Mídia, fake news e racismo: o punitivismo dos boatos como legitimador da violência
Autor: Edson Mendes Nunes Júnior
Mini-bio: Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Graduado em Ciência Política pela UNIRIO e em Relações Internacionais pelo Centro Universitário IBMR.
Titulação: Doutorando
País: Brasil
Estado: Rio de Janeiro
Cidade: Rio de Janeiro
E-mail de contato: edsonmendes@id.uff.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8512-7454
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo investigar a relação existente entre a viralização de notícias falsas, amplamente conhecidas como fake news, e o racismo institucionalizado no Brasil. Percebemos, assim, como a construção da imagem do “bandido” associado a pessoas negras relaciona-se com a destruição da memória do indivíduo, buscando legitimar a ação violenta para restabelecimento de uma suposta “ordem”. Entendemos que, para além da atuação punitivista existente na imprensa tradicional, existe a forma não oficial de mídia, atuante nas redes sociais, que, como expressão da ideologia dominante na sociedade, cria boatos para justificar excessos e violências contra negros no país de forma sistematizada. Recuperamos, assim, autores como Evgeni Pachukanis, Loic Wacquant e Marielle Franco para uma discussão sobre Direito Penal, Estado Penal e militarização de corpos e espaços periféricos. Apresentamos, ao final, alguns casos concretos que possibilitam perceber uma ação contínua, em mesmo modus operandi, para destruir a memória de corpos negros e periféricos vítimas de violência.
Palavras-chave: Fake News. Mídia. Racismo.
Media, fake news and racism: the punitivism in rumors as a violence's legitimiser
Abstract
This article aims to investigate the relation that exists between the propagation of fake news and the institutionalized racism in Brazil. We realized that the construction of the criminal’s image, associated to black people, relates to the destruction of the individual’s memory, seeking a violent act’s legitimation to restore an alleged “order”. Beyond a punitivist activity in the mainstream media, there is a non-official form of media that acts in the social media that, as an expression of the dominant ideology in society, creates rumors to justify excesses and violence against blacks and poor people in a systematic way. Authors as Evgeni Pachukanis, Loic Wacquant and Marielle Franco helps us to initiate a discussion about Criminal Law, criminal State and peripherals bodies and spaces “militarization”. Finally, we present some concrete cases that allow us to notice a continuous action, in the same modus operandi, regarding the destruction of black and marginalized victims of violence’s memory.
Keywords: Fake News. Media. Racism.
DOI: https://doi.org/10.31060/rbsp.2021.v15.n1.1122
Data de recebimento: 23/03/2019
Data de aprovação: 16/06/2020
INTRODUÇÃO
As ações policiais no Estado do Rio de Janeiro tornaram-se cada vez mais intensas, especialmente com relação aos homicídios resultados dos antes chamados “autos de resistência”, quando é afirmado, pelo policial, que este agiu em legítima defesa. Os dados do Instituto de Segurança Pública (2018), por exemplo, demonstram que os “homicídios decorrentes de oposição à intervenção militar”, nomenclatura utilizada atualmente, comparando os meses de janeiro de 2017 e janeiro de 2018, tiveram um aumento de 57,1%.
Unindo-se a essa questão alguns fatores, com relação aos inquéritos gerados por tais homicídios cometidos por policiais: os chamados autos de resistência estão associados, geralmente, a pessoas de baixa renda; a versão dos policiais sobre os casos prevalece, especialmente ao se tratar de vítimas que já tiveram envolvimento com crimes anteriormente; muitos dos inquéritos são desvalorizados ou até mesmo ignorados, pela lentidão e burocracia (NASCIMENTO; GRILO; NERI, 2009).
Este trabalho espera, através de sete casos apresentados ao longo do artigo, acrescentar ao debate uma perspectiva sobre a necessidade de abordar as chamadas fake news – notícias falsas –, em articulação com o racismo institucionalizado, encarnado não só coercitivamente, pela violência que atinge, em maior parte, o povo pobre e preto, mas também pela criminalização da história e da memória de pessoas marginalizadas. Ou seja, a hipótese aqui apresentada pode ser resumida em: o desenvolvimento das fake news no Brasil relaciona-se com um histórico racista e punitivista presente na mídia – oficial e não oficial – brasileira, sendo, portanto, uma forma de manutenção de status quo, legitimação da morte de certos grupos na sociedade e perpetuação de ações como linchamentos e “justiça com as próprias mãos” vindas da própria população contra uma categoria de indivíduos classificados, independente de existir condenação ou provas, como “bandidos”.
O objetivo do trabalho, portanto, é realizar uma discussão sobre a forma como a violência policial que resulta em homicídios se relaciona com a culpabilização da vítima, focando no papel exercido pelas fake news, devido, em muitos casos, a um histórico de racismo estrutural presente na sociedade brasileira. Tal fator leva à ideia de que somente a desmilitarização da polícia e a denúncia de operações violentas não bastam para uma modificação infraestrutural na segurança pública, mas torna-se igualmente necessário recuperar a memória das vítimas que tiveram suas histórias difamadas e caluniadas.
Como metodologia, optamos por uma análise qualitativa das fake news que surgiram acerca dos sete casos concretos apresentados. Utilizamos, assim, reportagens de websites de jornais voltados para desmentir informações veiculadas pela internet, como o boatos.org1 e o e-farsas2. Assim, foi possível compreender como eram as notícias falsas vinculadas aos casos, suas semelhanças e diferenças.
O artigo se estrutura, além desta introdução e da conclusão ao final, em três partes: na primeira é realizada uma discussão sobre as relações entre o Estado, o conceito de punitivismo e o racismo; na segunda abordamos a culpabilização da vítima de violência policial, em especial articulando com as chamadas fake news e boatos; a terceira aponta para casos concretos onde o uso de boatos e notícias falsas foi realizado com fins de legitimação da violência e que impactaram, como consequência, a memória sobre essas vítimas.
ESTADO, PUNITIVISMO E RACISMO
A cor de pele aparece como um fator que se destaca em relação às abordagens e suspeitas de policiais no Rio de Janeiro, de acordo com o estudo realizado por Barros (2008). Ou seja, pessoas negras são mais associadas, nessas abordagens, à figura do “inimigo”, do “bandido”. Por exemplo, pretos em carros de luxo tendem a ser mais parados por policiais do que brancos em uma situação semelhante. Com isso, entende-se que, como herança racista do período da escravidão, a forma como uma pessoa branca é tratada pela força que representa o Estado está em desacordo com uma mesma situação envolvendo uma pessoa negra.
Como aponta Clóvis Moura (1994), o negro no Brasil tem seu corpo e sua cultura marginalizados, onde a relação de classes passa a ser compreendida, também, como uma hierarquia de caráter racista. O autor divide o período escravista no Brasil em dois momentos: o escravismo sólido, com relações cristalizadas, onde o escravo negro era o protagonista das lutas contrárias ao sistema; e o escravismo tardio, que representa uma absorção de relações capitalistas no sistema escravista brasileiro, onde brancos, imigrantes e forças favoráveis a um capitalismo dependente passam a lutar pelo abolicionismo. Essa história deixa como legado, por exemplo, um estigma negativo sobre os corpos negros, suas religiões, linguagens e seus aspectos culturais.
A cultura de caráter punitivista é percebida nas políticas públicas vindas de instituições legitimadas da democracia representativa brasileira. Um exemplo são as chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que, no Estado do Rio de Janeiro, continuam caracterizadas por uma atuação fortemente militarizada, de forma repressiva, visando a manutenção de uma sociedade neoliberal moldada pelo lucro da manutenção de uma “cidade-mercadoria” (FRANCO, 2014).
Esse último conceito, o de “cidade mercadoria”, é apresentado por Franco (2014) no sentido de um espaço voltado para o lucro e que precisa passar por uma repressão violenta de populações periféricas visando garantir a atração turística, como, no caso do Rio de Janeiro, receber os grandes eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Desabrigar, expulsar e realizar operações violentas em áreas marginalizadas torna-se, assim, política pública para garantir os interesses de uma classe, cuja infraestrutura volta-se contra seus moradores mais pobres, que são majoritariamente negros. Esse conceito relaciona-se com o apontado por Achille Mbembe (2018), em sua obra Necropolítica, para a existência de uma forma de poder do Estado que atua não só pelo controle dos corpos e da vida de indivíduos – nos marcos da teoria foucaultiana –, mas também pelo domínio sobre a morte de alguns corpos. De acordo com o autor, é a raça, como conceito político, que irá entrelaçar a tensa relação entre o biopoder, o Estado de exceção e o Estado de sítio. Através dela, portanto, ocorre a distribuição de mortes legitimadas pelo Estado no exercício de sua soberania.
São os territórios de favela, periféricos, já estigmatizados pelo racismo estrutural da sociedade, que passam a ser lugares de legitimação da ação violenta do Estado. Junto de iniciativas de militarização desses lugares (FRANCO, 2014), compreende-se que a própria população passa a reproduzir, em certos aspectos – através, por exemplo, das redes sociais – o pensamento racista e positivista. Afinal, como apontam Karl Marx e Friedrich Engels (2007), a ideologia da classe dominante é, também, a ideologia dominante, devido ao seu domínio sobre as condições materiais.
Um exemplo dessa reprodução é a prática do linchamento, estudada por José de Souza Martins (2015) em sua obra Linchamentos: a Justiça Popular no Brasil. Dados sobre a prática de realizar “justiça com as próprias mãos”, ou seja, uma violência legitimada pela vingança, são estudados pelo autor e percebidos como um fenômeno predominantemente urbano, que atinge, em sua maior parte – e de forma mais violenta – a população negra. Presente na sociedade como ritual de exclusão de um “personagem estranho” a certa estrutura social, o linchamento expõe o aspecto do racismo presente no inconsciente coletivo brasileiro, através de uma ação violenta para reestabelecer a “ordem”.
Dessa forma, compreendemos que há dois aspectos no campo da memória que estão presentes na legitimidade motivadora para linchamentos em uma sociedade: um reacionário, representando o retorno a um suposto ordenamento social; e um punitivo, visto que busca exterminar o indivíduo, caracterizado por uma forte violência que se torna exemplo para outros e que busca eliminar o “estranho" da memória social daquela população. Sobre este segundo ponto apontado por nós, podemos citar a forma violenta dos linchamentos relatada por Martins (2015):
A violência coletiva se manifesta entre nós, sobretudo nos linchamentos praticados, não raro, por multidões. Violência quase sempre cruel, expressão de uma concepção fundante do que é o humano e do que não o é entre nós, é marcada por uma grande diversidade de procedimentos violentos, que vão da perseguição à vítima, seu apedrejamento, pauladas, socos e pontapés, à sujeição física, ao arrastá-la, mutilá-la e queimá-la, mesmo estando ainda viva. (MARTINS, 2015, p. 113).
Michael Pollack (1989) entende a memória como um campo em disputa, onde, por um lado, haveria a memória oficial e, por outro, as memórias subterrâneas e marginalizadas. Muitas vezes, essa relação estaria marcada por dominações e clivagens sociais, tornando o silenciamento de memórias subterrâneas uma necessidade para a continuidade da hegemonia do que é apontado como verdadeiro pelo grupo dominante.
Voltando ao papel do Estado na questão, Loic Wacquant (2007) realiza uma discussão acerca da relação entre a ascensão de um Estado neoliberal, sustentado por políticas de austeridade, e o encarceramento em massa, em especial focado na população negra. Apesar de voltado para os Estados Unidos, compreendemos que os apontamentos realizados pelo autor são relevantes para o debate acerca da situação concreta brasileira, visto o racismo institucionalizado exposto anteriormente. A política de encarceramento no Brasil, por exemplo, encontra-se em uma situação onde 67% das pessoas privadas de liberdade são negras, enquanto a proporção de negros na população é de 51%, conforme levantamento realizado em 2014 (MOURA; RIBEIRO, 2014).
É o Direito Penal, como demonstrou o jurista soviético Evgeni Pachukanis (1988), que acaba sendo representante do direito como um todo, visto que é a parte do Judiciário que atinge diretamente a vida e a liberdade da população, tendo as consequências mais diretas em sua realidade concreta. Por isso, compreender o sistema de punições, em especial o sistema carcerário, é fundamental para uma análise da criminalização da pobreza, característica do que Wacquant (2007) chama de “Estado Penal”.
De todos os ramos do Direito é justamente o Direito Penal aquele que tem o poder de tocar mais direta e brutalmente a pessoa individual. Eis porque o Direito Penal sempre suscitou o maior interesse prático. A lei e a pena que pune a sua transgressão estão, em geral, intimamente unidas entre si, de tal maneira que o Direito Penal desempenha, por assim dizer, muito simplesmente, o papel de um representante do direito: é uma parte que se substitui ao todo. (PACHUKANIS, 1988, p. 118).
Além disso, é apontado que a fé em um Estado Jurídico, com atuação forte do Judiciário e das forças policiais, passa a ser interessante para a classe dominante como uma ideologia dominante que substitui, de certo modo, a queda de narrativas religiosas tradicionais (PACHUKANIS, 1988). Através dele, portanto, a população encontraria o referencial de ordenamento e legitimidade.
Compreendemos, portanto, o ritual do linchamento, exposto por Martins (2015) como constantemente presente na sociedade brasileira, como o braço não oficial dessa mesma lógica punitivista. A visão do corpo negro como principal alvo é percebida como resquício da época da escravidão, em especial do escravismo tardio – onde se misturou o escravismo com aspectos do modo de produção capitalista –, e é evidente até os dias atuais. Ações de reação a essa situação ascendem com a busca da construção de uma cultura negra, recuperando sua ancestralidade e revertendo a visão dominante sobre a negritude (MOURA, 1994). Com a militarização de territórios habitados majoritariamente por negros, existe também uma disputa em questão, muitas vezes escondida por trás de um discurso “conciliador”:
A forma como a polícia militarizada do Brasil trata jovens negros, pobres, como inimigos em potencial do Estado de Direito, precisa produzir uma impressão, na população, de que está em jogo a defesa de todos. Ou seja, produz no imaginário social a diferenciação de classe e a diferenciação racial, uma vez que são justificadas as incursões que vitimam o público descrito acima. (FRANCO, 2014, p. 41).
É intensa, dessa forma, a relação de uma parte da população com o Direito Penal e as forças policiais no Brasil. A militarização da polícia auxilia ainda mais o funcionamento dessa lógica, gerando para a própria corporação um preparo para a guerra, vendo corpos que habitam a favela como passíveis de consequências letais (FRANCO, 2014). A necropolítica evidencia-se como a própria política pública de Estado pelo seu reflexo na própria “justiça social” violenta à qual recorre a população, inclusive em regiões marginalizadas3 (MBEMBE, 2018). Por isso, investigaremos na próxima seção atores relevantes na propagação desse imaginário social, de onde se estabeleceria a memória oficial, nos marcos do exposto por Pollack (1989).
CULPADO ATÉ QUE SE PROVE O CONTRÁRIO: O RACISMO PELA MÍDIA E PELAS FAKE NEWS
Busca-se, nesta seção, discutir a forma pela qual se constitui o imaginário, em especial na mídia, que legitima a discussão realizada anteriormente. Da mesma forma que o linchamento aparece como a forma não oficial de punição, entendemos que as fakes news atuam de forma não oficial para propagar o racismo e o punitivismo já existentes na mídia tradicional4. Com isso, espera-se desenvolver uma discussão sobre alternativas possíveis para romper com uma tradição moldada por um legado de racismo estrutural que entende a violência estatal que atinge um, no geral das favelas, mas não limitados a estes, como justificável.
Muniz Sodré (2006), em sua obra As estratégias sensíveis, trata do uso dos afetos, que se transformam em meio de atração para a ideologia, pela mídia, através do uso massivo de imagens e símbolos rápidos, que substituem os próprios conteúdos das mensagens transmitidas. Principalmente ao se tratar de informações que seguem as ideias hegemônicas em uma sociedade, e, como vimos, tendem a ser dominantes em toda a população (MARX; ENGELS, 2007).
A própria estética, movida por uma forma afetiva, leva às fantasias e emoções excitadas pelos poderes midiáticos que produzem ou legitimam uma identidade coletiva comum, por um lado, e um controle social, por outro. Este último aspecto é intensificado pela facilidade em moldar ações emotivas, como lágrimas, riso ou medo, de forma fácil com o uso de imagens e símbolos (SODRÉ, 2006).
Há, assim, uma mistura dialética entre realidade e imagem, que se torna uma forma de relação social, com impactos concretos na forma pela qual as pessoas formam sua subjetividade na chamada sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997). Este espetáculo, portanto, insere-se no contexto brasileiro de um Estado que busca a punição e a repressão, como já discutido anteriormente, visando uma “cidade mercado” neoliberal, e, para além disso, uma sequência lógica estruturalmente racista, que resulta no encarceramento e na morte de negros e pobres (WACQUANT, 2007). No Brasil, a culpabilidade, diante de uma falta de contestação de versões oficiais, é também comum: “A tendência à antecipação da culpabilidade do morto implica na necessidade de os familiares comprovarem a sua inocência, mediante, por exemplo, a apresentação de carteira de trabalho assinada ou boletim escolar com boas notas.” (NASCIMENTO; GRILLO; NERI, 2009, p. 28).
O uso da mídia tradicional, em programas sensacionalistas, para incentivar a construção da imagem do “bandido” como a figura periférica, em grande parte das vezes negra e merecedora de penas brutas, chegando a pedidos por aplicação da pena capital, é exposto por Davi Romão (2013). O autor entende que o jornalismo policial exercido por programas televisivos como Cidade Alerta ou Balanço Geral geram um sentimento de conformismo com a situação social desigual e fomentam o medo e o ódio como afetos dominantes nas relações sociais. Existe, assim, a construção de um inimigo, o “bode expiatório”, que é preciso eliminar para curar o ordenamento da sociedade.
Este processo de construção do bode expiatório permite, assim, que toda a raiva proveniente de nosso sistema social seja dirigida para um local que não afete em nada a estrutura desse mesmo sistema, protegendo as suas bases. Ao mesmo tempo, o discurso de ódio contra os criminosos, os quais, via de regra, são homens, jovens, pardos e pobres, confunde-se com preconceitos de classe e de raça presentes em nossa sociedade, atualizando-os e reforçando-os. Por outro lado, a demanda por policiamento mais forte e por leis mais severas, combinada com a postura conformista que os programas alimentam, parece indicar a demanda por um Estado autoritário e violento, que coloque a sociedade em ordem de cima para baixo, utilizando-se abertamente de violência e desrespeitando direitos humanos quando necessário. (ROMÃO, 2013, p. 199).
No entanto, o aumento do uso das novas tecnologias para o mesmo fim também precisa ser discutido dentro da lógica dominante, como Romão (2013) também discute em uma ressalva sobre a internet. Jean Wyllys (2015), em seu texto Formas de temer, formas de reprimir: as relações entre a violência policial e suas representações nas mídias, aponta para a relevância que as redes sociais adquiriram como propagadoras de discursos violentos, cruéis, mentirosos e difamadores, dando espaço para grupos praticarem o ódio e propagarem o medo de forma mais discreta e com alto alcance.
É nesse contexto onde inserem-se as fakes news5, definidas como notícias intencionalmente falsas que se espalham objetivando levar desinformação e enganar o público. Analisando a presença desses boatos na eleição estadunidense de 2016, entre Donald Trump e Hillary Clinton, os autores Vian Bakir e Andrew McStay (2018) indicam três aspectos onde as fakes news são uma ameaça democrática e social. Primeiro, pela capacidade de dificultar o acesso do cidadão a informações. Segundo, passa a existir, dentro da sociedade, um grupo de pessoas, echo chambers6, que recebe as notícias falsas e torna-se comunicador e propagador desses mesmos boatos. Em terceiro, por fim, está a importância dos afetos da raiva e do medo provocados por muitas das falsas informações existentes nas fake news. Articulando-se, portanto, através do medo e do ódio, as notícias falsas adentram, no Brasil ainda marcado pelo racismo institucionalizado, o terreno da disputa de memória (POLLACK, 1989) para validar a memória oficial mesmo que, para isso, precise difamar e caluniar pessoas periféricas e negras que já não estão em condições de se defenderem.
CASOS CONCRETOS
Serão recuperados, aqui, sete exemplos marcantes da propagação de notícias falsas que legitimaram a ação policial e/ou buscaram destruir a memória de corpos negros vítimas de uma violência institucionalizada, realizada de forma oficial ou não oficial, nos marcos da ideologia dominante. Assim, será possível compreender as semelhanças nos casos e o interesse existente em corromper o imaginário social que poderia gerar uma comoção generalizada diante dos fatos. Percebemos, através dela, a disputa de memória sobre as vítimas, negras e/ou que habitam locais periféricos, de população majoritariamente negra.
O dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira, conhecido como DG, foi assassinado em abril de 2014 na comunidade Pavão-Pavãozinho em Copacabana no Rio de Janeiro. Como demonstrou o laudo da polícia, os tiros que executaram o jovem de 26 anos partiram da arma de um militar7. O caso foi marcado pela presença, nas redes sociais, de fotos de um jovem segurando um fuzil, que foram divulgadas como se fossem o DG. Além de estar presente no Facebook e no Whatsapp, a fake news foi reproduzida em 168 sites e, inclusive, em um grupo intitulado “Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro”. Vale destacar que, antes da propagação dos boatos, conforme aponta reportagem do Jornal Extra8, um laudo oficial da perícia local não havia constatado que Douglas teria levado um tiro, o que foi desmentido somente após a divulgação de uma foto mostrando as marcas de tiro nas costas do jovem pelo jornal.
No dia 2 de abril de 2015, Eduardo de Jesus Ferreira foi assassinado, aos 10 anos de idade, durante uma operação policial no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro. Um inquérito revelou que o menino foi assassinado na porta de casa, por tiros que partiram da arma de policiais militares. Pela justificativa de que Eduardo estaria “na linha de tiro”, as investigações concluíram que os agentes do Estado atuaram em legítima defesa9. Nas redes sociais, viralizaram fakes news com fotos falsas onde um jovem aparece jogando pedras em policiais do BOPE10.
Carregando um saco de pipoca, Jonatha Dalber Mattos Alves, de 16 anos, foi assassinado com um tiro na cabeça, disparado pelas costas do jovem, por um policial, de acordo com a investigação realizada pelo Ministério Público. No caso, ocorrido no Morro do Borel, no Rio de Janeiro, a versão do policial de que Jonatha havia apontado uma arma para ele ficou contestada pelo fato de que nenhuma arma foi encontrada com a vítima11. Imagens de um traficante com armas passaram a ser compartilhadas, especialmente pelo Whatsapp e Facebook, como se representassem Jonatha. A informação era falsa, visto que as fotos eram de outra pessoa12.
O jovem de 17 anos Eduardo Felipe Santos Vitor, que tinha envolvimento com o tráfico de drogas, foi assassinado no dia 29 de setembro de 2015 no Morro da Providência13 no Rio de Janeiro. Todavia, o caso ganhou alta repercussão com a divulgação de um vídeo onde policiais militares aparecem forjando um auto de resistência, colocando uma arma na mão de Eduardo, quando este já estava morto, para fingirem que houve uma espécie de confronto14. Passou a ser compartilhada, na internet, uma foto de homens armados em uma moto, com um texto afirmando que um deles era Eduardo Felipe. A foto, na realidade, era de 2010, quanto o jovem teria apenas 12 anos e, por isso, não poderia ser o mesmo da foto15.
Em 30 de março de 2017, Maria Eduarda Alves Ferreiras, de 13 anos, foi baleada dentro de sua escola na Zona Norte do Rio de Janeiro, na favela de Acari, levando-a à morte. Um laudo da perícia confirmou que um dos tiros que atingiu a jovem partiu da arma de um Policial Militar. Nesta mesma operação, há a gravação de um vídeo onde é possível ver policiais matando criminosos que já estavam detidos na porta da escola16. Foram espalhadas nas redes sociais fotos de uma menina com um fuzil, com textos que mentiam ao afirmar que, na imagem, era Maria Eduarda17.
Em outro caso onde as notícias falsas se destacam, está a execução da vereadora Marielle Franco – negra, LGBT, defensora dos Direitos Humanos e crítica dos excessos durante intervenções de forças policiais no Rio de Janeiro – no dia 14 de março de 2018, na Zona Central do Rio de Janeiro. Após seu assassinato, diversas mensagens falsas se espalharam nas redes sociais, associando-a a facções criminosas ou questionando sua moral a partir da informação falsa de que Marielle teve uma filha aos 16 anos. Dentre as principais mensagens espalhadas, está uma imagem onde tentam apresentá-la como “esposa do traficante Marcinho VP”, em uma foto em que a mulher da imagem não é nem ao menos fisicamente parecida com Marielle18. Algumas das fake news sobre a vereadora foram reproduzidas por um pastor evangélico e subtenente da Polícia Militar de Arraial do Cabo, por uma desembargadora e por um deputado federal19, que auxiliaram, dessa forma, na amplificação do alcance desses boatos.
Marcus Vinicius da Silva20 foi assassinado na Maré, no Rio de Janeiro, aos 14 anos de idade, no dia 20 de junho de 2018. De acordo com testemunha, o tiro que atingiu Marcus teria partido do blindado utilizado por policiais, conhecido como “caveirão”. O menino utilizava seu uniforme escolar no momento da execução21. Dias depois de sua morte, já viralizava uma montagem onde, de um lado, aparecia uma foto de Marcus Vinicius e, de outro, um menino – mais musculoso e diferente de Marcus – portando uma arma22.
Dentre os aspectos comuns presentes nos casos narrados anteriormente, estão: as vítimas são majoritariamente negras ou pardas; as vítimas habitavam, frequentavam ou vinham de áreas de favelas, periferias; as pessoas foram mortas ou violentadas de forma violenta, onde as forças policiais ou o Estado poderiam ser culpabilizados de algum modo por sua execução, seja por ação direta ou por omissão. O caso de Marielle evidencia, ainda, um aspecto machista ao serem questionadas a vida pessoal e os relacionamentos da vítima. Já o ocorrido com Douglas Rafael, Eduardo Jesus e Eduardo Felipe revelam, ainda, um conflito de versões entre o que foi divulgado de início pela polícia e a versão de moradores e/ou jornalistas ou a vontade de agentes do Estado em mentir sobre os ocorridos.
Essa é, portanto, uma forma ainda mais intensa de avanço do Direito Penal já abordada por Pachukanis (1988), visto que busca legitimar o que, em princípio, já não é legítimo. Da mesma forma pela qual o linchamento passa a ser a forma de “justiça social” que “restaria” a uma população marcada pela violência e a pena punitiva a solução para os conflitos sociais (MARTINS, 2015). Em conjunto com a ação real de militarização dos espaços periféricos (FRANCO, 2014), a espetacularização da mídia tradicional e o racismo institucionalizado na sociedade, as fake news inserem-se como potencializadoras de ações brutais de agentes do Estado, propagadoras do sentimento de ódio e medo entre a sociedade, legitimadoras do avanço de um Estado Penal – que pode surgir pelo próprio avanço de milicianos como braço não oficial desse Estado – e criminalizantes de corpos e memórias de pessoas consideradas marginalizadas, associadas ao imaginário social do “bandido” na sociedade.
CONCLUSÃO
Se a memória é, de fato, um campo em disputa, conforme apontado por Pollack (1989) e discutido anteriormente, então dificilmente ela estará afastada das contradições do tempo e do local de onde ascende e é acessada. O racismo, como característica inerente da construção do capitalismo no Brasil (MOURA, 1994), está inserido na questão, tendo em vista a ação demonstrada de notícias falsas que buscam legitimar ações violentas contra pessoas negras ou vindas de periferia, em especial no que diz respeito a assassinatos em decorrência de ação policial.
O uso de imagens de outras pessoas, fingindo serem as vítimas dos casos relatados, é uma forma comum de ação das fake news relacionadas aos sete casos analisados. Seu uso para buscar confirmar a versão da “memória oficial” é, como vimos, insistente em meio a contestações possíveis vinda de familiares, moradores de periferias e/ou jornalistas. Dito isso, faz-se relevante refletir sobre os interesses aparentes das notícias falsas e, compreendendo a lógica dos algoritmos e patrocínios dentro das redes sociais, apontar para a necessidade de investigar as forças materiais que potencializam o alcance dos boatos, chegando a repercutir em figuras como um deputado ou uma desembargadora no papel de grandes echo chambers, nos marcos de Bakir e McStay (2018).
Reconhecemos, portanto, a fake news como um outro braço do Estado Penal, que atua de forma não oficial – diferenciando-se da mídia tradicional –, voltando-se para a legitimação de violências que atingem, em especial, corpos negros e pardos de periferias e favelas. Destruir a memória de pessoas marginalizadas cujo Estado encontra-se responsável, direta ou indiretamente, pela violência praticada, através da ação em massa de notícias falsas, em geral espalhando imagens em páginas de Facebook e grupos de Whatsapp, requer organização e disciplina suficientes para que se amplie o alcance das narrativas, rompa-se as limitações de algoritmos e, para além disso, ecoe em uma população que já sofre com uma mídia tradicional de caráter punitivista. A demanda por um avanço do Estado como opressor seria realizada, assim, de forma aparentemente orgânica, quando, na realidade, é constituída de informações inventadas, deturpadas e amplamente repercutidas.
A demanda por “justiça”, que vai desde a contestação de versões oficiais sobre a morte de crianças na favela até os gritos “Marielle Vive”, dentro da política institucional significa, portanto, romper a memória oficial e permitir a ascensão das memórias marginalizadas, nos marcos de Pollack (1989). Diferente de pedidos por avanço de práticas punitivistas, as palavras de ordem contra o genocídio negro nas favelas levantam toda uma história de escravidão e violência resistentes até hoje na sociedade brasileira que constrói seu modo de produção moldado por esse legado. Compreendemos, por fim, a necessidade de debate e preocupação por parte de agentes do Estado sobre o tema, visando planejar políticas públicas capazes de desmentir, com legitimidade, os boatos, além de investigarem as origens e a propagação das fake news que deturpam a noção de justiça e levam ao incentivo de ações vingativas, criminalização de corpos e espaços periféricos e sentimentos punitivistas para a população.
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Disponível em: <https://www.e-farsas.com/sobre>. Acesso em: 16 fev. 2019.↩︎
As relações entre o racismo estrutural na sociedade brasileira, o punitivismo e a chamada necropolítica são exploradas em obras recentes de autores como Silvio Luiz de Almeida (2018), Juliana Borges (2018), Malu Stanchi e João Dias (2018), entre outros.↩︎
Eliane Freitas (2017) ressalta que há esta forma de atuação conjunta para destruir uma reputação ou memória sobre alguém chamada de “linchamento virtual”, especificando sua forma de operar. No entanto, compreendemos que, apesar da relevância do estudo sobre o tema no campo virtual, o termo linchamento refere-se a uma forma ritualística que materializa a violência, com características sociológicas que se expressam na dimensão concreta. Entendemos, todavia, que a ação das fake news como braço do racismo institucionalizado atuante midiaticamente pode, na realidade, ser um incentivo ou facilitador da lógica de linchamento, de realização desta forma de “justiça social”, como aborda Martins (2015). Dessa forma, preferimos apontar as notícias falsas como o braço não oficial da mídia, característica de atuação no campo virtual, sem necessariamente as relacionar com um “linchamento virtual” direcionado a um indivíduo em particular, mas focando no aspecto difamatório e calunioso dessa prática e em suas consequências nas relações sociais brasileiras hoje.↩︎
Apontar a predominância de fake news na internet não significa, todavia, assumir que as informações propagadas na imprensa tradicional sejam, todas, verdades incontestáveis.↩︎
Echo Chambers, como apontam Bakir e McStay (2018), podem ser definidos como pessoas que, ao receberem uma notícia falsa, compartilham e repassam em suas redes, atuando, portanto, de forma ativa para sua proliferação – independente de saberem ou não a veracidade dos fatos.↩︎
Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/03/policia-conclui-que-tiro-que-matou-dg-do-esquenta-foi-dado-por-pm.html>. Acesso em: 17 fev. 2019.↩︎
Disponível em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/dg-do-esquenta-foto-de-jovem-armado-com-fuzil-nao-de-dancarino-morto-12309384.html>. Acesso em: 17 fev. 2019.↩︎
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Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/eduardo-de-coroinha-na-igreja-ao-envolvimento-com-trafico-17658288>. Acesso em: 20 fev. 2019.↩︎
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Disponível em: <https://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,um-dos-tiros-que-atingiu-estudante-em-escola-partiu-de-arma-de-pm,70001728153>. Acesso em: 20 fev. 2019.↩︎
Disponível em: <https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/existe-uma-foto-da-maria-eduarda-portando-um-fuzil-ak-47-nao-e-verdade.ghtml>. Acesso em: 20 fev. 2019.↩︎
Disponível em: <https://www.mariellefranco.com.br/averdade>. Acesso em: 20 fev. 2019.↩︎
Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/03/19/marielle-fake-news/>. Acesso em: 20 fev. 2019.↩︎
Importante ressaltar que, em pesquisas na imprensa, seu nome aparece grafado, algumas vezes, como Marcos, assim como seu sobrenome aparece como Vinícius (ex: < https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/22/politica/1529618951_552574.html >. Acesso em: 20 jan. 2021).↩︎
Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/testemunha-conta-que-estudante-da-mare-foi-atingido-por-disparo-feito-de-blindado.ghtml>. Acesso em: 20 fev. 2019.↩︎
Disponível em: <https://www.boatos.org/brasil/marcus-vinicius-mare-foto-arma.html>. Acesso em: 20 fev. 2019.↩︎