nem no, acho que foi no nosso curso, Rafaela? [...] “Ai eu não consigo levantar escudo”, mas era a guria que tava falando... Não quero mais e largou o escudo, e aí alguém teve que pegar o escudo dela. Vem mais da mulher às vezes que do homem. Aí depois o homem fala “bah, mas...”, daí tu vai dizer o quê? “Bah, pior que é verdade”. Tu vai ter que concordar. Soldada do BOE.

Pode-se observar que existe uma preocupação em torno dos comportamentos femininos dentro do batalhão e dos julgamentos que podem decorrer dessas condutas, atingindo, de forma generalizada, o grupo de policiais femininas. Desde muito novas, as mulheres são ensinadas a agir de acordo com o que se espera delas e a interagir socialmente sob um contexto de constrições em diversos aspectos de sua conduta (modo de se portar, uso de um linguajar adequado, imposição de determinadas roupas, entre outros). Esta série de expectativas e regramentos comportamentais culturalmente construídos para serem condizentes com os papéis adequados às mulheres e ao gênero feminino (SCOTT, 1995, p. 75) reflete-se, por conseguinte, no ambiente de trabalho, pois aquela mulher que desviar do padrão comportamental culturalmente imposto não é considerada uma “mulher de respeito” e deve, assim, sofrer represálias (RIBEIRO, 2018, p. 9).

É, portanto, nestes mecanismos de controle do gênero masculino sobre o gênero feminino, por meio de contextos e atividades sexualmente divididas, que residem as relações de poder referidas na obra de Joan Scott (1995). Os padrões sociais e o machismo que circunda a vida das mulheres, mesmo que elas estejam em cargos profissionais historicamente masculinizados como a atividade policial, impõe às policiais femininas uma necessidade constante de afirmação da capacidade laboral e cuidado incessante com a imagem pessoal, sob pena de depreciação da sua própria imagem e do trabalho das mulheres como um todo.

Os estereótipos masculinos e femininos no exercício da profissão

Inicialmente, sobre condições ou limitações físicas, as participantes declararam que não encontram dificuldades para a execução do trabalho, pois, caso necessitem de ajuda, elas solicitam a algum colega de farda. Mencionaram, porém, que se sentem em desvantagem física em relação aos colegas homens, mas que isso não as impede de realizar nenhuma atividade que lhes seja atribuída dentro da Brigada Militar: “Eu não tenho como comparar, por exemplo, o meu tamanho com o tamanho da maioria dos guris, não tem como comparar.” Soldada do 9º BPM. “Na questão física, por exemplo, a gente vai correr, eu tenho que, pra eu alcançar eles, eu tenho que correr bem mais que eles, porque minhas pernas são curtas.” Soldada do 9º BPM.

Eu acho assim, ó, que eu fiquei, trabalhei quatro anos no pelotão de choque e lá também não tinha diferenciação, muito pelo contrário, os guris têm um grande respeito por nós, sempre tiveram um grande respeito... Claro, tem algumas coisas que às vezes fogem, né, até pela força física ou enfim... Mas tratamento diferenciado ou atribuições diferenciadas, não. Soldada do BOE.

Assim, elas revelaram a existência de diferenças concretas nas questões de aptidão física, afirmando que os homens têm melhor desempenho neste aspecto. Nesse sentido, Soares e Musumeci (2005, p. 97) explicam que as mulheres vivenciam a contradição de terem que se afirmar em suas capacidades para poderem acessar os mesmos privilégios masculinos e, ao mesmo tempo, precisam negar a condição de iguais para que lhes sejam atribuídas tarefas e condições de trabalho adequadas às suas particularidades no batalhão.

Note-se, sobre isso, que há entre as policiais femininas a necessidade de afirmarem-se profissionalmente equiparando-se aos homens, buscando a “superação de limites” pessoais, demonstrando, de maneira exemplar, estarem aptas ao “rigor da disciplina policial” (SOARES; MUSUMECI, 2005, p. 97). Importa, para o exercício da profissão que exercem, a demonstração de persistência, empenho e obstinação, características de destaque da atividade policial.

Ao serem questionadas sobre as diferenças entre ser subordinada a um oficial homem ou mulher, a maioria das participantes afirmou que nunca esteve sob o comando de uma oficial do gênero feminino. Por outro lado, algumas participantes que já foram comandadas por mulheres, divergiram de opinião, referindo que podem ou não existir diferenças entre ser comandada por um oficial homem ou mulher. De início, algumas policiais disseram não haver distinções, porém, após algumas colocações de colegas com pensamento oposto, criou-se um consenso sobre a existência de condutas discriminatórias perpetradas por alguns oficiais homens, em caráter de “exceção”: “Eu já passei por uma situação porque o oficial era homem, eu era mulher e ele não gostava de trabalhar com mulher, e ele não foi muito com a minha cara.” Soldada do BOE.

O homem eu acho que acaba tendo mais cuidado, por ser oficial, porque a gente tem problemas dentro da Brigada claríssimos quanto a assédio, então a gente tem que ter mais cuidado, conforme, né... E a questão da mulher é ciúme, então, se tendo uma capitã, geralmente, ou sei lá, uma major, uma coronel, a gente geralmente vê que tem um pouco mais de problema... Soldada do 9º BPM.

Nesse contexto, houve relato sobre a existência de casos de assédio, opressão e demais dificuldades enfrentadas por mulheres dentro dos batalhões:

Mas é uma coisa, assim, bastante difícil, né, porque assim como tem igualdade hoje em dia, falta bastante ainda pra alcançar. Agora ela falou de curso... Quando eu tava terminando o curso, a sargento que me... Teve a primeira, né, a primeira turma... Ela chorou, assim, elas falando que era pra gente se cuidar com os assédios sexuais, com... Assédio moral, com vários assédios assim, porque ela já passou, ela e a turma dela tinha passado por muitas coisas na época dela, era separadas as turmas, né. Soldada do BOE.

Note-se que, ao ingressarem na instituição, as policiais são alertadas por suas colegas de farda mais experientes a “cuidar” com casos de assédio. Estas situações de constrangimento e assédios sexual e moral corroboram as encontradas por Ribeiro (2018, p. 9) e, como afirma a autora, operam como mecanismos estratégicos para a manutenção da hierarquia de gênero na instituição. Os assédios praticados no âmbito profissional visam o abalo da autoestima, da personalidade e a desqualificação da competência do trabalho das policiais femininas, podendo causar desestabilidade emocional, danos à integridade física e psicológica, bem como repercussões negativas em termos de ascensão na carreira (CAPELLE; MELO, 2010, p. 80).

Sobre as percepções do trabalho feminino nos batalhões da Brigada Militar, as soldadas participantes de ambos os grupos demonstraram que se sentem tão capazes profissionalmente quanto os homens, referindo que o trabalho policial é a constante superação de limites e, também, uma forma de empoderamento feminino:

Eu acho que um dos maiores... Uma das maiores provas de empoderamento feminino é a questão da gente tá na polícia trabalhando com vários homens, se esforçando pra chegar ao nível de força, de tudo, fazendo a mesma coisa, sendo igual, sendo tratada da mesma maneira e isso, pra mim, assim... É o maior exemplo de feminismo, digamos assim. Soldada do BOE.

Como se percebe dos relatos, as policiais reconhecem a existência de preconceitos e obstáculos e destacam seus esforços na busca por respeito e condições iguais de trabalho e oportunidades. No entanto, o machismo e o sexismo presentes nas estruturas sociais operam e se reproduzem igualmente no espaço profissional das mulheres policiais, no sentido de inferiorizar e desvalorizar o trabalho feminino na corporação.

É que as falas das policiais sobre as questões de assédio e o relato de existirem colegas homens que não gostam de trabalhar com policiais mulheres, alinham-se aos resultados apontados no estudo realizado por Nummer (2005). O ingresso de mulheres na Brigada Militar é considerado como uma forma de desvalorização da corporação, pois a participação feminina na instituição afeta a representação de ideais e valores da corporação que são ligados à performance do masculino, tais como persistência, força física e controle emocional (NUMMER, 2005, p. 65).

É possível vislumbrar outros reflexos do machismo na instituição: “Tanto é que, no CFS, Curso de Formação de Soldado, tava tranquilo o meu pelotão, aí quando o meu professor começou a me destacar como a melhor atiradora da turma, aí começaram a ficar em cima, aí os guris já não gostam muito.” Soldada do BOE.

Cabe observar que o modo de operação das instituições policiais militares revela uma naturalização de hábitos e rotinas de carreira construídas sob a perspectiva masculina e para os homens, tendo em vista que, enquanto categorias historicamente construídas, “mulher” e “policial” representam perfis excludentes entre si (MOREIRA, 2009, p. 1). Assim sendo, as mulheres devem adaptar-se a uma rotina institucional fundamentalmente masculina que expressa e corrobora a divisão de determinados papéis sociais designados de acordo com o sexo biológico e promove a manutenção da reprodução de desigualdade nas relações de gênero (RIBEIRO, 2018, p. 2), de modo que uma policial feminina destacada como melhor atiradora da turma é um ponto fora da curva e, portanto, alvo de reprovação pelos colegas.

Aspectos do trabalho policial e o fardamento militar

Com efeito, do relato das agentes é possível observar que, apesar de perceberem o reconhecimento social e a admiração dos civis em relação às mulheres que desempenham a profissão, há discriminação de gênero no contato direto com a sociedade. Elas afirmaram que durante patrulhamentos e abordagens é indispensável a imposição de uma postura mais firme e autoritária, sobretudo pelo fato de serem policiais femininas: “É que, por exemplo, assim, numa abordagem, tu tá no meio da vila, aí tu vai abordar, tu tem que chegar firme também, né, não pode chegar... Que eles não vão te respeitar. Tu tem que ter, tu tem que te impor.” Soldada do 9º BPM.

Ainda, as questões de assédio pelo público e tentativa de corrupção foram apontadas pelas participantes dos dois grupos: “Uma vez mexeram comigo, falaram ‘que policial mais linda’, começou, aí eu fiquei assim…” Soldada do BOE. “Até em revista assim, comigo aconteceu, só de passar mesmo, chamar assim, mas só, também.” Soldada do BOE. “Foi na Arena até, que o cara me chamou ‘ah, que gostosa’.” Soldada do BOE.

Acontece que nós estávamos em policiamento ostensivo, eu prendi um rapaz lá que era dono de um bar dentro de uma vila, que tava com uma nove milímetros, e aí ele olhou pra nós e disse “ah, vocês tão chegando aqui agora, não sabem como funciona, tem o fulano, o ciclano, que eu acerto com eles, tu me larga em tal lugar e daqui a quinze minutos os nove mil reais vão chegar até ti”. Eu disse pra ele “olha, eu sou novata, mas o senhor está preso, e se eu sou o senhor, eu não falo mais nada” e prendi ele. Acontece, mas é aquilo, né, vai de ti dizer sim ou não, né, mas aqui no batalhão não (sofreu tentativa de corrupção). Soldada do 9º BPM.

“Foi ocorrência de trânsito, barreira, de oferecer dinheiro pra liberar o carro. Daí fizemos todo o trâmite legal, né, foi preso, delegacia, aquela coisa toda, que não deu em nada, mas foi feita.” Soldada do 9º BPM.

Os relatos das policiais revelam que a observância do respeito que geralmente acompanha a figura da autoridade policial não se repete quando se trata da policial feminina, pois os preconceitos e os estereótipos de gênero presentes na sociedade se reproduzem. Assim, a agente feminina, mesmo investida do poder estatal, antes de ser uma autoridade policial militar, é uma mulher, e, por isso, sujeita a ofensas, cantadas ou observações que se referem à sua condição de mulher.

Perguntadas sobre a adequação do fardamento militar ao corpo feminino, as agentes, de forma unânime, afirmaram que a vestimenta comumente é enviada maior que o tamanho usado pelas mulheres, sendo confeccionada de acordo com o porte corporal masculino, e que, por isso, demanda ajustes em costureiras particulares, pagas com seu próprio dinheiro. Relataram, ainda, que, após o insucesso na elaboração de um modelo de colete balístico adequado ao corpo feminino, a proteção voltou a ser moldada a partir do corpo masculino: “Vem gigante… Tem que pegar e reformar toda (a farda).” Soldada do 9º BPM. “A gente não tem essa diferenciação ‘ah, a farda masculina e a feminina’. É masculina pra todo mundo.” Soldada do 9º BPM.

E o engraçado é que quando eles fizeram o colete (feminino) fui eu, a Maria [nome fictício], não me lembro quem era a outra, a Teresa [nome fictício]... Nós fomos lá pra experimentar os modelos pra ver o que a gente achava, a gente tava de pronte no dia... O modelo ficou maravilhoso no dia que a gente experimentou, né. Foi meio constrangedora a cena, né, porque tava cheio de oficiais da Brigada, e eles perguntando “como é que ficou?”, “ficou bom aqui (nos seios)?”. [risos] Ficou ótimo aquele modelo, porque ficava bem certinho, assim, mas quando veio, daí... Não era o mesmo. Soldada do BOE.

Esse é mais um exemplo que demonstra a não adequação da Brigada Militar às mulheres, visto que o fardamento tem como padrão o corpo masculino, remetendo à tradição masculina presente na esfera militar. Mesmo que o ingresso feminino na Polícia Militar já tenha mais de 20 anos, a polícia resiste em criar um fardamento particularizado e representativo para as mulheres (NUMMER, 2005, p. 67). A farda, além de um elemento essencial e indispensável na rotina da profissão, já que é um uniforme de uso diário e prescinde de adequação e conforto, ostenta o simbolismo de identificar e representar a instituição. Observa-se, assim, a permanência da predominância de um padrão policial militar masculino e a resistência à incorporação, de fato, da presença feminina, o que reforça a masculinização e o descaso quanto às necessidades e peculiaridades demandadas pelas mulheres que atuam na Brigada Militar.

Conclusão

A inserção de mulheres na Brigada Militar é recente, acompanhando um movimento tardio de inclusão de agentes femininas nos demais órgãos de polícia do país. Com base em dados estatísticos atuais, observou-se que, apesar da abertura das instituições policiais ao trabalho feminino, a presença de mulheres nos batalhões é muito baixa, contrastando com a expressiva contingência masculina.

A incorporação de policiais femininas na atividade policial ainda não impactou mudanças na instituição que promovam a igualdade de oportunidades entre os gêneros e o respeito pelo espaço pessoal e profissional da mulher policial. Foi possível perceber, a partir das exposições trazidas pelas policiais participantes deste estudo, que as mulheres ainda se defrontam com situações de preconceito, inferiorização e desqualificação profissionais, reproduzidas nas relações de poder do masculino que estão intrinsecamente estabelecidas na instituição. Veja-se que apesar do discurso preponderante no sentido de afirmar a igualdade de gênero e equiparação de condições de trabalho em relação aos seus colegas homens, as soldadas, a partir de provocações apresentadas aos grupos, relataram a existência de casos de assédio, cuidado e regulação de comportamentos femininos entre as próprias agentes, reprovação dos colegas em razão de desempenho profissional superior ao deles, a despreocupação com a adequação do corpo da mulher ao fardamento militar, situações que caracterizam dificuldades em um ambiente profissional tradicionalmente masculino.

O espaço de atuação da policial militar feminina mantém-se imerso em um contexto de desvalorização profissional submetido à reprodução estrutural do machismo verificada na associação entre masculinidade e poder nas relações profissionais estabelecidas na instituição. Ao censurar certas condutas de colegas, as mulheres policiais reproduzem comportamentos machistas como um dado natural e, ao mesmo tempo, são vítimas das construções de gênero desiguais. Os relatos sobre a existência de casos de assédio, opressão, discriminação e invisibilidade na rotina profissional da Brigada Militar revelam que a desigualdade de gênero opera através de seus agentes e consubstancia a predominância do poder masculino em seus batalhões de polícia.

Nesse contexto, foi possível observar que, no caso da Brigada Militar, instituição fortemente tradicional, não há uma preocupação em se discutir e modificar perspectivas de gênero, pois tal movimento implica em alterações estruturais nas relações profissionais estabelecidas entre homens e mulheres. Esta reestruturação equaliza, por sua vez, os liames de poder na instituição – poder que, até então, é de domínio masculino –, o que significa colocar em risco todo o sistema (SCOTT, 1995, p. 92) da Brigada Militar.

Desta forma, conceber uma perspectiva de instituição policial desconstruída dos estereótipos masculinos estruturalmente referenciados na sua concepção não se constitui em tarefa fácil, uma vez que esta desconstrução enfrenta significativo fluxo de embates e tensões que se dão a partir de princípios de ordem patriarcal e tradicional e que pouco se modificou no contexto sociocultural. Cabe, por fim, ressaltar a necessidade e a importância da adoção e desenvolvimento de ações afirmativas que contemplem a temática de gênero no âmbito da Brigada Militar, não apenas para conscientizar seus agentes sobre a existência e a dimensão da discriminação de gênero, mas para modificar a cultura institucional a fim de assegurar o respeito às mulheres que atuam na instituição e conferir maior equidade de gênero entre seus agentes. Essas intervenções, além de reduzir a disparidade existente entre os gêneros, podem repercutir positivamente na esfera social para um melhor desenvolvimento da atividade policial executada pela Polícia Militar no estado do Rio Grande do Sul.

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  1. No Estado do Rio Grande do Sul, a polícia militar é chamada de Brigada em honra a seu passado guerreiro.↩︎

  2. Apesar de as Forças Armadas não utilizarem a flexão do feminino para os postos ou as graduações da hierarquia militar, neste trabalho optou-se pelo seu uso, pois, além de existente na norma culta, busca-se, aqui, enfatizar a perspectiva de gênero.↩︎

  3. No âmbito da BM, significa ser designada por um superior. Assim, antes do início de cada grupo, foram fornecidas informações sobre a atividade e questionado se alguém se sentia desconfortável em participar, ressaltando a possibilidade de dispensa. Todas assinaram o TCLE e não houve nenhuma desistência.↩︎

  4. Levantamento de dados gerais da BM realizado internamente, pela própria instituição, em 2019, e fornecido por um Major da BM, via e-mail, a pedido dos autores.↩︎