EDIÇÃO ESPECIAL - VOLUME 16
Conflitos em formação: A experiência da convivência civil-militar no Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social a distância da Universidade Federal Fluminense1
Roberto Kant de Lima
Professor Titular de Antropologia - UFF/UVA. Coordenador do NEPEAC/INCT-InEAC - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos/PROPPi/UFF.
País: Brasil Estado: Rio de Janeiro Cidade: Niterói
Email: rkantbr@gmail.com Orcid: https://orcid.org/ 0000-0003-1367-9318
Pedro Heitor Barros Geraldo
País: Brasil Estado: Rio de Janeiro Cidade: Rio de Janeiro
Email: pedrogeraldo@id.uff.br Orcid: https://orcid.org/ 0000-0002-5024-0366
Professor Assistente do InEAC-UFF. Vice-diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (InEAC). Programa de Pós-graduação em Justiça e Segurança (PPGJS). Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD).
Contribuições de cada autor: Os autores realizaram o trabalho de campo e a redação do artigo.
Agências de Fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Fundação de Apoio à Pesquisa do estado do Rio de Janeiro (FAPERJ)
Resumo
Este artigo identifica e discute as moralidades e os conflitos decorrentes da formação de profissionais das carreiras de segurança pública no Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social na modalidade de ensino a distância da Universidade Federal Fluminense. O argumento é construído a partir da experiência etnográfica dos autores na criação e coordenação do curso e na administração dos conflitos de ordem acadêmica surgidos no decorrer de seu desenvolvimento entre 2013 a 2018. A análise aponta para diferentes concepções de hierarquia e disciplina envolvidas nos conflitos administrados no curso, uma proveniente da ordem hierárquica e fundada na obediência estrita a comandos; outra, da normalização dos comportamentos e da adesão às regras. A análise contrasta o papel dos processos de socialização em instituições civis e militares e a inadequação da socialização militar para a instituição policial em face dos princípios da democracia republicana contemporânea.
Palavras-chave: Formação universitária em segurança pública. Coexistência de hierarquias cívico-militares na Universidade. Processos de Administração de Conflitos.
Abstract
Conflicts in undergraduate training: The experience of civil-military coexistence in the on line Technologist Course in Public and Social Security at the Fluminense Federal University
This article identifies and discusses the moralities and conflicts arising from the training of professionals in public security careers in the Technologist Course in Public Safety in on line learning modality at the Fluminense Federal University. The argument is built from the ethnographic experience of the authors in the creation and coordination of the course and in the management of conflicts of academic order that arose in the course of its development between 2013 and 2018. The analysis points to different conceptions of hierarchy and discipline involved in the conflicts managed in the course, one stemming from the hierarchical order and founded on strict obedience to commands; another, from the normalization of behaviors and adherence to rules. The analysis contrasts the role of socialization processes in civilian and military institutions and the inadequacy of military socialization for the police institution in view of the principles of contemporary republican democracy.
Key words: University undergraduate training in criminal justice. Civil-military hierarchies coexistence at the University. Conflict Management Processes.
Data de recebimento: 29/04/2021 - Data de aprovação: 06/09/2021
DOI: 10.31060/rbsp.2022.v16.n0.1505
Introdução
Este artigo identifica e discute as moralidades e os conflitos decorrentes da formação de profissionais das carreiras de segurança pública no Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social na modalidade de ensino a distância da Universidade Federal Fluminense. O argumento é construído a partir da experiência etnográfica dos autores na criação e coordenação do curso e na administração dos conflitos de ordem acadêmica surgidos no decorrer de seu desenvolvimento. As observações foram realizadas nos primeiros anos do curso, de 2013 a 2018.
Criado em 2013, o curso surge a partir de uma demanda específica da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, em razão da experiência anterior dos professores e pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) com os cursos de Bacharelado (desde 2012) e de Especialização (desde 2000) na área de segurança pública e justiça criminal. Assim, em 2014, os pesquisadores receberam uma demanda vinda do Comando do Estado Maior da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro para que fosse criado um Curso de Tecnólogo que integrasse a formação unificada dos seus quadros profissionais visando mitigar os efeitos da dupla entrada de Oficiais e Praças nessa instituição.
De acordo com as regras do Ministério da Educação e Cultura (MEC), diferentemente desses cursos da UFF anteriormente mencionados, que ou são abertos ao público em geral (bacharelado) ou comportaram sempre cotas de vagas abertas ao público interessado (especialização), o Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social é exclusivamente oferecido aos “profissionais da carreira de segurança pública”, segundo o Catálogo Nacional de Cursos Superiores de Tecnologia do Ministério da Educação2. Além disso, a demanda definida pela Secretaria de Segurança/RJ determinou que 80% das vagas fossem destinadas para a Polícia Militar.
Em 2015, o curso contava com 2.394 alunos matriculados cursando disciplinas, além de um quadro de professores doutores coordenadores de disciplinas, tutores presenciais e tutores a distância3 que atuavam nas salas virtuais e presenciais em 12 polos no Estado. Para cada uma das 31 disciplinas do curso, havia um professor coordenador ao qual estavam vinculados tutores presenciais — numa escala de 1 tutor para 50 alunos por disciplina — e tutores a distância — numa proporção de 1 para 100 alunos. Isso perfazia um total de 34 professores e 117 tutores presenciais e a distância, já que muitos atuavam com carga horária dobrada ou em mais de uma disciplina. O fato de a maioria dos alunos ser militar e todos os tutores e professores serem civis faz com que este curso a distância apresente questões próprias dessa tecnologia de transferência do conhecimento para esse público específico. Especialmente, a observação dos conflitos ocorridos no decurso dessa experiência, e a forma de administrá-los, demonstrou que diferentes moralidades informavam as representações civis e militares sobre o significado da formação universitária e das concepções de disciplina e hierarquia.
Os conflitos observados, decorrentes da convivência civil-militar no âmbito do curso, são de naturezas distintas, como o descrédito dos alunos sobre o status do resultado de pesquisas, o uso diferenciado da linguagem por alunos e professores-tutores, o desrespeito dos alunos à autoridade acadêmica, a dificuldade dos alunos no processo de socialização com as regras meritocráticas da universidade e o uso que fazem dos instrumentos de reivindicação de direitos.
O objetivo aqui é descrever e analisar essas diferentes concepções de hierarquia e disciplina envolvidas nessas situações, uma proveniente da ordem hierárquica e fundada na obediência estrita a comandos; outra, da normalização dos comportamentos e da adesão às regras. A análise contrasta o papel dos processos de socialização em instituições civis e militares e a inadequação da socialização militar para a instituição policial e muito menos para as instituições escolares de ensino público, em face dos princípios da democracia republicana contemporânea.
No decorrer do curso foi possível observar como as instituições de segurança pública inculcam uma maneira própria de hierarquizar as relações entre seus membros. Esta reflexão nos permitiu compreender a ética policial-militar e suas expectativas em relação às instituições, a partir do estranhamento dos alunos com as formas civis de organização e administração de conflitos.
O Curso de Tecnólogo no campo da Segurança Pública
Como já mencionado, o Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social foi criado, inicialmente, a partir de uma demanda da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro em 2012, para ser ministrado pela UFF através do Centro de Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (Consórcio CEDERJ), financiado pela Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia e constituído por instituições universitárias públicas do Rio de Janeiro para o ensino a distância. Foram disponibilizadas inicialmente 500 vagas por semestre para os candidatos interessados que fossem admitidos no vestibular CEDERJ. Entretanto, no início de 2015, a Coordenação foi procurada pelo Estado Maior da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro para que o curso integrasse o projeto de reforma da carreira da Polícia Militar, que visava propiciar uma formação comum para Oficiais e Praças. Assim, foi solicitado um aumento na oferta do número de vagas de 500 para 950, ainda em 2015. Nos anos seguintes, a oferta de vagas baixou para 360 em razão da crise financeira do estado, e aumentou em 2018 para 450 vagas.
Diferentemente de estados como Minas Gerais e São Paulo, que passaram a exigir recentemente o Bacharelado em Direito dos novos ingressantes nas suas respectivas Polícias Militares, o Estado do Rio de Janeiro buscava inovar ao exigir uma formação de cunho reflexivo, calcado nas ciências sociais e enfocando conteúdos de pesquisa acerca da administração institucional de conflitos. Esse processo é identificado como uma forma de “militarismo mitigado” (RODRIGUES, 2014), uma vez que busca atenuar uma característica marcante do militarismo brasileiro: a separação inicial, hierárquica e excludente, desde a entrada na corporação, entre Oficiais e Praças. A reforma propunha uma formação unificada entre Oficiais e Praças oferecendo, de um lado, um curso técnico-profissional (ministrado pela Polícia Militar) que abrangeria todos os ingressantes na instituição, sejam os ingressantes através do concurso para praças, seja através do concurso para oficiais; e, de outro: a) um curso superior a distância voltado para a administração institucional de conflitos, o já mencionado Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social da UFF, que habilitaria os Praças que o concluíssem a candidatarem-se ao oficialato; e b) um curso de especialização para os aprovados no concurso para Oficiais. Aqueles que, já tendo qualquer formação superior, ingressassem diretamente para a carreira do oficialato fariam o curso técnico-profissional ministrado pela PMERJ. A referida proposta foi interrompida em janeiro de 2018, quando o então governador Pezão sancionou a Lei Estadual Nº 7.858, tornando exclusivo para os bacharéis em Direito o acesso ao concurso para oficiais da PMERJ.
Esta súbita mudança de orientação ocorreu, como é de hábito na Polícia Militar, pela troca de seu Comandante e, portanto, de sua assessoria. Deveu-se especialmente ao espírito corporativo e particularista que move nossas corporações judiciárias e policiais, pois os oficiais da Polícia Militar pleiteiam transformar suas carreiras policiais-militares em carreiras jurídicas, como são aquelas dos Delegados da Polícia Civil, em função dos privilégios, especialmente financeiros, que elas proporcionam. Chama a atenção o fato que, mesmo depois dessa lei que frustrou os policiais militares que tinham aderido ao curso visando sua mudança de status profissional, as vagas do curso continuaram a ser preenchidas em sua totalidade, revelando que o curso atendia a interesses mais amplos que os de servir de degrau para a ascensão profissional. Atualmente, não há nenhum incentivo profissional na PMERJ para os policiais militares que se formam.
A construção do Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de Tecnólogo em Segurança Pública e Social foi uma versão sintética desenvolvida após e a partir da elaboração do PPC de Bacharelado em Segurança Pública e Social, curso presencial pioneiro em Institutos Federais de Ensino Superior (IFES) no Brasil, oferecido à sociedade civil desde março de 2012 pela UFF. Esses projetos foram criados após anos de experiências em projetos de pesquisa, cursos de extensão e de pós-graduação lato e stricto sensu desde 1997 desenvolvidos pela UFF em parceria com diferentes instituições municipais, estaduais e federais das áreas de Justiça Criminal, Segurança Pública e Direitos Humanos (Escola Superior de Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro – ESPMERJ, Prefeituras Municipais do Estado do Rio de Janeiro – para Guardas Municipais –, Instituto de Segurança Pública da Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Reforma do Judiciário e Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, União Europeia etc.), e oferecidos para os diferentes agentes do sistema de justiça criminal e segurança pública no país.
Essas experiências, juntamente com outras na área do ensino pós-graduado stricto sensu em Direito, Antropologia, Sociologia e Direito, Ciências Criminais etc., propiciaram qualificação internacional para uma rede de pesquisa na área de administração de conflitos no período de 2000 a 2009. Em 2009, através de projeto apresentado por essa rede e aprovado na Chamada MCT 15/2008 – quando foi um dos 11 na área de ciências humanas e sociais dentre 126 aprovados – esta experiência acadêmica culminou na criação em 2009 do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC). O projeto foi novamente aprovado na Chamada MCT 16/2014, quando se classificou dentre os 8 da área de Humanas entre os 104 financiados. Os INCTs têm por finalidade realizar e internacionalizar pesquisas, formar quadros qualificados e, principalmente, transferir os resultados de seu trabalho para a sociedade. O InEAC tem sua sede administrativo-acadêmica no Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Administração Institucional de Conflitos (NEPEAC), vinculado à Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação da UFF. O INCT-InEAC tem como objetivo colaborar com a inovação das tecnologias sociais voltadas para a administração institucional e não institucional dos conflitos na sociedade brasileira, a partir da produção de pesquisas empíricas de natureza etnográfica que permitam subsidiar a formulação, o acompanhamento e a avaliação de políticas públicas na área da Segurança Pública e do Acesso à Justiça.
Em sucessivas avaliações por que passou o InEAC, o referido Curso de Bacharelado da UFF foi considerado pelos avaliadores internacionais dessas agências de fomento à pesquisa e inovação como um produto inovador e eficiente de transferência de conhecimento científico de ponta para a sociedade, ao reproduzir e difundir institucionalmente uma tecnologia social inovadora. Esse curso foi também reconhecido pelo MEC através da avaliação de cursos realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) com a nota 5 (muito bom). Já o Curso de Tecnólogo a distância recebeu em sua primeira avaliação a nota 4, também muito boa, num total de 0 a 5. Em 2016, o Curso de Tecnólogo também recebeu o Prêmio de Excelência em Inovação em Desenvolvimento Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Esses cursos concebem em seu PPC a segurança pública como uma área de atuação multidisciplinar, onde os estudos e as pesquisas em ciências sociais, do ponto de vista da sociedade, são aplicados ao campo da Segurança Pública e Social; e não como um campo disciplinar específico vinculado aos saberes jurídico repressivo e militar.
Essas experiências demonstraram que o campo da segurança pública, no Brasil, carece de uma formação universitária institucional prolongada que, a partir do enfoque das Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, desconstrua valores historicamente correntes nessa área e reproduza em seu lugar valores e experiências introduzidas nas sociedades ocidentais a partir dos movimentos de instauração dos Estados Democráticos de Direito e de seus principais efeitos no campo das relações entre o Estado e os cidadãos. Por uma série de circunstâncias históricas, jurídicas e políticas, como a ordem imperial que preside a instalação do Estado-Nação brasileiro, a intensidade, o volume e a permanência da escravidão e o próprio caráter oligárquico do movimento que instaurou a República, criaram-se obstáculos para a introdução plena, em nosso país, da representação contemporânea da igualdade jurídica, em que os diferentes cidadãos e segmentos da sociedade têm um mínimo de diretos iguais para todos4. Nesse contexto, em função dessa igualdade de direitos, quando divergem em seus interesses surgem inevitavelmente conflitos que precisam ser administrados pelas instituições especializadas nessa área.
Decorre daí a necessidade de conceber a segurança pública como uma construção da cidadania e não como uma imposição da ordem jurídica estatal instituída, a qual, no Brasil, com frequência reafirma a desigualdade dos cidadãos e o tratamento desigual que é dado a seus conflitos pelas instituições encarregadas de administrá-los perante a lei5. Assim, a ideia de igualdade universal de direitos mínimos de todos os cidadãos não cria raízes e impede que a sociedade se nutra dos saberes normalizadores da vida social, repousando, quase que exclusivamente, nas formas repressivas de controle social, próprias dos processos institucionais de administração de conflitos entre desiguais (AMORIM; KANT DE LIMA; BURGOS, 2003; KANT DE LIMA, 2009). A consequência disto é que as instituições encarregadas da segurança pública e seus funcionários não se veem como encarregados da prestação dos serviços e do exercício das funções propriamente policiais e judiciais da ordem jurídica contemporânea, como administradores institucionais de conflitos, mas como encarregados de sua repressão e supressão.
O PPC de Tecnólogo, portanto, enfatiza o aspecto “Social” em seu título, uma vez que o campo da segurança pública no Brasil se confunde com a segurança do ponto de vista do Estado (em português, diferentemente do inglês (public) ou do francês (publique), a categoria público na maioria das vezes é sinônimo de estatal). Talvez por isso os saberes da segurança pública se constituem sobre duas matrizes ideológicas próprias da preponderância do Estado sobre a sociedade, a da cultura repressivo-punitiva tradicional do campo jurídico – que se encarrega de punir a posteriori conflitos criminalizados a priori – e a do campo militar, este incumbido de exterminar os conflitos e os sujeitos que nele estão envolvidos – seus inimigos.
Contrariamente a essas perspectivas tradicionais, o curso busca compreender a Segurança Pública e Social a partir do ponto de vista da sociedade, incorporando conhecimentos contemporâneos das áreas de Sociologia, Direito, História, Antropologia, Ciência Política, entre outras disciplinas das Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, que analisam criticamente as matrizes ideológicas do Estado brasileiro ao lidar com os conflitos cuja explicitação e administração adequadas são inevitáveis serviços prestados pelo Estado em sociedades democráticas e republicanas.
Os conflitos em formação
Os conflitos presentes no curso demonstram como a convivência civil-militar é cercada por rupturas e obstáculos epistemológicos na maneira de compreender a organização da sociedade e o lugar do conflito nessa sociedade. A seguir vamos enumerar alguns deles:
a) Armas e fardas
Antes mesmo da instituição do curso, o primeiro conflito que surgiu foi relativo ao uso da farda e do porte da arma dentro dos polos. Logo no primeiro vestibular criou-se um ambiente de insegurança entre as Diretoras de Polo, uma atividade exercida majoritariamente por mulheres, nomeadas pelos Prefeitos no âmbito dos municípios em que se localizam os polos do Consórcio CEDERJ, que pretendiam acautelar as armas dos policiais para que os mesmos pudessem realizar as provas do vestibular. Cogitaram até mesmo chamar reforço policial para tanto. O acautelamento foi realizado de forma incipiente em alguns polos, porém os próprios Diretores notaram que não dariam conta de fazê-lo e as armas foram devolvidas onde isso ocorreu antes mesmo da prova começar.
Tal fato nos foi comunicado tardiamente. Posteriormente, explicamos nas reuniões com os Diretores de Polo que existe um procedimento específico para acautelar a arma. Seria preciso que cada polo tivesse condições de realizá-lo – sendo necessário um cofre – porque os policiais são responsáveis pelas armas e têm o direito de portá-las. Felizmente, não houve maiores conflitos durante o vestibular.
Entretanto, a desconfiança em relação ao possível comportamento agressivo – e armado – dos policiais persistiu, uma vez que as Diretoras ainda tinham o receio de receber tantos alunos fardados para participarem dos encontros presenciais da tutoria. A Coordenação do curso solicitou à Secretaria de Segurança Pública providências para que o Comando da Polícia Militar publicasse no Boletim Interno da PMERJ recomendação para que os alunos não fossem fardados para as atividades nos polos. Desse modo, os policiais não precisariam portar ostensivamente suas armas. Ainda que a recomendação não tivesse sido publicada até aquele momento, nas Aulas Inaugurais que foram ministradas nos diferentes polos no início do curso, a grande maioria dos alunos não foi fardada, mas isso não significava que eles não estivessem armados. Nessas aulas inaugurais, que ocorreram simultânea e semestralmente em todos os polos do Estado, explicamos aos alunos que eles teriam direito de permanecer com a arma. Nós compreendíamos que isso faz parte da identidade profissional. Porém, solicitamos que eles não viessem fardados nem com a arma aparente, pois a farda e a arma dificultam o processo de socialização universitária de caráter essencialmente civil.
Este episódio, aliás, reproduziu o conflito que foi administrado no decorrer das várias versões do Curso de Especialização em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública, ministrado na UFF desde 2000 e que, durante seis anos, foi obrigatório para a promoção de Oficiais superiores da PMERJ e Delegados de Polícia. Ali também tivemos que instituir a frequência às aulas dos oficiais sem farda, pois ela, além de não se mostrar adequada para que eles assumissem sua identidade e condição de alunos da UFF, quando na Universidade, servia para reproduzir explicitamente a hierarquia entre eles, fonte de intermináveis conflitos em uma instituição que se caracteriza pela igualdade e uniformidade de tratamento entre alunos, entre professores e entre alunos e professores, admitindo apenas distinções entre eles decorrentes do mérito acadêmico individual.
No caso do Curso de Tecnólogo EaD isso é mais relevante ainda porque no modelo de ensino a distância do CEDERJ, o polo não reproduz a ambiance da Universidade, sendo que muitos polos estão sediados em Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), onde ainda funcionam escolas estaduais nos respectivos municípios. Assim, a mudança para um outro ambiente de socialização, propriamente universitária, não ocorre, pois o contexto institucional permanece colegial, sendo apenas o clima de escola atenuado pela presença dos tutores.
b) A versão policial da lógica do contraditório
Outro conflito explícito em relação ao desenvolvimento das atividades do curso foi o descrédito dos alunos em relação aos resultados das pesquisas. Todo o conteúdo das aulas foi escrito por professores conteudistas, todos pesquisadores e pós-graduados, a partir de pesquisas suas ou de outrem, de caráter empírico, sobre o sistema de segurança pública e justiça criminal. O contato com estes conteúdos e as discussões com os tutores a distância nos fóruns apresentaram logo as formas de desqualificação pelos alunos de uma suposta “opinião” dos pesquisadores a respeito da segurança pública, inscrita nos textos do curso. Assim, para além de desconstruir a visão militarista e dogmática desses profissionais, os professores responsáveis pelas disciplinas e, principalmente, os tutores experimentaram a versão policial do contraditório.
A lógica do contraditório, que se distingue do princípio constitucional do contraditório, se caracteriza pelo dissenso infinito entre as partes em litígio, que apenas é interrompido pela intervenção de uma terceira parte dotada de autoridade. Assim, a disputa é resolvida não pela argumentação entre as partes, como ocorre em sistemas adversários contemporâneos de administração judicial e extrajudicial de conflitos, mas pela decisão, sempre arbitrária, de uma terceira parte dotada de autoridade. Essa lógica é uma derivação da escolástica medieval (disputatio), que tem no argumento de autoridade, e não na autoridade do argumento, o cerne do seu processo de decisão. Essa lógica é também utilizada para construir o saber doutrinário brasileiro, reproduzindo as fórmulas medievais de ensino descritas por Berman relativas à Universidade de Bolonha, no século XI (BERMAN, 1983; KANT DE LIMA, 2010; FIGUEIRA, 2021). Assim, é ela que preside o ensino do Direito nas Faculdades de Direito do Brasil e se reproduz tanto nas condutas profissionais no judiciário, onde prevalece a hierarquia dos tribunais, mas também na construção do conhecimento jurídico através do mecanismo de oposição sistemática de doutrinas da dogmática jurídica. Quer dizer, quem define o que é verdadeiro naquele momento não é o método científico de criação entre pares de um consenso provisório sobre os fatos, mas a afirmação de uma autoridade dotada de poder decisório. Em suma, à autoridade do argumento opõe-se o argumento de autoridade: quanto mais poder, mais saber (KANT DE LIMA, 2010).
Seguindo essa lógica, da parte dos alunos há uma expectativa de que seu ponto de vista sobre segurança pública, forjado em sua prática profissional (SILVA, 2011), esteja correto e seja reproduzido pelo curso. O curso se destinaria, desta forma, a carimbar universitariamente seu conhecimento profissional prático. Assim, os alunos qualificam as pesquisas enquanto “opiniões”, que se opõem às suas, sendo que as deles seriam mais abalizadas em virtude de seu saber prático, que os pesquisadores, em princípio, não deveriam possuir.
Por outro lado, o ensino das Academias das Polícias Militares ou Civis foi objeto de pesquisas durante o projeto de criação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), posteriormente aprovado no governo Temer. Na ocasião da pesquisa, da qual um dos autores participou, foram visitadas a maior parte das Academias de Polícia Militar e Civil dos estados brasileiros e constatou-se que seus currículos não abrangiam ensinamentos de ordem sociológica sobre a segurança pública. Quanto às Academias militares, a principal atividade era a Ordem Unida, e nas Academias de polícias civis, o direito penal e processual penal (SILVA, 2011; SANTOS, 2014, p. 11-30). Ou seja, nas Academias de polícia os alunos também não tinham contato nem eram socializados no conhecimento acadêmico produzido através do método científico.
Em visita aos polos, um aluno certa vez perguntou: “Sociólogo pode conversar com a polícia?”. Os alunos tomam as pesquisas por uma desqualificação ao seu trabalho. As discussões que versam sobre “opiniões” contrárias aparecem como forma “democrática” de argumentar, que se oporia àquela da hierarquia militar, na qual não é possível discordar. Assim, qualquer contenção dessa oposição infinita de opiniões, pautada pela discussão de resultados de pesquisas empíricas, é classificada como “abuso de autoridade do professor” e forma antidemocrática e idêntica em repressão àquela da estrutura militar de decisões e comandos na caserna. Isso apareceu nos fóruns a distância do curso, como numa interação em que uma tutora discutiu a postagem de vídeos pelos alunos. Um deles inseriu um vídeo da Raquel Sherazade, uma jornalista do SBT, fazendo comentários para “aumentar a repressão”, e depois um outro estudante retrucou apresentando um vídeo do Jair Bolsonaro, então deputado federal, com a intenção de contrapor-se ao colega. As discussões sobre o conteúdo dos textos da aula ficaram à margem, como se fossem válidas apenas as “opiniões” apresentadas nos fóruns. Os tutores fizeram um grande esforço para trazer o conteúdo dos textos para as discussões, uma vez que o dissenso não se produzia sobre os mesmos fundamentos argumentativos: a autoridade do argumento era submetida ao argumento de autoridade.
Um exemplo dessa versão policial da lógica do contraditório pode ser observado durante a chamada visita acadêmica, cujo objetivo é socializar os professores com as demandas dos alunos em encontros semestrais presenciais nos polos. Numa dessas visitas, um aluno agente penitenciário uniformizado e portando sua arma perguntou ao professor no início da apresentação: “Quem é você? Qual é a sua experiência prática com segurança pública?”. Como mencionado acima, os diferentes saberes do campo da segurança pública se apresentaram vividamente nas discussões com os alunos sob os argumentos de autoridade avalizados pela “experiência prática” dos alunos. Estas opiniões trazem consigo esse conhecimento. Assim, eles assumem que os argumentos das pesquisas empíricas, multidisciplinares e comparativas que compõem os conteúdos das disciplinas são apenas “opiniões” dos tais “experts” em segurança pública (ou “policiólogos”, como foram pejorativamente rotulados por um ex-secretário de segurança do RJ), que não têm a vivência de suas práticas. Os alunos não opõem essas opiniões entre eles, mas contra os tutores e professores que atuam no curso.
A articulação da lógica do contraditório com o recurso à experiência serve para desqualificar os conteúdos das disciplinas, impedindo-os de incorporar as formas acadêmicas de construção de consensos. O efeito sobre os alunos se refletiu no fato de que eles não conseguiam aprender com aquilo que não concordavam previamente. Além disso, os alunos redarguiam que não eram acolhidos pelo Curso. Um deles perguntou numa visita acadêmica: “Por que a universidade não aceita a minha opinião? A universidade quer me catequizar?”.
Através de um seminário semestral de formação dos tutores, a coordenação orientou os tutores a não discutir “opiniões” com os alunos, mas ater-se em discutir os textos das aulas. Essa orientação revelou-se efetiva para normalizar pedagogicamente a relação entre alunos e tutores, na medida em que ambos se viram ao mesmo tempo livres e impedidos de discutir suas posições políticas sobre os temas tratados nas aulas. Isso permitiu um reforço da importância do material escrito que compõe as aulas. A orientação tornou-se mais enfática ao longo dos períodos para que os tutores evitassem a categoria “opinião” com os alunos. O objetivo da discussão não é opor “opiniões”, mas criar um consenso sobre o que e como se pretende tratar os assuntos constantes nos textos.
Observe-se que, tanto na Polícia Civil, como na Militar, o Direito é a sua referência intelectual, em função da autoridade exercida por essa área sobre as polícias brasileiras. E o Direito, no Brasil, constrói seu saber sem a utilização de métodos científicos, mas com opiniões doutrinárias. E as doutrinas, como se sabe, são expressões de um “vir a ser” jurídico que não se fundamenta na observação das práticas judiciais/policiais, mas no argumento de autoridade dos seus intérpretes autorizados. Assim, esse mundo é um mundo das opiniões, não da ciência. Quando confrontados com o saber científico os alunos só conseguem perceber nele uma opinião “teórica”, da mesma forma que rotulam a doutrina jurídica de “teórica”, por estar distante da prática. Mas diferentemente, no caso das teorias das ciências sociais, elas se fundamentam na pesquisa empírica, enquanto que a doutrina não pretende ser construída a partir da prática, mas constitui-se em mera especulação normativa ao sabor dos contextos e das autoridades do momento. Este é um dos obstáculos mais difíceis de serem superados para estabelecer um diálogo profícuo (FIGUEIRA, 2021).
c) As avaliações
Os profissionais da área de segurança pública não têm uma prática de tratamento igualitário, uniforme e republicano dentro das suas corporações. O exercício de direitos é, na realidade, o acesso a privilégios (SILVA, 2011). O tratamento especial aparece nas solicitações insistentes de explicações particulares, evitando o tratamento público e indiscriminado. Várias reclamações sobre as avaliações aconteceram porque as notas eram iguais: os estudantes não entendiam como era possível vários alunos obterem a mesma nota; afinal, eles são diferentes. Assim, eles se valem da seguinte lógica: “Se eu sou diferente, minha nota necessariamente deve ser diferente da nota do outro”. Eles não compreendem que as notas semelhantes são o resultado de uma metodologia explícita de correção por comparação. Para enfrentar esse conflito que se repetia, porque não havia um gabarito prévio para a correção de trabalhos discursivos, a nota máxima era atribuída à melhor prova no universo de provas a serem corrigidas, isto é, àquelas de uma disciplina no mesmo polo. As demais notas eram atribuídas em relação a essa. Isso se tornou uma orientação explícita aos professores e tutores do curso para contornar os conflitos decorrentes dos pedidos de revisão.
Além disso, houve grande resistência ao fato de serem avaliados. Muitas reclamações decorriam do fato de que os alunos não deveriam ser reprovados, como se o curso, sendo dado para profissionais, fosse de aprovação automática: de novo, um direito transformado em privilégio. Nesse pedido de revisão de nota, o aluno fez referência a uma desqualificação em razão da sua qualidade de policial, sugerindo uma simpatia da universidade pelos transgressores: “Gostaria de pedir a revisão da minha ap3 [terceira avaliação presencial], não concordo com essa nota que me foi atribuída, qual foi o intuito dessa faculdade prejudicar policiais por conta do mal estar que causamos aos viciados?”.
Por outro lado, os alunos interpretam frequentemente a regra de revisão de nota dentro da Universidade de maneira negativa, pois a nota pode ser mantida, aumentada ou diminuída quando há revisão. Quando os tutores explicavam essa regra, os alunos a interpretavam como uma ameaça. Isso se tornou explícito não só em vários e-mails, mas também em abaixo-assinados formulados pelos alunos reclamando desse “tom ameaçador”. Eles compreenderam a regra como se a diminuição das notas pelo pedido de revisão fosse uma punição. Os alunos não compreenderam o conhecimento da regra como uma estratégia para se avaliar a pertinência da realização do pedido. Aliás, os pedidos de revisão não vêm fundamentados. Muitos alunos assumem que a correção é uma forma de perseguição pessoal daqueles que corrigem. Assim, eles consideram que o poder daquele que revisa é superior ao daquele que corrigiu a prova. A errônea representação da existência de uma hierarquia de comando na Universidade análoga à do quartel permitiria que o pedido fosse atendido e o trabalho da primeira correção fosse anulado pelo superior hierárquico do professor.
Nessa mensagem, o aluno se referiu com ironia aos coordenadores de disciplina do curso:
Boa noite, recebi o email e mais uma vez a resposta prova a total falta de lisura deste curso, principalmente nesta referida matéria. Discordo totalmente da nota atribuída e das observações feitas pelos tais expert em antropologia do curso. Ainda assim, este aluno gostaria de ter vistas a sua prova corrigida. Aguardo alguma resposta [Sic]. (ALUNO, grifo nosso).
Assim também ocorreu com um aluno que enviou uma reclamação dizendo que o tutor tinha avisado a ele que a revisão da prova poderia implicar tanto aumento quanto diminuição da nota e, segundo estava escrito nesse e-mail, em “tom ameaçador”. O coordenador explicou ao aluno que a informação dada visava informá-lo sobre quais as melhores decisões que ele poderia tomar, porque é uma informação de como ele vai se comportar sabendo que a nota dele pode aumentar ou diminuir. Então, isso seria uma informação e não uma ameaça, mas os estudantes percebiam isso como ameaça, exatamente porque tinham uma dificuldade muito grande de sustentar argumentativamente a formulação dessas insatisfações baseados na certeza da correção de suas respostas em relação às questões da prova, apresentando apenas reclamações contra a correção do professor por não terem obtido a nota que achavam merecida.
Essas reclamações vieram de forma esparsa e muitos pediam para não serem identificados. Assim, as diretoras de polo encaminhavam várias reclamações à coordenação, porque os alunos tinham medo de serem retalhados, o que é uma suposição sem sustentação fática: primeiro, porque a coordenação não corrige prova de ninguém; segundo, porque nós apoiamos e acompanhamos o trabalho dos professores e dos tutores e nunca houve nenhum fundamento que indicasse algum tipo de perseguição a aluno nenhum, fora desse contexto de queixas em relação às notas. Mas os estudantes insistiam nessa versão persecutória que, certamente, como muitos deles nos disseram, estava vinculada à sua experiência com o destino das reclamações na corporação deles e não na universidade. Este é um exemplo explícito da confusão que fazem entre a disciplina e a hierarquia fundamentadas na atribuição de notas de acordo com o mérito dos alunos e a disciplina e hierarquia que implica subordinação ao arbítrio da autoridade sobre o “merecimento” de cada um e não às regras de aferição de desempenho.
Esse desconforto em relação ao tratamento igualitário e uniforme se apresentava todo o tempo. Uma das reclamações que a coordenação recebeu é a de que os alunos achavam que a universidade era outro lugar, que aqui não haveria o “autoritarismo” com o qual eles estão acostumados a serem tratados na instituição militar. Então, na aula inaugural de Resende, o coordenador do curso perguntou para eles quantos deles já tinham feito uma reclamação nas suas corporações; na turma de cem alunos, ninguém fez reclamação nenhuma e, além disso, eles começaram a rir, dizendo que não adianta e que isso ainda causaria perseguição dentro da corporação. Então, todos eles ironizaram esse tipo de pergunta na qual aparentemente se ignora que a corporação militar é hierárquica e autoritária. Há aqui, nitidamente, uma confusão entre o exercício da autoridade e a prática do autoritarismo, que são coisas muito diferentes; o exercício da autoridade nesse curso é fundado na experiência acadêmica de pesquisa, que empresta ao conhecimento veiculado autoridade pedagógica. Esta pode ser discutida em termos de erros ou omissões de caráter metodológico, mas nunca descartada como mera opinião do professor ou do autor: são todos textos que se fundamentam em trabalho de pesquisas empíricas e comparativas, cujos resultados foram julgados pelos pares e publicados, o que lhes empresta autoridade para discorrer sobre seus temas. Por outro lado, o exercício da autoridade está vinculado à obediência de regras, às quais todos devem obedecer. Então a autoridade é legítima quando se exerce para fazer cumprir regras que foram criadas coletivamente nos órgãos universitários colegiados que possuem representantes dos três segmentos da universidade, enquanto que o chamado autoritarismo é exatamente a exigência da obediência ao comando, à ordem específica do superior hierárquico, certamente parte essencial de uma instituição militar que se baseia na obediência estrita e automática ao pronto comando, como em uma Ordem Unida, mas não em uma instituição de ensino civil.
O aprendizado da linguagem da universidade
A universidade, portanto, tem autoridade, mas isso não implica necessariamente em autoritarismo. Estamos acostumados a receber reclamações dos alunos ou de quem quer que seja e a lidar com elas. Então, isso tem que ficar explícito para os alunos, que eles não devem ter problemas em formular e encaminhar essas reclamações, mas que elas devem ser refletidas e justificadas, o que muitas vezes não ocorre; elas têm mais a ver com expectativas que eles tinham do curso e que não se realizaram. Os que reclamam, no mais das vezes, são os que não conseguem aceitar o que o curso está oferecendo, pois não legitima seu conhecimento e suas práticas cotidianas, absolutamente naturalizadas como certas e verdadeiras. Eles não querem conhecer, eles querem re-conhecer e legitimar o que já sabem; certamente queriam outra coisa. Então, eles percebem esse descompasso de expectativas como a prática de autoritarismo.
Uma outra questão está diretamente associada com a socialização dos alunos com a universidade. Para a maioria deles, essa é a primeira experiência com a universidade pública ou particular. Os alunos não percebem na organização civil da universidade uma autoridade que os constranja a se esmerar na comunicação escrita, como é comum nos procedimentos formais de comunicação nas polícias, em que a linguagem é orientada pelos jargões e expressões policiais e jurídicas. Além disso, as interações escritas via internet favorecem o descompromisso com as consequências da forma e com o uso de formalidades em relação àqueles a quem o aluno se dirige. Assim, as expressões coloquiais e o tratamento informal são frequentes no âmbito dessas interações. Associado a isso há um desrespeito sistemático ao tutor e aos professores.
Muitas reclamações debocham dos conteúdos, da organização das disciplinas e até mesmo das formas de correção. Como as sanções acadêmicas não atingem o corpo dos alunos, como é o caso das sanções militares, eles se valem de um tom irônico, como numa reclamação em que o aluno se pergunta “Deus no céu e professor na terra?”. A reclamação abaixo foi encaminhada até a Ouvidoria da Universidade:
Bom dia!
Sou aluno do curso SPU, e desde o 1º semestre de 2014 enfrento problemas em relação a correção ou revisão de provas. No 1º semestre fiquei reprovado na disciplina de introdução aos estudos de segurança pública, e até hoje não obtive resposta, ou seja, já expirou todos os prazos, e agora no 2º semestre pedi a revisão da AP3 em Antropologia do Direito, e até agora nada, acho estranho também uma grande quantidade de alunos tirar nota zero na prova.
Estou desesperado, pois vejo que ninguém soluciona nada, já liguei para o pólo diversas vezes, já mandei diversos email e ninguém sequer responde “olha recebi seu email cachorro”, já fui até o pólo, e o que me passaram é que o responsável por essas respostas é o SR. PEDRO HEITOR, que eu não sei quem é, e quando questionei como encontrá-lo responderam-me que é no campus da UFF, mas que é raríssimo encontrá-lo.
Não sei se já assistiram o desenho Caverna do Dragão, é um desenho onde os personagens não conseguem encontrar a saída, pois é como eu me sinto, na caverna do dragão!
Estou muito decepcionado, sinceramente quando ingressei no curso tive uma boa impressão, que passou a ser uma falsa impressão, quero aqui pedir encarecidamente PELO AMOR DE DEUS, liberem pelo menos para eu fazer a inscrição nas disciplinas que são travadas por essas que estou pendente ainda!
Cabe ainda ressaltar que essa insatisfação não é só minha, mas de um número considerável de alunos. (ALUNO, grifo nosso).
Os alunos desqualificam e mesmo procuram denunciar o comportamento irregular das pessoas que podem ajudá-los, com o objetivo de encontrar uma acolhida nos “superiores” que confirmem suas desconfianças quanto à competência dos tutores ou dos coordenadores de disciplina. Em razão de uma falta de aceitação de sua demanda, os alunos debocham explicitamente do curso e dos professores, ao contrário da experiência nos cursos presenciais, onde os alunos procuram se esmerar para encaminhar e solicitar providências aos professores.
Assim, os pedidos de revisão de nota demonstraram uma desconfiança na atuação dos professores e tutores. O direito de pedir a revisão da nota se tornou, nesse contexto, uma forma de pedir atenções privilegiadas. Os alunos se justificavam com pedidos afirmando que “O professor não entendeu a minha resposta”, ou “Estudei muito e não merecia a nota”. Não houve qualquer forma de reflexão a respeito das justificativas que ensejavam a revisão. Nenhum pedido comparou a resposta do aluno com o material didático pertinente, havendo apenas um caso de comparação com o trabalho de outro aluno para legitimar as “opiniões” compartilhadas sobre o assunto. Houve uma desconfiança de que os tutores – que são todos mestres ou doutores – não fossem capazes de corrigir as provas, e que os professores também não. Numa outra vez, um aluno solicitou que a mensagem fosse encaminhada ao Reitor para que o mesmo tomasse providências em relação ao professor. Debochar destas autoridades universitárias é um meio de deslegitimar a autoridade e, ao mesmo tempo, despertar simpatia para uma reação favorável ao se colocar na condição de vítima da circunstância. Esse desrespeito está associado à dificuldade de socialização com as regras meritocráticas da universidade, por oposição às regras da caserna (SILVA, 2011).
A mensagem abaixo demonstra como estas demandas trazem consigo como os alunos compreendem as práticas acadêmicas em relação à “nota baixa” que seria uma “represália” da coordenadora da disciplina:
Prezada Diretora, venho por meio desta me reportar sobre alguns acontecimentos no Pólo de [nome da cidade] na Disciplina de Antropologia do Direito. Por ocasião da AD a Tutora Presencial corrigiu algumas provas, mas a Tutora a Distância, ou seja, a Coordenadora da Disciplina recorrigiu dando novas notas para os alunos. Os alunos reivindicaram suas notas que já haviam sido lançadas na plataforma (sic) e em represália a este acontecimento, na AP2 deu nota baixa a grande maioria do curso, inclusive a esta aluna, e solicitei revisão da AP2, que não obtendo resposta, fui obrigada a realizar a AP3, qual foi minha surpresa de ter sido repetida a mesma nota de AP2, sendo solicitado também a revisão da AP3. Contudo até o presente momento não foi revista, conforme solicitado, nenhuma das provas solicitado e na data de hoje termina a inscrição para as disciplinas, o que eu mais posso? Solicitei ao Dr. Pedro Heitor por e-mail a intermediação da Coordenação da Disciplina para que seja revisada minhas AP's! Aguardo com ansiedade e esperança as solicitações feita por mim e que seja feita justiça a esta aluna como os demais também! Desde já agradeço, fico no aguardo!
Aluna: [nome] matr. [número] do Polo [nome da cidade do polo].
Att, Paz e Luz, Sempre!! (ALUNA, grifo nosso).
Assim, podemos identificar pelo menos dois sérios obstáculos ao processo de socialização universitária: o primeiro é que os policiais não identificam na autoridade acadêmica (que está fundada na experiência e no mérito) uma legitimidade para exercer algum poder. Os tutores experimentam isso no momento de realização das provas quando devem controlar sua aplicação. A prática da cola aparece não somente como uma forma de desautorizar os tutores presentes, mas também como uma subversão das regras do mérito acadêmico fundada na igualdade e na uniformidade de tratamento e oportunidades. As colas foram frequentes e ensejaram muitos conflitos com os tutores e diretores de polo. Num caso de cola, o aluno resistiu fisicamente ao tutor que pretendia tomar-lhe a prova. Os colegas se calaram e consentiram com a resistência. O tutor se sentiu ameaçado. Posteriormente, o aluno disse que era “policial” e veio se justificar com a diretora do polo por receio das consequências militares possivelmente geradas se o fato chegasse ao conhecimento da Polícia Militar. Esse conflito foi administrado com uma aula pública com os alunos para discutir a questão. Durante essa aula, um outro aluno, que se disse graduado em pedagogia, tentou justificar enfaticamente a cola do colega alegando que ele colava porque não tendo tempo para estudar, porque estava trabalhando, não queria tirar uma nota baixa pois tinha “muito respeito pelo curso”. Esse argumento simplesmente desconhecia a função da prova como geradora de diferenças legítimas entre os alunos definindo o mérito próprio de cada um, fundamento da hierarquia universitária. O aluno que colou pretendia abandonar o curso por “falta de clima”. Outros casos também demonstraram como a arma e a farda são genericamente interpretadas como ameaçadoras para os tutores e, em certos casos, podendo mesmo se tornar ameaças, mesmo que implícitas.
O segundo obstáculo, como já se viu, está baseado na supremacia que os alunos conferem à sua socialização na Polícia Militar, onde a socialização prática supera em muito qualquer discussão teórica, inclusive aquelas fundadas no campo jurídico, referentes aos direitos e às garantias da população. Como o aprendizado de nosso direito se funda na reprodução de abstrações dogmáticas, e não em sua efetividade prática, a experiência da socialização militar e o convívio nas ruas é que vai prevalecer na socialização dos policiais, mesmo quando se opõem frontalmente às regras aprendidas na etapa de formação (SILVA, 2011; KANT DE LIMA, 2013).
Por fim, esta ética policial (KANT DE LIMA, 2013) também orienta os usos dos instrumentos reivindicatórios dos direitos. Há dois instrumentos familiares à vida civil-universitária que são utilizados pelos alunos de forma muito particular. O primeiro se refere aos abaixo-assinados. Os alunos de alguns polos para reivindicar à coordenação se organizaram e redigiram abaixo-assinados. Embora esta seja uma forma percebida como própria de uma sociedade democrática e pluralista, os alunos (policiais) usaram esse instrumento de forma diferente dos civis. O documento esteve aparecido não como uma forma de explicitar reivindicações legítimas, mas para: a) reclamar de atribuição de notas; b) subverter regras; c) solicitar privilégios; e d) repreender pessoalmente tutores e coordenadores de disciplina.
Os abaixo-assinados dos nossos alunos reuniram demandas de diferentes ordens que não condiziam com seus usos na vida civil, pois não eram orientados por princípios de natureza ética e política explícitos. Ao contrário, pareceram reforçar uma solidariedade desidentificada com algum representante específico. Nesses abaixo-assinados, os estudantes ainda reproduziram todas as suas representações de hierarquia, autoridade e poder da vida na caserna, partindo do princípio de que o coordenador ou qualquer outra autoridade universitária poderia mandar em algum professor na universidade, como se a hierarquia universitária fosse análoga a de uma cadeia de comando. O documento abaixo foi encaminhado à Coordenação para que se tomasse providências quanto à nomeação do Tutor-coordenador, que funciona como um apoio administrativo entre a Coordenação de curso e os Diretores dos Polos sendo, pelas regras do CEDERJ, indicado pela Direção do Polo:
Imagem 1: Abaixo-assinado sobre a nomeação do Tutor-coordenador do Curso de Tecnólogo em Segurança Pública – Polo São Gonçalo/RJ
Fonte: Os autores (2014).
Em outro abaixo-assinado de outro polo, os alunos solicitaram a presença do Coordenador no sábado subsequente ao envio do documento para que pudessem “iniciar o semestre com tranquilidade e a certeza de que estamos sendo ouvidos pela coordenação”.
Como já mencionado, e é notório, reivindicações não são bem vistas na vida militar. Numa aula inaugural, os alunos foram questionados se os mesmos poderiam formular pedidos em suas corporações. Em meio às gargalhadas, um deles respondeu: “Pode, mas não deve, professor”. Isto é, reivindicar publicamente depõe contra quem pede, a não ser que seja “coxado”, quer dizer, protegido e apoiado por alguma autoridade. Assim, como na universidade não se estimulam nem se institucionalizam relações entre protetores e protegidos, o abaixo-assinado despersonifica a reivindicação, evitando punições individualizadas e permitindo uma maior licença da linguagem, uma espécie de vale-tudo sem culpabilizáveis.
As éticas policial e universitária
Os alunos trazem para a universidade as representações sobre hierarquia e disciplina militares. Como já mencionado, numa demanda um aluno solicitou que seu pedido fosse encaminhado para o Reitor, na suposição de que o Coordenador, os Professores e os Tutores fossem, sucessivamente, subordinados ao Reitor, como ocorre na caserna. Ora, na universidade, essa hierarquia é administrativa e está subordinada ao princípio da liberdade acadêmica, que só pode ser limitada pelos órgãos coletivos de que fazem parte os próprios pares, e não a uma hierarquia de comando único. O aluno não conseguindo encontrar uma correspondência entre as representações da hierarquia militar e a hierarquia universitária concluiu que na universidade não há hierarquia alguma, só “anarquia”.
A outra questão é a disciplina que é compreendida como obediência pelas corporações de segurança pública. A disciplina para a universidade é o enquadramento nas regras da instituição, que incluem formas de tratamento entre os pares e entre os três segmentos da universidade, professores, técnico-administrativos e alunos, assim como as formas de aprender e compreender cada conteúdo – seja na química, física, biologia, ciência política, sociologia, antropologia, direito etc. – que não são disciplinas idênticas nem significam a mesma coisa. O processo de socialização é que permite construir o conhecimento pelos consensos em cada comunidade científica.
Já a hierarquia das instituições de segurança pública impõe a obediência aos comandos, seja de acordo com as hierarquias prévias estabelecidas, seja pelo fato de que em qualquer circunstância há um “mais antigo” apto a comandar na ausência de um comando designado. Essa obediência é mantida pela forma de sanções que não dizem apenas respeito às prisões administrativas, comuns na PMERJ, mas também às perseguições aos policiais. No e-mail abaixo, o aluno expôs para a coordenação do curso as sanções que ele recebeu por frequentar a universidade:
boa tarde
sou aluno do curso de tec em seg publica
[nome e matrícula do aluno]
sou policial militar e de cara no primeiro dia de aula presencial ja estou sendo perseguido!
durante a semana procurei minha chefia informando sobre minha matricula no curso e avisei a quem de direito sobre a aula presencial dia e horario.
pois bem quando cheguei no trabalho ja fui avisado que estava no atraso.
isto é, vou responder uma portaria e com grande chance de ser punido.
respeitosa e sinceramente a continuar assim fatalmente deixarei o curso.
desculpe o desabafo mas como respeitar e tratar com civilidade se não sou tratado com dignidade por meus superiores [sic]. (ALUNO).
Vejam que a coordenação havia solicitado ao comando da PMERJ que liberasse os alunos para fazerem prova presencial obrigatória, tendo sido atendida através de publicação de recomendação para tal em Boletim de Serviço da PMERJ. No entanto, os comandantes de batalhão não estão obrigados a cumprir essa recomendação, ficando a seu critério julgar a conveniência, ou não, de liberar o aluno. Esta reação negativa de alguns comandantes com referência ao curso, em outras ocasiões também manifestada mais ou menos explicitamente, pode ser mais explicitada em um comentário que viralizou na internet, do ex-governador do Paraná, Beto Richa. Ele foi instado a justificar porque havia vetado a exigência de curso superior para concorrer ao vestibular da PM do Paraná e esclareceu dizendo que os policiais não devem estudar muito, senão tendem a insubordinar-se e a não aceitarem ordens de um superior hierárquico.6 Ou seja, Beto Richa faz uma alusão direta de que quanto maior a ignorância, maior a propensão à obediência às ordens, o que implica dizer que a obediência não tem a ver com a compreensão e a aceitação das regras, mas à subordinação cega – e ignorante – aos superiores7.
Por outro lado, a disciplina na Polícia Militar tem a ver com o corpo e todas as suas sanções também recaem sobre ele. As sanções administrativas universitárias, que são repreensão, suspensão e expulsão da Universidade, recaem sobre a vida administrativa do aluno, nunca sobre o corpo, pois nem a expulsão impede a pessoa a ir à universidade. Ele apenas não será mais tratado como aluno.
Acresce a isso, a representação de que a universidade não tem hierarquia e disciplina, ou seja, que é uma bagunça, porque a única forma de ordem reconhecida é a hierárquica, entre desiguais em poder, nunca a forma normalizada, de aderência de todos às regras que vigem entre os iguais8. Por isso, a autoridade é vista sempre como desigual, o que, de certa forma, deslegitima automaticamente os procedimentos ordenadores da vida civil, que podem, então, ser desafiados, já que não há hierarquia que os suportem.
O paradoxo está dado, pois a polícia não está socializada para aderir às regras enquanto instituição, sendo que ela teria, teoricamente, o papel de difundir a obediência às regras na sociedade. Ao invés disso, difunde a obediência à própria polícia e aos seus comandos, e à sua particularíssima interpretação de regras, casuisticamente elaborada, como sugere a mensagem do aluno.
Essa atitude, portanto, é sempre mascarada por uma exposição das regras de nosso direito (direitos constitucionais que, como sabemos, não valem na vida militar brasileira por causa de exceções também constitucionais) que não se aplicam nunca literalmente, mas estão sempre necessitadas de interpretação para se fazerem cumprir no caso concreto (KANT DE LIMA, 2010).
Os procedimentos e as avaliações da universidade, quando transparentes, rompem com essa lógica policial. Igualmente, os conflitos quando administrados com a lógica da vida civil rompem com a experiência dos alunos que percebem a ordem na universidade como uma “anarquia”, porque não tem “hierarquia”. O estranhamento dos alunos os faz experimentar que a vida civil é um caos ordenado pelos instrumentos de administração institucional de conflitos a serem acionados individualmente por eles.
Considerações finais
Para além de explicitar as diferentes moralidades vigentes nos modos de vida militar e universitário, essa experiência demonstra que a convivência civil-militar apresenta conflitos nada triviais. O Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social a Distância da UFF não busca apenas ensinar conteúdos, mas também, e principalmente, desconstruir saberes e práticas profissionais tradicionais, socializando os profissionais da área de segurança pública imbuídos de uma ética militar e/ou repressiva nas formas de se relacionar na vida civil-universitária. Essa socialização nos parece fundamental para que o profissional possa prestar os serviços de segurança pública adequados ao modo de vida da sociedade contemporânea, exercendo inclusive um papel pedagógico em nossa sociedade. Por outro lado, também socializa muitos civis – os tutores, principalmente – com as questões próprias desses profissionais, como a construção da identidade com a arma, as formas de sanções pela prisão administrativa e a maneira como esses profissionais lidam com o conflito.
Esses conflitos foram administrados pela coordenação de forma a tornar explícita a diferença entre as referidas éticas. Esse exercício contínuo supõe criatividade para desconstruir nos alunos seus preconceitos contra a vida universitária-civil, que se refletem em seu trato diário com a sociedade a que devem servir e para envolver e socializar os alunos com formas cooperativas para lidarem com os desafios.
Além disso, este curso inverte a relação tradicional das Instituições de Segurança Pública com a Universidade, pois foi criado – assim como o Bacharelado – não a partir do saber prático da polícia legitimado por ela mesma, mas a partir de experiências de pesquisa na e da Universidade, que foram incorporadas ao curso através de demandas de transferência de conhecimento pelas instituições.
O Curso reúne ainda os diferentes “profissionais das carreiras de segurança pública”, inclusive policiais militares e civis, guardas municipais, bombeiros militares e agentes penitenciários, permitindo o diálogo e a interação entre eles. Assim como as experiências dos cursos de especialização na UFF, os profissionais têm a oportunidade de se conhecerem em igualdade de condições e, de alguma maneira, serem “colegas”. Isso rompe com a tradicional desarticulação entre as diferentes instituições do campo da segurança pública no Brasil (KANT DE LIMA, 2019; MIRANDA; MOTA, 2010; PAES, 2013).
Enfim, esta reflexão enseja questionamentos quanto aos paradoxos de uma sociedade que institucionaliza suas hierarquias nas estruturas burocráticas do Estado. O estranhamento dos alunos com a Universidade demonstra as descontinuidades da convivência civil-militar, mas também nos dá pistas de como compreender os encaixes desse dilema (DAMATTA, 1979), ou “quebra-cabeça brasileiro”, onde uma sociedade fortemente hierarquizada e, ao mesmo tempo, ciosa de sua Constituição pretensamente republicana, demanda um tratamento igualitário por parte dos agentes de segurança pública que estão inculcados de uma hierarquia excludente. Também deixa claro que não basta socializar os alunos nas regras republicanas e democráticas para que eles assumam a postura pedagógica de reproduzi-las no tratamento aos cidadãos que demandam seus serviços. É necessário e indispensável também que as instituições policiais reformulem sua estrutura interna para que esta seja coerente com o tratamento uniforme e universal de respeito aos direitos mínimos de seus membros, indispensável para a socialização profissional para a realização dos ideais democráticos e republicanos que a sociedade reivindica.
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A versão preliminar deste artigo foi apresentada no GT01 “Administração de conflitos em perspectiva
comparada”, do 39º Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu/MG, out. 2015.↩︎
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/catalogo-nacional-dos-cursos-superiores-de-tecnologia-. Acesso em: 19 abr. 2021.↩︎
Uma legislação recente propôs mudança de denominação e de funções para os tutores, onde os presenciais seriam denominados mediadores e os a distância, articuladores. Foi julgada inconstitucional. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-19/stf-decide-lei-tutor-rio-janeiro-inconstitucional#:~:text=Derrubada%20por%20sete%20votos%20a,ser%20ministradas%20apenas%20por%20professores. Acesso em: 20 abr. 2021.↩︎
Cf. MARSHALL, 1967. Não é sem significado que até hoje a fórmula enunciada pelo intelectual liberal da República Rui Barbosa afirma a igualdade dos semelhantes e a desigualdade dos diferentes: “a regra da igualdade é quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam” (BARBOSA, 1999, p. 26).↩︎
Haja vista institutos jurídico-processuais penais, como a “prisão especial” e o “foro privilegiado por prerrogativa de função”, de acordo com os artigos 29, 96, 102, 105 e 108 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e os artigos 84, 86 e 87 da Lei Nº 3.689 (Código de Processo Penal), de 3 de outubro de 1941 (BRASIL, 1941).↩︎
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2012/04/27/governador-do-parana-diz-que-policiais-que-estudam-tendem-a-ser-mais-insubordinados.htm. Acesso em: 21 abr. 2021.↩︎
O que torna ainda mais evidente o erro de se transformar escolas civis públicas em escolas militares, pretendendo ministrar aos futuros cidadãos civis a socialização hierárquica e disciplinar da caserna, certamente imprópria para o convívio civil.↩︎
Note-se que também não é majoritária na vida civil brasileira (DAMATTA, 1979, p. 139-193).↩︎