CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA DA EMPRESA DO ENCARCERAMENTO EM SANTA CATARINA

Jackson Silva Leal

Doutor em Direito (UFSC), mestre em Política Social (UCPel), professor permanente do PPGD (UNESC), professor de Criminologia (UNESC), coordenador da ESA (OAB/SC), advogado criminal inscrito na OAB/SC.

País: Brasil Estado: Santa Catarina Cidade: Criciúma

Email: jacksonsilvaleal@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0779-1103

Amanda Costamilan

Mestra em Direito (PPGD/UNESC). Graduada em Direito (UNESC). Pesquisadora vinculada ao Grupo Pensamento Jurídico Crítico, na linha Criminologia Crítica. Professora de Criminologia e Direito Penal (ULBRA). Advogada criminalista. Presidente da Comissão de Direito Criminal da OAB Subseção de Sombrio/SC.

País: Brasil Estado: Santa Catarina Cidade: Balneário Gaivota

Email: amandacostamilan@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0986-4804

Contribuições dos autores:

Ambos os autores estavam envolvidos na temática e participaram de todas as etapas, desde coleta dos dados até a redação.

RESUMO

Este artigo apresenta um fragmento da pesquisa sobre a econômica política do encarceramento no estado de Santa Catarina, em suas múltiplas manifestações dentro do contexto do neoliberalismo em que a estrutura de controle social se apresenta como um projeto sobretudo econômico. Neste trabalho em específico, analisa-se o incremento do encarceramento, situando esse crescimento no interior de uma empresa encarceradora, e como as últimas décadas são ilustrativas da significação econômica e material desse processo. Assim, metodologicamente, se apresenta como um esforço de sistematização acerca da realidade prisional no período recente, a partir de dados oficiais, tanto da Secretaria de Administração Prisional e Segurança Pública de Santa Catarina, como consolidadas nacionalmente pelo Infopen e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em estrutura análise qualitativa e quantitativa. Este trabalho visa contribuir com essa organização dos dados acerca do cárcere no Brasil no período atual que marca a virada para o séc. XXI como a Era do Superencarceramento. Parte-se da hipótese de que o projeto prisional catarinense se apresenta na vanguarda do modelo conservador economicista neoliberal, que tem a prisão no centro de seu modus operandi, e que se constitui com múltiplas funções, desde uma ferramenta privilegiada de controle das classes e populações marginalizadas, como também um projeto econômico, que pode ser altamente rentável se gerido a partir da lógica do custo benefício, em um verdadeiro processo de exploração do cárcere na moderna economia capitalista neoliberal.

Palavras-chave: Encarceramento em massa. Violência estrutural. Crítica da economia política. Estado de Santa Catarina. Empresa encarceradora.

ABSTRACT

CRITIQUE OF POLITICAL ECONOMY COMPANY OF IMPRISONMENT IN SANTA CATARINA

This article presents a fragment of research on the political economy of incarceration in the state of Santa Catarina, in its multiple manifestations within the context of neoliberalism in which the structure of social control presents itself as a primarily economic project. In this specific work, the increase in incarceration is analyzed, placing this growth within an incarceration company, and how the last decades are illustrative of the economic and material significance of this process. Thus, methodologically, it presents itself as an effort to systematize the prison reality in the recent period, based on official data, both from the Secretariat of Prison Administration and Public Security of Santa Catarina, and consolidated nationally by Infopen and the Brazilian Public Security Forum, in structure qualitative and quantitative analysis. This work aims to contribute to this organization of data about prisons in Brazil in the current period, which marks the turn of the century. XXI as the Era of Superincarceration. It is based on the hypothesis that the Santa Catarina prison project is at the forefront of the conservative neoliberal economistic model, which has the prison at the center of its modus operandi, and which has multiple functions, from being a privileged tool for controlling classes and populations marginalized, as well as an economic project, which can be highly profitable if managed based on the cost-benefit logic, in a true process of prison exploitation in the modern neoliberal capitalist economy.

Keywords: Mass incarceration. Structural violence. Critique of political economy. Santa Catarina state. Incarceration company.

Data de Recebimento: 06/09/2022 – Data de Aprovação: 18/08/2023

DOI: 10.31060/rbsp.2024.v18.n1.1799

INTRODUÇÃO: O QUE SE TEM DE IRREVERSÍVEL – A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA DA PENA

O presente trabalho busca apresentar uma síntese do que se tem de consolidado na criminologia crítica, especialmente pensando a realidade contemporânea brasileira, e mais especialmente a questão da segurança pública, a partir do exemplo (talvez privilegiado enquanto objeto de análise) do estado de Santa Catarina, no que diz respeito ao investimento nas funções de segurança pública no período recente. Essa abordagem se apresenta como fragmento de pesquisa maior, desenvolvida no bojo do Grupo Andradiano de Criminologia que se debruça sobre a crítica da economia política enquanto subcampo de análise da criminologia crítica.

O objetivo é propor a discussão acerca da segurança pública enquanto uma empresa, que tem no encarceramento e no exercício do controle penal alto valor econômico, e que acaba por constituir a liberdade enquanto commodity e a segurança como mercadoria.

Nesse sentido, parte-se de uma abordagem sintética do que se tem de irreversível para a criminologia crítica brasileira. Como campo, a criminologia crítica não se constitui em uma linha de pensamentos unitária e delimitada, mas corresponde à construção de um grupo heterogêneo de conhecimentos desenvolvidos a partir do paradigma da reação ou controle social (Andrade, 2012), o qual se consolidou a partir da emergência, nos anos 1960, de um conjunto de teorias, movimentos e ideologias que formavam o que Stanley Cohen (1988, p. 56) chamou de impulso desestruturador, ao atacar as fundações do sistema de controle social, evidenciando sua incapacidade para resolver os problemas e os conflitos sociais.

Foi neste contexto político de crítica às instituições repressivas, amparado pela difusão do marxismo no meio acadêmico, que as teorias da criminalidade baseadas no Labeling Approach1 e as teorias conflituais formaram a passagem da criminologia liberal contemporânea para a criminologia crítica, com um aporte mais radical, de perspectiva marxista (Baratta, 2011).

Este conhecimento acumulado dentro da criminologia crítica e da história da punição ensinaram a fazer uma leitura estrutural da pena, a entender a pena enquanto expressão da estrutura social e elemento fundamental para reprodução desta mesma estrutura. A evidência de que o aprisionamento se relaciona muito mais com aspectos políticos e sociais da estrutura capitalista, do que propriamente às variações nos índices de criminalidade, possibilitou uma revolução paradigmática nos estudos criminológicos, em que se mudou o objeto de análise da criminalidade concebida como fenômeno natural para a estrutura social e as relações de poder2.

Essa mudança de paradigma foi possível, em grande medida, pela emergência da corrente teórica de matriz marxista denominada Crítica da Economia Política da Pena (CEPP). Lançando as luzes do materialismo histórico no sistema penal, a CEPP evidenciou que este funciona como um modo de regulação para cada uma das conformações do estado capitalista e seus modos de acumulação, ou seja, a cada etapa do desenvolvimento do capital, uma etapa do desenvolvimento e da finalidade atribuída à prisão, permitindo chamar – na esteira de David Harvey – sociometabolismo da prisão e do sistema penal (Harvey, 2014).

Embora análises materialistas do crime e da punição inspiradas nos escritos de Marx e Engels já tivessem surgido desde o início do século XX, a fundação dessa corrente teórica é comumente atribuída à segunda edição da clássica obra de Rusche e Kirchheimer (2004), Punição e estrutura social, publicada originalmente em 1939, mas que ganha notoriedade somente anos mais tarde, quando a Columbia University Press publica sua segunda edição em 1967 (Neder, 2004).

“Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção” (Rusche; Kirchheimer, 2004, p. 20). Esta é a famosa tese firmada pelos autores que possibilitou uma mudança de paradigma nos estudos criminológicos, ao demonstrar que “o sistema penal não é ontológico nem absoluto, mas que se modula de acordo com as conveniências da regulação do mercado de mão de obra” (Batista, 2012, p. 93).

Desta forma, a obra de Rusche e Kirchheimer (2004) contradiz a dogmática penal oficial, que justifica a pena enquanto uma simples consequência do crime, ligada à necessidade de retribuição e prevenção. Mais do que um ente abstrato do mundo jurídico, os autores argumentam que a punição só pode ser compreendida quando relacionada com a concretude das relações sociais e dos modos de produção vigentes em determinado contexto histórico (Rusche; Kirchheimer, 2004).

Em poucos anos, surgiram importantes estudos sobre o aprisionamento na modernidade, como: em 1975, a obra Vigiar e Punir, de Foucault (2003); em 1977, o livro Cárcere e Fábrica, escrito por Dário Melossi e Mássimo Pavarini (2006); e em 1978 A just measure of pain, de Michael Ignatieff (1978). Não obstante as diferenças presentes nestas obras, todas elas consideram a prisão como um produto da revolução industrial. Conforme Rusche e Kirchheimer (2004, p. 43), a passagem do feudalismo para o período pré-capitalista fez surgir uma enorme massa de pessoas que não conseguiram ser incorporadas pela nascente indústria nos centros urbanos, formando uma concentração de pessoas em condições miseráveis e sem qualquer tipo de assistência. Esse excedente populacional fez ocorrer uma gradual mudança nos métodos de punição, uma vez que se vislumbrou a possibilidade de explorar a mão de obra de prisioneiros através de trabalhos forçados, servidão nas galés e deportação para colônias.

As teorias iluministas vão explicar o surgimento das prisões a partir da necessidade de substituir as penas corporais e o espetáculo dos suplícios pela pena privativa de liberdade, sendo o argumento fundamentador do Direito Penal e do Processo Penal moderno a humanização da aplicação da pena criminal. No entanto, a partir da contribuição dada pela Economia Política da Pena, é possível perceber como o processo de acumulação capitalista que vai do século XVIII até o século XIX precisou de um severo controle social para conter a massa de homens e mulheres marginalizados pelo processo de acumulação (Zaffaroni, 1988).

Desta forma, a principal função que o aprisionamento cumpre em um primeiro momento é o de obter mão de obra e de introjetar na massa de marginalizados a obrigatoriedade do trabalho sob a ameaça de prisão (prevenção geral) e, após o indivíduo reconhecer o trabalho como obrigatório em um sistema capitalista já consolidado, o sistema penal cumpre o papel de disciplinar este trabalhador, para transformar o camponês em um operário industrial docilizado a partir de sua inserção na disciplina na fábrica e da indústria3. É nesse sentido que se compreende a prisão como um modo de regulação para cada modo de acumulação do Estado capitalista, conforme Hirsch:

O processo de acumulação apresenta uma relativa estabilidade e continuidade quando ele está inserido em uma rede de instituições e normas sociais que se encarregam de fazer com que as pessoas se comportam em concordância com as respectivas condições de acumulação, ou seja, que pratiquem os correspondentes modos de trabalho, de vida e de consumo, bem como as formas determinadas de asseguramento de seus interesses. (Hirsch, 2010, p. 105-106).

Analisar o sistema de justiça criminal desde a Crítica da Economia Política da Pena e sob a lente de análise do materialismo histórico é essencial para contribuir com a compreensão da prisão e das estruturas de controle sociopenal em um dado contexto, no entanto, estes estudos não dão conta de explicar as novas funções que a prisão agregou ao longo do tempo, a partir das transformações da organização social no capitalismo neoliberal (Leal, 2021).

Massimo Pavarini (2009) recorda como nos anos 1970 via-se o abolicionismo penal como uma possibilidade politicamente realista, e não uma mera utopia. Isso porque todos os acúmulos teórico e empírico obtidos pela criminologia evidenciaram a incapacidade do sistema penal em cumprir suas funções declaradas, de conter os problemas sociais, ressocializar pessoas e promover segurança jurídica, acarretando uma crise estrutural de legitimidade (Andrade, 2012, p. 279).

Ademais, a tradicional justificativa proporcionada pela economia política da pena, de que o aprisionamento se constituía em instrumento de gestão do mercado de trabalho capitalista, apontava para uma superação histórica da necessidade da pena de prisão e do ideário reabilitador, já que as políticas econômicas do Estado de Bem-Estar keynesiano garantiam um ritmo de crescimento econômico e pleno emprego.

O Estado de Bem-Estar abranda a relação punitiva entre o capital e a força de trabalho, o que impetra uma profunda alteração na racionalidade penal, a qual passa a ter as mesmas características previdenciárias apresentadas pelo Estado, pautando-se pelo correcionalismo e tendo como fundamento oficial da pena a ressocialização. Os anos de ouro do capital permitem que o controle da força de trabalho se dê mais no âmbito de concessões de direitos sociais do que nos processos de criminalização, o que tanto impede a exploração econômica da força produtiva do preso, quanto a torna desnecessária, tendo em vista a abundância dessa mercadoria no mercado de trabalho alinhada, principalmente, com sua alta absorção pelo processo produtivo da fábrica. (FELETTI, 2014, p. 16-17).

No interior da cultura progressista do Estado social, a prisão era lida enquanto uma necessidade da modernidade, para fins de inclusão social pela ressocialização, e da reeducação (prevenção especial positiva). Com a crise de legitimidade do sistema penal e o movimento do desencarceramento, o objetivo de reintegração do condenado não necessitava mais de práticas de correção e disciplina dentro do cárcere, sua reintegração se daria dentro da própria comunidade, com uma rede de amparo oferecida e organizada pelo Estado (Pavarini, 2009).

Mas, como bem ilustrou Vera Andrade (2012), a crise de legitimidade do sistema penal é um elemento importante para se compreender a ampliação das dinâmicas punitivas e a inflação carcerária que hoje caracteriza a política criminal, na medida em que a crise condiciona a expansão do sistema penal e o discurso eficientista4 de defesa social, que afirma que se o sistema não funciona de maneira eficiente é porque não é repressivo o suficiente, sendo necessário maximizar os níveis de eficiência com o aumento de todo o aparato punitivo e de segurança.

Com o processo de globalização e o alvorecer do neoliberalismo, formou-se um novo modelo de mercado e de sociedade, com consequentes transformações na maneira como se dá o controle penal no capitalismo neoliberal, que se constituem enquanto pontos irreversíveis para a crítica da economia política da pena.

Loïc Wacquant (2007), em sua pesquisa realizada nos Estados Unidos, evidenciou que, tanto em países centrais quanto em periféricos, a implementação de políticas neoliberais resultou em uma ampliação das dinâmicas de controle do aparato penal direcionadas para as classes mais baixas a fim de gerir as desordens da nova ordem econômica.

A análise comparada da evolução da penalidade nos países avançados durante a década passada evidencia, de um lado, um estreito laço entre a escalada do neoliberalismo como projeto ideológico e prática de governo que determinam a submissão ao “livre mercado” e a celebração da liberdade individual em todos os domínios e, do outro, o desenvolvimento de políticas de segurança ativas e punitivas, centradas na delinquência de rua e nas categorias situadas nas fissuras e nas margens da nova ordem econômica e moral que se estabelece sob o império conjunto do capital financeiro e do assalariamento flexível. (Wacquant, 2007, p. 25).

Desde Wacquant, uma série de pesquisadores obtiveram sucesso em demonstrar como a ampliação nas dinâmicas de controle e recrudescimento penal não são meros reflexos de um suposto aumento na criminalidade, mas resultado da redefinição da função social da prisão, que foi se modificando e agregando novas funcionalidades ao longo das transformações do capitalismo neoliberal, resultando em um encarceramento massivo e produzindo um quadro de superlotação e precariedade das instalações, com evidentes afrontas aos direitos humanos.

Dessa forma, mesmo deslegitimada, a prisão se expande sob o modelo neoliberal, principalmente a partir da doutrina da Tolerância Zero, criada nos Estados Unidos da América e exportada como modelo base para as políticas criminais no restante do mundo ocidental, que se volta preponderantemente para os chamados crimes de rua, manifestando de forma mais crua sua seletividade ao sustentar conceitualmente “a criminalização do excedente de mão de obra para o grande encarceramento” (Batista, 2012, p. 103), na mesma medida em que vende a ilusão de que se obterá mais segurança sancionando leis cada vez mais duras, aumentando a arbitrariedade policial e legitimando vários gêneros de violência.

Essa representação tem uma fácil aderência na população fragilizada pela racionalidade neoliberal, que promove a concorrência generalizada e o individualismo, atribuindo ao próprio cidadão a culpa pela insegurança econômica, política e social gerada pelo processo de desmonte das garantias constitucionais, pela precarização do trabalho e demais políticas neoliberais. A ausência de amparo estatal aliada a uma grande reprodução, na mídia de massa, de histórias de crimes dramatizadas e com pouco contexto tornam a racionalidade punitiva de fácil aderência. As pessoas são diariamente inundadas por implacáveis histórias de crimes noturnos e violentos, gerando a sensação de medo generalizado que não condiz com as taxas de criminalidade (Mauer, 2001), que, como demonstrou Christie (1998), se apresentam como variáveis independentes.

Mas a questão não é tão simples. A expansão penal que se verifica a partir do fim do século XX não se constitui simplesmente como uma forma de neutralizar as desigualdades e crises geradas pela adoção de políticas neoliberais de desregulamentação, privatização e redução de políticas assistenciais. Utilizando o que se tem de irreversível no arcabouço teórico proporcionado pela crítica da economia política da pena, tem-se a expansão do sistema carcerário e todas as ramificações que o aparato penal repressivo apresenta no contexto contemporâneo como elemento constitutivo de um novo momento no modo de acumulação capitalista, fundamentado na desvalorização sistemática dos pobres e na exploração predatória de trabalhadores, com uma contínua redistribuição de riqueza que consolida uma sociedade cada vez mais desigual e sustentadora de uma hierarquia racial (De Giorgi; Fleury-Steiner, 2017, p. 2).

É nesse sentido que se compreende as múltiplas e diversas funções que a prisão e todas as ramificações que o aparato de controle social penal agregou no contexto neoliberal enquanto a formação de uma instituição que se constitui como elemento central de uma lógica de sociabilidade pautada na dominação e na segregação de classe, raça e gênero, ou seja, o sistema penal como um pilar fundamental da estrutura econômica e social da modernidade capitalista neoliberal.

Feita essa introdução teórica, metodologicamente, este trabalho se apresenta como revisão e atualização teórica da economia política da pena, portanto, de uma matriz teórica e epistemológica de orientação marxista. E enquanto método, como análise de dados consolidados, tanto pelas fontes institucionais formais e oficiais do estado de Santa Catarina e do Governo Federal (Departamento Penitenciário Nacional – Infopen), assim como pelo que se tem de consolidado e sistematizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O que, a partir da estrutura teórica proposta, permite uma análise materialista da função segurança pública e administração prisional e seus investimentos.

RESGATE E ATUALIZAÇÃO DA CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA EM UM MUNDO FINANCEIRIZADO

Diante das críticas que acusam a economia política da pena de reducionista ou determinista por observar apenas aspectos econômicos, Alessandro De Giorgi (2017) sugere uma economia política não reducionista, através de uma crítica às estratégias penais que seja capaz de superar a escolha entre “estrutura” e “cultura”, levando em consideração as argumentações de outros campos teóricos suscitadas por correntes críticas sobre o castigo e a sociedade. Para isso, ele sugere a abordagem de três temáticas: 1) a dimensão simbólica do castigo, que aponta uma atenção excessiva do marco materialista; 2) os efeitos governamentais mais amplos gerados pelas práticas e estratégias penais e; 3) os contextos políticos-institucionais específicos que incidem sobre a forma penalidade (De Giorgi, 2017).

Essa mesma perspectiva foi utilizada por Loïc Wacquant (2007), em seu livro Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, onde o autor pretende fazer uma “atualização” da economia política da pena inaugurada por George Rusche e Otto Kirchheimer, ao “levar em consideração, em conjunto, as dimensões materiais e simbólicas da reestruturação contemporânea da economia da punição” (Wacquant, 2007, p. 17), para analisar a emergência de um Estado Penal nos Estados Unidos da América, na era de um neoliberalismo em ascensão.

Assim, resgata-se alguns autores que proporcionam uma compreensão mais alargada do fenômeno neoliberal, visto para além de uma plataforma econômica e/ou política que emerge a partir dos governos Thatcher e Reagan, mas como uma racionalidade produtora de subjetividades que vinha sendo gestada desde o fim dos anos 1930 (Brown, 2019; Dardot; Laval, 2016).

Conforme Wendy Brown, o termo neoliberalismo foi cunhado em 1938, no Colóquio de Walter Lippamann, uma reunião de intelectuais, assim como a Sociedade de Mont-Pèlerin, fundada em 1947, na Suíça, que ficou conhecida como o principal de vários outros círculos acadêmicos e militantes, onde se discutia a refundação da doutrina liberal (Brown, 2019, p. 28). Os estudos produzidos nesses círculos, onde era realizada uma crítica ferrenha ao Estado e às políticas públicas e, em contrapartida, uma apologia ao capitalismo e ao livre mercado, aos poucos saíram da academia e ganharam adesão no contexto pós-Segunda Guerra Mundial, ao serem utilizados como estratégia de retomada do poder burguês contra os avanços de movimentos sociais contestatórios que ganharam força com a possibilidade de superação da crise do capital na década de 70 (Dardot; Laval, 2016, p. 205-206).

Wendy Brown assinala que a adoção do ideário neoliberal surge enquanto uma reação econômica e política específica contra o keynesianismo e a social-democracia (Brown, 2016, p. 12), mas não somente isso. A autora não analisa o neoliberalismo apenas enquanto um conjunto de políticas estatais, como uma fase do capitalismo ou uma ideologia de mercado, ela parte da perspectiva foucaultiana, que concebe o neoliberalismo enquanto uma razão normativa, uma racionalidade produtora de subjetividades que transformam todas as dimensões da vida humana em valores econômicos (Brown, 2016).

Nesta senda, os franceses Pierre Dardot e Christian Laval (2016) também utilizam a mesma matriz teórica, ao compreender o neoliberalismo para além de uma plataforma econômica e política, mas como uma racionalidade produtora de subjetividades baseada na concorrência e na lógica individualista do empreendedor de si mesmo, definindo um novo modo de governo dos homens e formando um novo modelo de sociedade e de mercado (Dardot; Laval, 2016).

Os autores revelam como a interpretação marxista se mostra insuficiente para essa análise, pois o neoliberalismo “emprega técnicas de poder inéditas sobre as condutas e as subjetividades. Ele não pode ser reduzido à expansão espontânea da esfera mercantil e do campo de acumulação do capital” (Dardot; Laval, 2016, p. 21). A partir dessas técnicas de poder, consistentes em um conjunto de práticas, discursos e dispositivos produtores de subjetividades, se institui esta racionalidade neoliberal, que determina um novo modo de governo dos homens conforme o princípio da concorrência e do individualismo, visando à conservação permanente da ordem de mercado.

Para os sociólogos franceses, a novidade deste novo neoliberalismo reside em sua adaptabilidade, pois diferentemente da concepção liberal clássica, onde o mercado era visto como um ente natural, o neoliberalismo pressupõe uma ordem de mercado construída, que pode se adaptar conforme as circunstâncias, constitui um programa político, uma “agenda” visando ao seu estabelecimento permanente (Dardot; Laval, 2016, p. 82).

Maurizio Lazzarato (2019) recorda como se deu a construção dessa nova ordem de mercado na América Latina, que teve sua primeira experiência quando as políticas neoliberais foram implantadas no Chile, após o sangrento golpe militar de Augusto Pinochet, em 1973, cuja vitória político-militar destruiu as possibilidades revolucionárias e criou as condições necessárias para implementar o receituário neoliberal da Sociedade de Mont Pélerin e disciplinar a população fragilizada. Conforme o autor, havia na América Latina “uma subjetividade devastada pela repressão militar, cujo projeto político fora estraçalhado e sobre a qual se podia operar livremente” (Lazzarato, 2019, p. 23).

Dessa forma, para construir as condições ideais de desenvolvimento do capitalismo neoliberal, era necessário enfraquecer as organizações sociais e esmagar as potencialidades revolucionárias que emergiram no século XX, principalmente na América Latina. Assim, alianças entre economistas e militares foram comuns ao Sul do Equador, reproduzindo as políticas chilenas de privatizações de direitos sociais, precarização das relações de trabalho e cortes nas despesas sociais (Lazzarato, 2019).

É nesse sentido que se traz uma reflexão mais ampla da economia política e de sua crítica, realizada recentemente por Éric Alliez juntamente com Lazzarato; no livro Guerras e Capital (2021), os autores fazem uma releitura do desenvolvimento do capital, inserindo a guerra, em todas as suas multiplicidades5, enquanto elemento essencial de seu desenvolvimento e manutenção. Assim, o capitalismo não é entendido somente como produção, mas guerra e produção, constituindo um modo de produção que se manifesta também como modo de destruição.

Nossa primeira tese é de que a guerra, a moeda e o Estado são as forças constitutivas ou constituintes, ou seja, ontológicas, do capitalismo. A crítica da economia política é insuficiente na medida em que a economia não substitui a guerra, apenas a prolonga por outros meios, que passam necessariamente pelo Estado: a regulação da moeda e o monopólio legítimo da força, na guerra interna e externa. Para realizar a genealogia do capitalismo e reconstruir o seu “desenvolvimento”, urge conjugar a crítica da economia política a uma crítica da guerra e a uma crítica do Estado. (Alliez; Lazzarato, 2021, p. 15).

Assim, uma das principais teses do livro é a de que não existe acumulação primitiva e constituição do capital “sem o exercício da guerra no exterior e o fomento da guerra civil no interior das fronteiras do Estado” (Alliez; Lazzarato, 2021, p. 15). Assim como o Estado também precisa capturar a valorização de riquezas operada pelo capital para manter seu funcionamento, sua governamentalidade e seus exércitos cada vez mais fortes, reproduzindo o ciclo de desenvolvimento de uma guerra civil infinita no centro da população (Alliez; Lazzarato, 2021).

No entanto, os autores afirmam que a acumulação primitiva continua existindo no funcionamento normal do capitalismo, sendo que cada nova fase do desenvolvimento do capital implica retornar a este momento de origem em que se destrói – do ponto de vista político – a resistência (Alliez; Lazzarato, 2021). Essa análise ajuda a compreender como o neoliberalismo nasceu de uma contrarrevolução conduzida através de diferentes golpes de Estado que aconteceram a partir do Chile, em toda a América Latina. Se os autores afirmam que, antes da economia, há a guerra, é somente quando a revolução é desfeita que existem condições para pensar as normas e as instituições para impor os pressupostos do neoliberalismo.

Comumente conhecido por um conjunto de políticas que emergiram no período entre 1970 e 1980, o neoliberalismo ganhou o mundo quando a experiência chilena foi replicada pelos governos de Margaret Thatcher, na Inglaterra, em 1979, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, em 1980. Conforme Tatiana Brettas (2020), o desenvolvimento do neoliberalismo se constitui enquanto um projeto sociopolítico voltado para a recomposição do poder burguês ameaçado pela crise do capital e pelos movimentos sociais contestatórios. Esse projeto tinha como foco, principalmente, a redução do Estado Social, com a crescente privatização de propriedades e serviços públicos, redução da assistência social, precarização do trabalho e desregulação dos fluxos de capitais para atrair investidores estrangeiros, resultando na crescente dominação dos intermediários financeiros sobre os processos produtivos.

Brettas (2020, p. 56) aponta que a inauguração deste novo “patamar no desenvolvimento das relações capitalistas vai permitir um salto no processo de concentração e centralização do capital, estimulando a fusão de empresas e a ampliação dos seus setores de atuação”, que gradualmente se agigantam em meio a nova lógica de mercado no período do neoliberalismo globalizado.

Ao abordar a exponencial concentração de poder econômico, político e cultural dessas gigantes corporações privadas, Ladislau Dowbor evidencia como não é a falta de recursos financeiros que justifica a situação de precariedade de vida em muitos países, “mas a sua apropriação por corporações financeiras que os usam para especular em vez de investir” (Dowbor, 2018, p. 32).

São fortunas tão grandes que não podem ser transformadas em demanda, por mais consumo de luxo que se faça. Assim, são reaplicadas em outros produtos financeiros. E a realidade fundamental é que a aplicação financeira rende mais do que o investimento produtivo. O PIB mundial cresce num ritmo situado entre 1% e 2,5% segundo os anos. As aplicações financeiras rendem acima de 5%, e frequentemente muito mais. Gerou-se, portanto, uma dinâmica de transformação de capital produtivo em patrimônio financeiro: a economia real sugada pela financeirização planetária. (Dowbor, 2018, p. 33).

A intensificação dos fluxos financeiros com a crescente dominação dos intermediários financeiros sobre os processos produtivos acirrou drasticamente as desigualdades, estando a concentração de renda e riqueza nas mãos de corporações transnacionais cada vez mais seletas, que controlam commodities, bens e serviços indispensáveis para a vida humana. Isso significa que a variação de preços e o comércio de bens vitais para a sobrevivência humana está dominada por uma ínfima parcela de atores econômicos que tem como único objetivo o lucro pelo lucro (Dowbor, 2018).

O agigantamento do poder econômico do capitalismo financeiro também acarretou uma progressiva submissão dos Estados frente o crescimento das redes transnacionais de produção, onde há uma paulatina perda de competências e controle político para grandes corporações, assim, os Estados “não respondem à vontade de seus votantes, mas aos limites impostos pelas agências de crédito funcionais às corporações”, sendo a democracia cada vez menos real e mais formal (Zaffaroni; Dias dos Santos, 2019, p. 53).

Utilizando as contribuições de Tatiana Brettas (2020), que analisa esse novo momento das relações de poder nos marcos do capitalismo dependente, a autora demonstra como a desregulamentação financeira, visando a uma maior rentabilidade do capital, “provocou um aumento e diversificação das estratégias de exploração da força de trabalho e de extração de mais-valia, como forma de sustentar essa rentabilidade” (Brettas, 2020, p. 159), resultando também em uma crescente precarização do trabalho e num ataque maciço aos direitos dos trabalhadores, principalmente nos países de economia periférica, onde as políticas neoliberais foram impostas principalmente como condicionantes para receberem empréstimos de organizações financeiras internacionais:

A ampliação da mobilidade de capitais passa a se constituir como uma alternativa para, por meio da transferência de valor, contornar a tendência decrescente da taxa de lucro enfrentada nos países imperialistas. Aos Estados dependentes cabia uma reconfiguração que passava pelo aumento da dívida pública como forma de justificar sucessivos ajustes fiscais, alimentando a rentabilidade financeira e legitimando a canalização de recursos do fundo público para o capital, a condução de contrarreformas e a contenção de gastos sociais. (Brettas, 2020, p. 159).

Sendo um dos principais traços dessa nova etapa do capitalismo neoliberal, a financeirização dos processos econômicos é caracterizada por uma intensificação dos fluxos financeiros, não apenas quantitativa, mas essa rentabilidade das finanças vai ser a chave para a superação da crise dos anos 1970, na medida em que a busca pela rentabilidade vai intensificar os fluxos de capitais. Brettas explica como se dá este processo:

A ruptura de limites anteriormente existentes para a mobilidade do capital portador de juros passa a se constituir como uma alternativa para contornar a tendência decrescente da taxa de lucro e consiste em um dos principais traços da financeirização. A intensificação dos fluxos financeiros e a rentabilidade dela decorrente não possui uma dimensão apenas quantitativa. Trata-se também de uma mudança qualitativa tendo em vista que provoca uma pressão pela ampliação das bases de extração de mais-valia. Em outras palavras, o fenômeno da financeirização pressiona uma reorganização da base produtiva, lócus da geração da riqueza. (Brettas, 2017, p. 63).

A grande rentabilidade da financeirização só é possível porque parte da apropriação de valor gerado no âmbito da produção de mercadorias, dessa forma, para alimentar os interesses das finanças e as expectativas dos acionistas. Com isso, o projeto capitalista neoliberal precisa garantir uma intensificação da exploração da força de trabalho. É nesse sentido que a autora conclui que o processo de dominação de classes operado no neoliberalismo, e que tem a financeirização como um de seus pilares fundamentais, tem um desdobramento direto sobre as condições de vida da classe trabalhadora, pois a rentabilidade pujante do capital vai pressionar as empresas a ampliarem as estratégias de exploração da classe trabalhadora (Brettas, 2017, p. 72), ou ainda, como já denominava Joachim Hirsch (2010), a cada modo de acumulação, seu modo de regulação, ou seja, a cada etapa do desenvolvimento das forças produtivas e da exploração, uma etapa se forma para as força de dominação e violência institucional.

Assim, esse novo momento das relações capitalistas resultou numa drástica mudança da organização e distribuição (desigual) da riqueza social para o topo da hierarquia racial e de classes, num radical aumento das desigualdades econômicas e numa precarização aguda do trabalho, com ataques maciços aos direitos dos trabalhadores e o gradual desmantelamento da rede de segurança social que tinha sido instituída pelo Estado de bem-estar social.

A EMPRESA DO ENCARCERAMENTO EM SANTA CATARINA NO BRASIL ATUAL

O presente tópico se volta para a materialidade concreta da realidade do estado de Santa Catarina, que até 2020 contava com 50 unidades prisionais, divididas em 7 regiões penitenciárias, e que se dividem sob as formas de unidades prisionais avançadas (unidades e comarcas menores), presídios regionais (unidades de maneira geral de prisão provisória, também na forma do presídio agrícola) e penitenciárias (que são as unidades maiores onde se situam as unidades industriais mais modernas e de construção/reforma mais recente).

A realidade catarinense está – como nos demais estados da federação – organizada e dividida em unidades masculinas, femininas e mistas, de aprisionamento definitivo e provisório, e a população prisional tem girado em torno de 25.000 internos. Atualmente, o estado conta com 53 unidades, pois, ao longo da pandemia de COVID-19, foram concluídas e inauguradas 3 unidades que estavam em processo de construção e operacionalização (Leal, 2021).

Assim, esse tópico visa problematizar a realidade prisional catarinense. Conforme já evidenciado no primeiro tópico, as definições do novo momento de acumulação capitalista proporcionam uma série de transformações na maneira como se dá o controle penal nesse contexto neoliberal.

Por meio do discurso da meritocracia – onde os que não conseguiram obter os recursos para viver são imbuídos de culpa por não terem se esforçado o suficiente e alcançado o sucesso – encobre-se o acirramento das desigualdades sociais e das condições de vida precárias decorrentes das novas políticas neoliberais. Assim, o Estado agora oferece como única alternativa, aos que não se ajustaram ao novo modo de produção, seu aparato repressivo/policial e punitivo.

Mas não somente isso, o paradigma neoliberal de governança também criou ótimas oportunidades de mercado para uma diversidade de atores privados ávidos para lucrar com as novas oportunidades que o sistema penal e carcerário poderia gerar.

Nos Estados Unidos, Angela Davis (2018, p. 12) mostra como “conforme o sistema prisional norte-americano se expandia, expandia-se também o envolvimento corporativo na construção, no fornecimento de bens e serviços e no uso da mão de obra prisional”. De igual forma, Ruth Gilmore (2007) demonstra o processo fracionado de privatização da prisão enquanto conglomerado de interesses financeiros no século XXI e de como a segurança pública e o encarceramento se constituem em uma empresa.

É nesse sentido que se pode apontar para a existência de uma indústria (indústria do controle do crime) que sustenta a expansão e a diversificação do sistema penal, juntamente com a redução das garantias penais e processuais penais, onde corporações associadas à indústria da prisão e da segurança lucram com as dinâmicas de aprisionamento e combate ao crime, fomentando cada vez mais o interesse no crescimento deste setor.

“O encarceramento em massa gera lucros enquanto devora a riqueza social, tendendo, dessa forma, a reproduzir justamente as condições que levam as pessoas à prisão” (Davis, 2018, p. 19), conformando aquilo que Nils Christie há muito já denunciava como indústria e controle do crime:

As sociedades de tipo ocidental enfrentam dois problemas principais: a distribuição desigual da riqueza e do trabalho assalariado. Os dois problemas são fontes potenciais de intranquilidade. A indústria do controle do crime destina-se a enfrentá-los. Esta indústria fornece lucro e trabalho e, ao mesmo tempo, produz o controle sobre os que de outra forma poderiam perturbar o processo social. (Christie, 1998, p. 1).

A novidade que se insere no campo penal brasileiro, caracterizado por um encarceramento massivo da população jovem, negra e periférica, é a geração de lucros, a partir da transformação do encarceramento e de todo o aparato penal em um negócio rentável para empresas do setor privado interessadas em fornecer os mais diversos serviços, que vão desde construção civil, alimentação e vestuário no cárcere até os mais tecnológicos aparatos para as forças de segurança, como câmeras, drones, telas touch screen, GPSs e, claro, armas de fogo.

No Brasil, o desenvolvimento do capitalismo financeiro e a abertura econômica operada no fim do século XX abriram um terreno fértil para o setor privado envolvido no campo penal. Esta lógica do capitalismo neoliberal se adapta de maneira perversa na busca incessante pelo lucro a partir da expansão penal, se associando com preconceitos raciais e ideologias autoritárias que caracterizam a história do controle penal brasileiro.

Não se trata somente de lucrar com parcerias público-privadas visando à exploração da mão de obra desvalorizada do preso, ou da introjeção de uma consciência de subalternidade visando à aceitação ao trabalho cada vez mais precário; a exploração que o neoliberalismo produz se dá também a partir do simples armazenamento de pessoas marginalizadas, o que está diretamente associado com o paradigma repressivo de segurança pública adotado atualmente no Brasil.

Nesse sentido se pode apontar a face catarinense da escalada punitiva na última década, que demonstra da maneira clara o superencarceramento não como uma consequência, mas como um projeto, conforme o Gráfico 1, abaixo.

Gráfico 1:

Progressão do encarceramento em SC, de 2011 a 2021

[CHART]

Fonte: FBSP (2010-2020).

O Gráfico 1, acima, aponta, como já é de conhecimento geral no campo da criminologia e sociologia criminal, que a escalada do encarceramento brasileiro, desde o início dos anos 1990, e que está retratada no gráfico no recorte histórico de 2012-2021, demonstra, na última década, uma severa elevação, e que permite chamar a atenção não apenas das instituições de direitos humanos, diante do risco e dos problemas que essa realidade envolve, mas também, de outro lado, toma a atenção do mercado, que passa a ver a questão prisional e a segurança pública como um campo de investimento/exploração.

Assim, a ampliação das dinâmicas de controle do crime e o aumento do aparato repressivo e encarcerador, além de perpetuarem um modelo de política criminal comprovadamente falho, que não diminuiu os índices criminais e a insegurança social, ainda converge com os interesses do mercado neoliberal, criando um solo fértil para transformar o direito à segurança em um negócio muito lucrativo aos atores econômicos que exploram este nicho através de parcerias público-privadas, fornecendo serviços de segurança privados (Feletti, 2014).

Além disso, o agigantamento do sistema penal e de suas estruturas de controle e vigilância também constituiu em um dos imperativos da racionalidade neoliberal para manutenção de seus valores e contenção dos grupos marginalizados e excluídos pelos processos de exclusão característicos deste sistema. Conforme Feletti (2014, p. 135), na nova ordem do mercado, “o sistema penal não disciplina mais corpos para o labor, ele neutraliza (ou extermina) parte da população e disciplina mentes para o consumo”.

É nesse sentido que se volta a utilizar as contribuições de Éric Alliez e Maurizio Lazzarato (2021), que, tendo a guerra enquanto elemento central do desenvolvimento capitalista, mostram como, a partir do final do século XIX, o capital se apropria do Estado e de sua máquina de guerra para atingir seus objetivos. “Ele se engaja em um processo de captura ao qual é indispensável a construção de uma máquina de guerra própria, da qual o Estado e a guerra são meros componentes” (Alliez; Lazzarato, 2021, p. 309).

Os autores explicam como a intensificação dos fluxos financeiros que caracterizam a financeirização fazem com que as crises cíclicas do capitalismo “não tardarão a se tornar tão próximas umas das outras que a própria noção de ‘crise’ perderá todo sentido estrutural, substituída pela de um permanente estado de instabilidade” (Alliez; Lazzarato, 2021, p. 393).

Como narram Dardot, Guéguen, Laval e Sauvêtre (2021), o neoliberalismo se inicia e instala por meio de um golpe de estado extremamente violento, no dia 11 de setembro de 1973, no Chile, dando início a um período ditatorial neoliberal onde se inicia a era na qual se faz a opção pela guerra (2021)6; na tipologia de Hayek, seria melhor um regime autoritário liberal – ditadura – do que uma democracia totalitária – estado social (Chamayou, 2020, p. 331).

Nesse contexto de crises e insegurança generalizada que marca o capitalismo contemporâneo, o Capital opera uma intervenção ilimitada na (e contra a) população, como parte de um sistema de pacificação em que a guerra não pode mais ser vencida. “O capital financeiro transmite à guerra o caráter ilimitado (de sua valorização) fazendo dela uma potência sem limites (uma guerra total)” (Alliez; Lazzarato, 2021, p. 20).

Enquanto os espaços e as redes da vida urbana são colonizados por tecnologias de controle militar, e as noções de guerra e de manutenção da ordem, de território interno e externo, de guerra e de paz, tornam-se cada vez mais indistintas, constata-se a ascensão do poder de um complexo industrial que engloba a segurança, a vigilância, a tecnologia militar, o sistema carcerário e de punição e o entretenimento eletrônico. (Graham apud Alliez; Lazzarato, 2021, p. 362).

É neste sentido que a reflexão dos autores se relaciona com a hipótese de que a expansão do sistema penal e todo seu aparato repressivo de controle do crime opera enquanto máquina de guerra do capital, em um formato de guerra militarizada contra o inimigo, que não é mais o comunista subversivo, mas a população marginalizada, marcada por vulnerabilidades e negações a uma vida digna, a quem recai um controle truculento pelo aparato de segurança pública, que resultam no encarceramento em massa. “O inimigo deixou de ser primordialmente o Estado estrangeiro e tornou-se o ‘inimigo indetectável’, o ‘inimigo desconhecido’, um ‘inimigo qualquer’, que se produz e reproduz no interior da população” (Alliez; Lazzarato, 2021, p. 341).

Assim, foi feita a escolha pela guerra civil, desde que a guerra externa e a Guerra Fria passaram a não ser mais uma opção para aquecer a economia, uma das remodelações do período neoliberal foi a opção pela guerra permanente, contra a população, contra a sociedade (Dardot; Guéguen; Laval; Sauvêtre, 2021), como se pode verificar em um dos sentidos da ampliação dos gastos de segurança pública no estado de Santa Catarina.

Gráfico 2:

Gastos com a função Segurança Pública: subfunção policiamento, no estado de SC, de 2010 a 2020

[CHART]

Fonte: FBSP (2010 - 2020).

No Gráfico 2, acima, verifica-se uma flutuação/variação no investimento policiamento, que também denota investimento em aparato policial, como tem se verificado na literatura acerca do tema (Soares, 2019; Lemgruber; Musumeci; Cano, 2003), tem se dado eminentemente para o policiamento ostensivo. Sua variação tem diversas possibilidades, tais como a alternância de orientações políticas, mais ou menos voltada para um estado policial ou de valorização da atividade policial (o que tem significados distintos). De todo modo, verifica-se que no recorte adotado, parte-se (em 2010) de um valor de menos de 50 milhões de reais em investimento policial, chegando, em 2018, a quase 300 milhões de reais/ano em investimento policial, novamente voltando a diminuir a um patamar de aproximadamente 150 milhões de reais, no ano de 2020.

Pode-se verificar que o sistema penal e o aparato de segurança pública brasileiro funcionam deste modo, não somente como reguladores da reprodução do capital e da contenção dos excluídos, conforme estipulava a clássica contribuição da Economia Política da Pena – e como Hirsch (2010) chamou, a sociedade liberal era a sociedade do soldado e do coletor de impostos – ou seja, uma sociedade baseada no controle militar e por meio da dívida, aqui neste caso, em uma polícia com amplo investimento e interesse econômico, voltado sobretudo para controle e intervenção em situações e distúrbios de rua, ou seja, das chamadas classes inferiores como amplamente já se tem documentado na literatura criminológica.

Talvez só tenhamos entendido o significado da dívida como forma de controle no atual momento neoliberal, em que a dívida se apresenta como uma potente fórmula de controle de domínio e em violência (Lazzarato, 2017).

Entretanto, a sociedade (neo)liberal não se apresenta somente sob a face da tolerância zero, do soldado e da violência institucional, mas sim também pela face da eficientização, pela via da maximização dos resultados e minimização dos custos; um estado eficiente em uma economia baseada na intervenção para o mercado, um estado como próprio agente de expansão do capital, onde a segurança se torna mercadoria e a liberdade, uma commodity, pois é a partir de sua atuação que muitos negócios serão gerados.

Nesse sentido, pode-se identificar a ampliação dos gastos com segurança pública em Santa Catarina, e o salto do gasto com tecnologia praticamente inexistente e repentinamente (2019) se torna um vértice extremamente significativo de investimento/gasto (onde se inserem a atenção e o interesse econômico sobre a segurança enquanto ativo econômico).

Gráfico 3:

Gastos com a função Segurança Pública: subfunção informação e inteligência, no estado de SC, de 2016 a 2020

[CHART]

Fonte: FBSP (2010-2020).

O Gráfico 3, acima, demonstra que, até pouquíssimo tempo, a subfunção (para fins de investimento público) informação e inteligência no estado de Santa Catarina, há menos de uma década, não chegava a 2 milhões de reais de investimento, enquanto, num dado momento, de 2019 em diante, explode em investimento, passando a quase 50 milhões de reais, o que pode denotar e permitir diversas interpretações, e talvez todas elas sejam parcialmente válidas. Sendo uma delas a questão de que a investigação enquanto função policial seria mais relevante, do ponto de vista de fornecimento de segurança (ao contrário simplesmente de concentrar policiamento eminentemente em função ostensiva). Entretanto, o que não se pode deixar de fora é a descoberta de um mercado de interesses privados que, no neoliberalismo, encontraram no uso da tecnologia um amplo espaço de investimento/gasto para exploração mercadológica, transformando a segurança num amplo espaço de negociação econômica e, portanto, permeado por interesses empresariais.

Dessa forma, além de promover a manutenção do encarceramento em massa e não diminuir os índices criminais e a insegurança social, este modelo de política criminal opera enquanto máquina de guerra do mercado neoliberal, criando um solo fértil para transformar o direito à segurança em um negócio muito lucrativo aos atores econômicos, em uma interminável guerra contra a população.

O que obviamente redunda em um desinteresse em políticas de desencarceramento e de diminuição do pânico social, na medida em que o agigantamento da estrutura punitiva e toda a violência que esta acarreta se apresenta enquanto possibilidade de extração de lucros e dividendos para o setor econômico; o que se pode verificar no Gráfico 4, abaixo, que demonstra o aumento (estável) mas incessante de gastos com segurança pública enquanto segurança nacional, como política de estado, entre 2010 e 2020.

Gráfico 4:

Gasto nacional bruto/ano, na função Segurança Pública, de 2010 a 2020

[CHART]

Fonte: FBSP (2010-2020).

Muito embora se verifique uma variação na subfunção policiamento (ainda que seu aumento seja claro), no gênero segurança pública em nível nacional se identifica uma constante ampliação, passando de R$ 40 bilhões/ano para quase 60 bilhões de reais por ano (2020), e que não tem representado maior segurança, mas sim mais ostensividade seletiva e direcionada a segmentos específicos. Assim, na esteira proposta por Eric Alliez e Maurizio Lazzarato (2021), a grande mudança operada pelo neoliberalismo, e que faz da atualização da crítica da economia política fundamental, para que se possa compreender a realidade concreta contemporânea, é a constituição da dinâmica econômica não só num dos pilares da organização social, mas numa ferramenta de controle pela violência enquanto mecanismo econômico de acumulação. A isso que chamam de máquina de guerra dentro de uma megamáquina, que é o sistema social. Assim, escrevem: “é a guerra pelo lucro, pelo dinheiro, pelos recursos naturais, pela dominação dos povos” (Alliez; Lazzarato, 2021, p. 13-14). Esse é o contexto em que a máquina de produção não mais se diferencia da máquina de guerra.

Nesta linha, a atualização da economia política da pena e da prisão, com a qual já se vem trabalhando (Leal, 2021), se apresenta fundamental, na medida em que a finalidade tradicional da guerra é a anulação do outro, do adversário, do inimigo, e com a máquina de guerra (neoliberal), com a hegemonização da guerra civil contra as populações, o objetivo não é a anulação do inimigo, mas um discurso de estabilização – uma permanente necessidade de estabilização e segurança pública – e que nada mais é do que a economia política do indivíduo/exploração na qual é inserido, em um ciclo interminável de acumulação por espoliação (Chamayou, 2020). Assim se verifica a curva crescente do gasto com a subfunção reintegração social.

Gráfico 5:

Gastos nacionais com Custódia e Reintegração Social, de 2010 a 2020

[CHART]

Fonte: FBSP (2010-2020).

O Gráfico 5 demonstra quase que obviamente uma segurança pública voltada para o policiamento ostensivo, de rua, que ocasiona o que se tem denominado de superencarceramento, também já demonstrado por gráfico do Depen, o que resulta na dinâmica também crescente (ainda que não proporcional) do gasto do grupo reintegração social, ou seja, manutenção das instituições prisionais.

A desproporcionalidade com que se amplia a população prisional e o déficit de vagas e investimento são parte da deterioração das condições de vida na prisão, além de constituírem razão/explicação de inserção do capital privado (que se defende como mais eficiente – na lógica da eficiência em custos) em detrimento de diminuição da participação pública. O que tem sido a tônica neoliberal a justificar a abertura de mercados antes inexistentes, tais como a segurança, e mais recentemente o ingresso do capital privado nas instituições prisionais, mas, mais que isso, a entrada dos interesses privados na lógica de gestão das prisões (Leal, 2021).

Assim, a reintegração social e o investimento na prisão nada mais são do que a manifestação do imperativo de não eliminar, mas, ao contrário, manter o indivíduo na lógica da exploração, na dinâmica da máquina de guerra, pois a própria lógica de funcionamento se constitui em um processo de expansão do capital por meio da máquina de guerra, que permite o processo de exclusão (antigo) e agora também de exploração.

E ainda que não obstante se mantenha a denominação reintegração social, esta cada vez mais se apresenta como uma quimera absolutamente inatingível, sobretudo a partir do momento em que o cárcere e a segurança se tornaram mercadorias e o aprisionamento, uma empresa, na qual a instituição prisional e a segurança pública são seus vetores de desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A título de considerações finais, o presente trabalho busca contribuir para uma análise concreta da realidade atual acerca do encarceramento, especificamente dando uma abordagem para a realidade do estado de Santa Catarina.

Dentro desse mote, realiza-se uma abordagem desde a crítica da economia política, pensando a realidade criminal, a política criminal, a segurança pública e o encarceramento em massa, a partir do contexto neoliberal, com vistas a fornecer aportes teóricos e empíricos para alargar e aprofundar a interpretação e o entendimento acerca do período e da lógica em que estamos inseridos e submetidos.

Nesse sentido, foram apresentados dados sobre a questão econômica na segurança pública e sobre como esse elemento agrega imensa importância para se pensar a realidade e a política de encarceramento no período atual, que precisam ser interpretadas no contexto em que estão situadas, no qual a financeirização da economia é fundamental para a lógica e o funcionamento social neoliberal.

Tendo-se buscado demonstrar como o fenômeno do encarceramento, assim como a dinâmica da segurança pública, se insere em uma transformação mais abrangente de caráter neoliberal, em que ganha grande significação econômica e aporte financeiro, transformando a prisão e a polícia em verdadeiras franquias para a máquina de guerra em sua expansão de capital, na qual o indivíduo, a liberdade e o trabalho se constituem em commodities que alimentam essa megamáquina social.

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  1. O Labeling Approach se constitui enquanto uma corrente de pensamentos que serviu como transição do paradigma etiológico para a moderna criminologia crítica. Nas palavras de Alessandro Baratta (2011, p. 101): “O surgimento do labeling approach na sociologia criminal, não só do interior da literatura específica, mas também de outros setores da moderna sociologia, influenciaram não pouco sobre o deslocamento do ponto de partida, do comportamento desviante para os mecanismos de reação e de seleção da população criminosa”.↩︎

  2. Importante ressaltar que o surgimento deste novo campo criminológico não implica a superação dos pressupostos postos pelas criminologias clássica e positivista, até porque a história não é dotada de uma linearidade que substitui uma teoria por outra nova. Assim, o positivismo e o classicismo criminológico perduram no tempo, reinventando-se potencialmente a partir das transformações da nova organização capitalista neoliberal.↩︎

  3. Nesta senda, é importante trazer a ressalva feita por Zaffaroni (1988), em seu livro Criminología: aproximación desde un margen, onde o autor alerta que o processo de acumulação capitalista e as funções desempenhadas pelo sistema penal não se deram da mesma forma em toda a Europa, e ainda que este contexto é composto por maior complexidade, envolvendo uma série de conflitos, inclusive com a nobreza, que lutava para manter a hegemonia de seu poder.↩︎

  4. Nas palavras da autora: “o eficientismo, em rigor, é um modelo-movimento de controle penal ideologicamente vinculado à matriz neoliberal (e ao consenso de Washington), em que a contrapartida da minimização do Estado social é precisamente a maximização do Estado penal e à qual devemos remontar para compreender seu inequívoco significado político funcionalmente relacionado à conservação da ordem social” (Andrade, 2012, p. 290).↩︎

  5. Outra tese fundamental para compreender a guerra enquanto elemento central da economia é a de que existe uma multiplicidade de “guerras”, no plural, guerras estas que vão além do modelo militar. Conforme os autores, estas guerras são travadas em diversas dimensões da vida social, constituindo a guerra de raça, de gênero, de nacionalidade, de classe, a guerra ecológica, etc. “As guerras, e não a guerra: eis a nossa segunda tese. As guerras como fundamento das ordens interna e externa, como princípio de organização da sociedade; as guerras, não somente de classe, mas também militares, civis, de sexo, de raça” (Alliez; Lazzarato, 2021, p. 16).↩︎

  6. Como diria Von Mises: “todas as tropas são fiéis ao governo” (Dardot; Guéguen; Laval; Sauvêtre, 2021, p. 107).↩︎