O papel dos Planos Nacionais de Segurança Pública na indução de políticas públicas municipais de segurança

Letícia Fonseca Paiva Delgado1

Secretária de Segurança Urbana e Cidadania de Juiz de Fora/MG. Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais (UFF). Mestra em Ciências Sociais (UFJF). Graduada em Direito. Pesquisadora do INEAC. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Violência e Direitos Humanos da UFJF (NEVIDH-UFJF). Pesquisadora do Núcleo em Sociologia em Direito(UFF).

País: Brasil Estado: Minas Gerais Cidade: Juiz de Fora

Email: leticiapdelgado@gmail.com

Orcid: https://orcid.org/ 0000-0002-3567-3462

Resumo

Partindo da premissa de que municípios brasileiros vêm aumentando seus gastos na área da segurança pública, inclusive com a criação de instâncias para a gestão local da violência urbana, tais como: guardas municipais, secretarias e conselhos municipais de segurança pública (ou instâncias congêneres), o presente artigo tem por principal objetivo identificar de que forma os Planos Nacionais de Segurança Pública induziram (ou induzem) o maior envolvimento municipal neste campo. Tendo como marco inicial a Constituição Federal de 1988 e como marco final a Lei Nº 11.675 de 11 de junho de 2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), o presente trabalho norteia-se pela hipótese central de que a maior participação do município na segurança pública não seria simplesmente decorrência da adesão aos valores que estruturam a concepção de Segurança Pública Cidadã, mas também uma tentativa desses entes de se adequarem às diretrizes trazidas pelas sucessivas políticas nacionais de segurança pública.

Palavras-chave: Política Nacional de Segurança Pública; Sistema Único de Segurança Pública; Município.

The role of National Public Security Plans in encouraging municipal public security policies.

Abstract

Brazilian municipalities have been increasing their spending in the public security field, including the creation of instances for the local management of urban violence, such as: municipal guards, secretariats and municipal public security councils (or similar instances). Given that, the main objective of this article is to identify how the National Public Security Plans have induced (or still induce) greater municipal involvement in this field. Having as its initial mark the Federal Constitution of 1988 and its final mark the law nº 11675 of June 11, 2018, which instituted the Unified Public Security System (SUSP), this article hypothesizes that the greater participation of the municipality in public security is not only a result of adherence to the structuring values of Citizen Public Security concept, but also an attempt by these entities to adapt to the guidelines brought by successive national public security policies.

Keywords: National Public Security Policy; Unified Public Security System; Municipality.

Data de Aprovação: 13/04/2020

Data de Recebimento: 27/10/2021

DOI: 10.31060/rbsp.2022.v.16.n2.1298

Introdução

Pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) entre os anos de 2002 e 2017 mostra que os municípios tiveram um aumento de 258% nos gastos com a segurança pública (FBSP, 2019). Tal aumento superou aqueles indicados para a União e os estados-membros. Enquanto no mesmo período as despesas da União aumentaram 105%, as dos estados variaram positivamente 64%. Em que pese as unidades da Federação ainda arcarem com aproximadamente 80% do total de gastos com a função da segurança pública, o certo é que os municípios estão aumentando o montante dos recursos aplicados na segurança pública.

Schabbach (2014) afirma que desde meados da década de 1990 nota-se uma progressiva responsabilização dos municípios na segurança pública. “Os governos locais passaram a ser atores privilegiados na implementação de programas envolvendo a segurança pública, inclusive daqueles formulados em níveis superiores de governo e descentralizados” (SCHABBACH, 2014, p. 222).

Pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2007; 2010; 2013; 2015; 2020), relativas aos anos de 2006, 2009, 2012, 2014 e 2019, demonstram que várias prefeituras têm se articulado institucionalmente em torno da temática, criando órgãos gestores próprios e instrumentos estatais de planejamento da política de segurança pública, tais como: secretaria municipal, coordenadoria de políticas, conselho municipal de segurança, fundo municipal de segurança, plano muncipal de segurança e a própria guarda municipal. Em relação a esta última, por exemplo, as pesquisas demonstram que entre 2006 e 2019, o percentual de municípios com guardas municipais teve uma variação superior a 7%, passando de 14,1% (IBGE, 2007) para 21,3% (IBGE, 2020).

Embora a criação de tais estruturas demonstre uma disposição política por parte do gestor municipal para investir na área da segurança pública, Peres et al. (2014, p. 145) sinalizam a ausência de padrão na implementação dessas estruturas – “nem sempre município que possui um órgão gestor tem também um conselho, fundo, ou plano. O mesmo serve para a presença das guardas”, o que demonstra a ausência de visão sistêmica da política municipal de segurança.

É certo que a Constituição Federal de 1988 trouxe uma agenda pautada na redemocratização política com descentralização fiscal e federativa. No entanto, esse processo não foi isento de conflitos e contradições. No campo da segurança pública, esse processo tem suas especificidades, em decorrência da centralidade que as instituições policiais, e consequentemente os estados-membros, detêm na área. Apesar de ser uma política social cuja descentralização apresenta contornos específicos, há uma expansão da participação dos munícipios na segurança pública, principalmente nos de médio e grande porte.

Essa expansão, embora gradativa, tem como marco o art. 144 da Constituição Federal, que autorizou os prefeitos a constituirem guardas municipais para cuidar da segurança dos próprios municipais. Desde então, a discussão sobre o papel dos municípios na segurança pública só tem aumentado. “Esse fenômeno demostra a constante preocupação das administrações municipais em atuar nos espaços criados pelas deficiências dos aparelhos estatais de segurança pública, o que se soma aos estímulos que foram produzidos pelo governo federal na forma de repasse de recursos” (JUNIOR; ALENCAR, 2016, p. 26).

A partir do texto constitucional, sobra pouco ou quase nada para a responsabilidade dos municipios quando se trata de segurança pública, focando-se principalmente na constituição das guardas municipais. Contudo, a partir de 2000, os municipios passaram a desenvolver ações mais diretamente voltados para questões de segurança pública, pressionados pelo crescimento das violência e como alternativa para o fato de não poderem interferir no planejamento e tomada de decisões sobre a área. (PERES et al., 2014, p. 142).

Sobre os motivos que impulsionaram a participação dos municípios na segurança pública, Alves (2008) destaca a relação entre poder local e o modelo de segurança cidadã. A autora reforça o papel do território que surge como um lugar estratégico na implementação das políticas públicas, “abrindo espaço para a introdução de novos conceitos e novas práticas de gestão caracterizadas por maior participação dos beneficiários, mais flexibilidade na operacionalização das intervenções, valorização do território como unidade da ação e integração das redes locais” (ALVES, 2008, p. 66). Peres et al. (2014) reforçam a importância da dimensão preventiva na política de segurança pública e o fato da Constituição Federal de 1988 ter atribuído aos municípios a responsabilidade para a gestão dos serviços públicos de interesse local. Assim, o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade depende de que as políticas sejam integradas, com enfoque transversal no ordenamento dos espaços públicos e na prevenção à violência.

O debate sobre a participação do município na segurança pública, como visto, aponta para o reconhecimento das potencialidades do poder local em ações preventivas à criminalidade e das cidades como atores políticos capazes de efetivar mecanismos de participação social mais desenvolvidos. Soma-se a isso o argumento de que a participação do município ocorre em decorrência de sua adesão ao modelo de segurança pública cidadã, por meio da construção de uma política de segurança pública baseada em princípios democráticos, interdisciplinares, humanitários e voltados para a construção de uma cultura de paz (FERREIRA; BRITO, 2010). No entanto, sem prejuízo das justificativas acima, é também necessário identificar qual o papel desempenhado pelo governo federal na indução de políticas municipais de segurança pública.

Peres et al. (2014) afirmam que a década de 1990 inaugurou um momento de inflexão no campo da segurança pública, sendo que várias ações do governo federal podem ser vistas como indutoras de importantes deslocamentos discursivos. Embora citem de forma mais específica as ações de modernização operacional das polícias, os autores afirmam que: “pensar mecanismos incrementais de indução e eficiência nos processos de gestão é uma estratégia de fazer frente aos desafios estruturais postos e, nessa direção, algumas iniciativas importantes têm sido tomadas pelo governo federal desde 1995” (PERES et al., 2014, p. 135).

Barbosa et al. (2008) reconhecem que os instrumentos programáticos e as políticas indutivas do governo federal geraram algumas mudanças no comportamento das administrações públicas estadual e municipal na segurança pública. Os autores, ao apresentarem a experiência de São Gonçalo/RJ, afirmam que um dos exemplos dessas políticas indutivas é a realização de diagnósticos dos problemas locais como condição prévia para que os municípios pudessem receber recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), conforme previsto na Lei Nº 10.746/2003.

Ricardo e Caruso (2007) relatam a experiência de Diadema/SP que, a partir de 2001, teve ações no sentido de construir uma política municipal de segurança pública, o que culminou na elaboração do II Plano Municipal de Segurança Pública. Segundo os autores, o êxito das ações implementadas foi um dos fatores que levou a reeleição do prefeito. Os autores apresentam também a experiência de Recife/PE. Com uma taxa de 95,8 homicídios por 100 mil habitantes no ano 2000, a prefeitura iniciou ações para articular seus programas sociais com foco na prevenção da violência. No ano de 2004, foi elaborado o Plano Metropolitano de Política de Defesa Social e Prevenção da Violência.

Autores como Kruchin (2013), Freire (2009), Soares (2005) e Peres et al. (2014) concordam que uma maior atuação do município na segurança pública seja reflexo de uma tendência de descentralização das políticas públicas, pós-Constituição Federal de 1988. No entanto, são raras as construções que busquem identificar a possível relação entre o movimento do governo federal – política nacional de segurança pública – e aqueles observados em âmbito local.

A hipótese central deste artigo é a de que uma maior participação do município na segurança pública não pode ser considerada simplesmente decorrência da adesão desse ente aos valores que estruturam a concepção de segurança pública cidadã, mas também uma tentativa de se adequar às diretrizes trazidas pelas sucessivas políticas nacionais de segurança pública. Assim, o comportamento do governo federal deve ser considerado como um fator capaz de induzir os governos locais a criarem políticas e dispositivos para a gestão municipal da segurança pública.

De início, é necessário reconhecer que, marcadas por descontinuidades e rupturas (BARBOSA et al., 2008), as tentativas do governo federal de sistematização das políticas de segurança pública são percebidas com certo pessimismo por estudiosos que afirmam o caráter simbólico dos planos. Pesquisa realizada em 2018 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública reconhece que as tentativas de organização, sistematização e indução dessas políticas são marcadas por intermitências, sendo que “alternância programática e descontinuidade são marcas simbólicas do governo federal nas políticas de segurança pública, muitas vezes dentro no mesmo governo ou sob o comando do mesmo partido” (FBSP, 2019, p. 41). No entanto, apesar da incapacidade que o governo federal vem demonstrando de criar uma política capaz de articular e financiar as políticas de segurança pública nos três entes federados, o papel-chave do governo federal para a indução de políticas públicas em nível local não pode ser desconsiderado.

Tendo sempre como foco de análise o espaço destinado ao município nesses instrumentos e como marco inicial a Constituição Federal de 1988, serão analisados os seguintes textos legais representativos das sucessivas tentativas de consolidação de uma política nacional de segurança pública brasileira: 1º Plano Nacional de Segurança Pública (BRASIL, 2000); 2º Plano Nacional de Segurança Pública (BISCAIA, 2002); 3º Plano Nacional de Segurança Pública, Pronasci (BRASIL, 2007); 4º Plano Nacional de Segurança Pública (BRASIL, 2012); Sistema Único de Segurança Pública (BRASIL, 2018a); e 5º Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (BRASIL, 2018b). Esses planos, impulsionados pelas mudanças no governo federal, se sucederam ao longo dos anos. Além dos planos, também serão citadas algumas leis que refletem as diretrizes nacionais das políticas de segurança pública ao longo dos anos.

A Constituição Federal de 1988: o início do processo de descentralização das políticas públicas de segurança

Quando analisados os últimos 40 anos, o comportamento do governo federal na segurança pública pode ser dividido em quatro etapas: 1) (1988-1984) – Final da Ditadura: período orientado pela doutrina da segurança nacional e com grande protagonismo do governo federal, em que inexistia uma política nacional de segurança pública. A “União concentrava poderes de intervenção direta nas polícias estaduais, mas com fraco controle interno sobre a gestão e uso da força” (KOPITTIKE, 2018, p. 5); 2) (1985-1999) – Período de Transição Democrática: período marcado por diversos conflitos institucionais entre civis e militares, prevalecendo, em sua maioria, a posição dos militares, além de “uma ausência quase completa do governo federal em relação ao tema da segurança, enquadrando-se no modelo sem regulação e sem indução” (KOPITTIKE, 2018, p. 5); 3) (2000-2011) – Período da Segurança Cidadã: denominado por Kopittike (2018) como a “década de ouro da Segurança Pública”, tem como característica a doutrina vinculada ao conceito de Segurança Cidadã, difundida em todo o continente pelos organismos internacionais; e 4) Período de Crise Democrática: tendo como marco temporal o ano de 2011, é um período marcado pela redução do papel indutor do governo federal na segurança pública, que passou a priorizar ações militares pontuais, “com crescimento das ações da Força Nacional, as Operações Ágata e do uso de GLOs, do qual a intervenção federal no Rio de Janeiro foi o ápice” (KOPITTIKE, 2018, p. 6).

Apesar da existência de outras divisões, tal como a proposta por Freire (2009), que apresenta três paradigmas de segurança pública: Segurança Nacional (adotado no Brasil durante o período corresponde à Ditadura Militar – 1964-1985); Segurança Pública (que teve início com a promulgação da CF/1988); e, por fim, Segurança Cidadã (cujo marco inicial seria o ano de 2003, quando a Secretaria Nacional de Segurança Pública inicia o projeto de cooperação técnica Segurança Cidadã, em parceria com as Nações Unidas), o certo é que a análise dos sucessivos Planos Nacionais de Segurança Pública, dentro do contexto histórico e político de sua produção, pode auxiliar na identificação de padrões, continuidade e rupturas na forma de atuação do governo federal.

Peres, Bueno e Tonelli (2016), ao analisarem a relevância dos entes locais para o financiamento da segurança pública, apresentam três momentos distintos sobre a atuação dos municípios na segurança pública (da invisibilidade do ente municipal; do município como ator coadjuvante; e do protagonismo do município na segurança pública). Os autores afirmam que o primeiro momento, “compreendido entre a década de 1980 e meados dos anos 1990 é marcado pela invisibilidade do município no campo da segurança pública, aparecendo o ente subnacional de forma residual no debate” (PERES; BUENO; TONELLI, 2016, p. 41).

No entanto, Carvalho (2002) afirma que, apesar da invisibilidade, o ressurgimento das guardas municipais já se mostra um avanço face às diversas tentativas, não somente durante o período militar, de aniquilar-se qualquer possibilidade de uma doutrina civil de segurança pública no país. Como exemplo, o autor cita o Decreto-Lei Nº 1.072, de 30 de dezembro de 1969, que extinguiu as guardas civis, em virtude de suas fusões com a Força Pública.

Apesar da autorização para a criação das guardas municipais, Spaniol (2016) afirma que a Constituição Federal de 1988 manteve praticamente inalterada a estrutura do sistema de segurança pública construído durante o regime autoritário. No mesmo sentido, Kruchin (2013, p. 42) afirma que a nova Constituição teria mantido o padrão autoritário das instituições policiais e que a superação formal do regime militar brasileiro transformou muito pouco a essência e o funcionamento das estruturas policiais.

Aqui, ganha relevância a afirmação de Zaverucha (2001, p. 76) que, ao analisar a militarização da política, especialmente na segurança pública durante os dois mandatos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, afirma que “o desafio das transições do autoritarismo para a democracia, portanto, foi despolitizar os militares”. Tal desafio pode ser explicado pelo fato de ser o Brasil um exemplo clássico de transição por transformação, o que justificaria o padrão autoritário das instituições policiais. Nestes termos, a condição para se permitir a transição democrática seria a manutenção do sistema de policiamento por ela montado e a permissão para atuação das Forças Armadas em assuntos internos.

No entanto, autores como Freire (2009) e Silva (2011) apontam para a separação entre as funções de Defesa do Estado e Segurança Pública como marcos para a instituição de uma nova ordem democrática e a superação do paradigma da Defesa Nacional. Foram diferenciados os papéis institucionais das polícias e do exército e divididas as competências no plano federativo, o que conferiu aos estados-membros grande autonomia para a execução de suas próprias políticas no setor.

Pela redação do art. 144 da Constituição Federal, a centralidade das ações ostensivas da segurança pública passou para os estados-membros, por meio dos órgãos policiais (polícias civil e militar). “Percebe-se que os artigos que versam sobre as forças armadas e de segurança pública foram alterados apenas de forma periférica, sendo mantidos enclaves autoritários dentro do Estado” (SPANIOL, 2016, p. 62), embora a Constituição Federal de 1988 tenha, ao menos no plano legal-normativo, alterado substancialmente a constituição autoritária anterior (1967/1969).

Cano (2006) afirma que a Constituição Federal, além de centralizar as ações de segurança pública nos governos estaduais, limitou a atuação do governo federal, visto ter a polícia federal um porte reduzido, com atribuições expressamente delimitadas. Silva (2011), no mesmo sentido, afirma que o panorama das políticas de segurança pública, até o início dos anos 2000, foi marcado por duas características basilares. Primeiro, o governo federal tinha uma ação limitada, baseada na mobilização da polícia federal e da polícia rodoviária federal. Em segundo lugar, a centralidade das ações ostensivas nas instituições policiais e, por consequência, nas agendas dos governos estaduais.

Dessa forma, no contexto pós-redemocratização, uma das funções centrais do governo federal é elaborar uma Política Nacional de Segurança Pública capaz de criar diretrizes para articular, coordenar e sistematizar as diversas ações nesta área, sem interferir no âmbito de competência e atribuição de cada ente federado. Assim, os sucessivos planos, a exemplo de outros sistemas de políticas públicas como a saúde e a assistência social, devem ser vistos como tentativas do governo federal de pautar os rumos das políticas de segurança pública no Brasil.

1° Plano Nacional de Segurança Pública – O Brasil diz não à violência; e criação do Fundo Nacional de Segurança Pública

Tido como um dos fatores que desencadeou a decisão política de criação do 1º Plano Nacional de Segurança Pública, o caso do “Ônibus 174” ocorrido na cidade do Rio de Janeiro em 2000 (FIGUEIRA, 2007) foi notório pela sua repercussão. O sequestro, que culminou na morte de uma refém e do próprio sequestrador, Sandro do Nascimento, é responsável, segundo Soares (2007), pelo desengavetamento dos documentos que acabaram por compor o 1º Plano Nacional, apresentado também no ano 2000, durante a gestão do então presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003).

Ballesteros (2014) afirma que o documento era muito mais político do que estratégico, ratificando atendência dos poderes públicos de formular respostas imediatas a episódios de crises na segurança pública. Apesar da tentativa de articulação entre os poderes executivo e legislativo, o Plano caracterizou-se pela sua elevada capacidade de formulação de políticas, porém baixa capacidade de implementação.

Soares (2007), assim como Silva (2011) e Carvalho e Silva (2011), afirma que algumas ações já podiam ser observadas no âmbito do governo federal, visando à articulação com os estados. Um dos exemplos foi o da Secretaria de Planejamento de Ações Nacionais de Segurança Pública, criada em 1995. Transformada na Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) em 1997, foi o primeiro órgão civil do governo federal com responsabilidade sobre o tema segurança pública.

O plano veio na sequência das criação do Ministério dos Direitos Humanos e do Plano Nacional de Direitos Humanos. Destaca-se também a criação, em 1997, da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp). O PNSP, apesar de bem intencionado, carecia de diagnóstico situacional e de uma visão sistémica do problema a ser enfrentado, de modo que as ações programáticas não se concatenavam diretamento com objetivos, metas, prazos e indicadores. (PERES. et al. 2014, p. 135).

Silva (2011), apesar de apontar defeitos técnicos do 1º Plano Nacional de Segurança Pública, afirma que alguns de seus pontos abriram oportunidades para experiências que se tornaram pontuais para o debate. Carvalho e Silva (2011, p. 63), ao analisarem o 1º PNSP, afirmam que, apesar da ausência dos resultados concretos esperados, emergiu, pela primeira vez “após o processo de democratização, a possibilidade de uma reorientação estratégica, com tratamento político-administrativo direcionado a colocar a questão da segurança pública como política prioritária do governo”. Pela primeira vez uma diretriz nacional reconheceu a importância da prevenção da violência com a criação do Plano Nacional de Integração e Acompanhamento de Programas Sociais à violência urbana. Criados de fato em 2001, os PIAPS tinham por missão promover a interação local e o mútuo fortalecimento dos programas sociais implementados pelos governos federal, estadual e municipal que, de alguma forma, pudessem contribuir para a redução dos fatores, potencialmente, criminógenos (SOARES, 2007, p. 84).

O 1º PNSP era composto por 04 (quatro) capítulos que continham 15 (quinze) compromissos e 124 (cento e vinte e quatro) ações a serem seguidas por aqueles indicados como participantes. Seu texto trazia compromissos a serem assumidos no âmbito do governo federal em cooperação com os governos estaduais, outros poderes e a sociedade civil, sendo extremamente residual a previsão da atuação do governo municipal.

Para alcançar os objetivos mencionados, o 1º PNSP indicava compromissos e ações. No entanto, dentre as 124 ações não havia menção ao município. Curiosamente, o incentivo à criação das guardas municipais aparece como uma ação (Ação 56) inserida no Compromisso nº 07: Redução da Violência Urbana, dentro do Capítulo II:

Ação nº 56 Guardas Municipais: Apoiar e incentivar a criação de guardas municipais desmilitarizadas e desvinculadas da força policial, estabelecendo atribuições nas atividades de segurança pública e adequada capacitação, inclusive para área de trânsito. (BRASIL, 2000, p. 18).

Foi também durante o governo Fernando Henrique Cardoso que, editada a Medida Provisória Nº 2.120-9, de 26 de janeiro de 2001, instituiu-se o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). Convertido na Lei Nº 10.201, de 14 de fevereiro de 2001, o texto original limitava o acesso aos recursos do fundo aos municípios que mantivessem guarda municipal. Sobre a criação do FNSP, os pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública afirmam que:

No que tange ao financiamento, o destaque do documento foi a criação do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). Essa iniciativa pretendia fornecer condições à Senasp de fomentar políticas de segurança. No entanto, a ausência de visão sistêmica supracitada enfraqueceu as possibilidades do FNSP, que acabou por adotar uma política de pulverização de recursos entre diversos entes da Federação. (PERES et al., 2014, p. 135).

Pesquisa intitulada Finanças Públicas e o papel dos Municípios na Segurança Pública, realizada pelo FBSP (2012), afirma que, na prática, os recursos do Fundo foram destinados para convênios mais pulverizados do que articulados na construção de uma pauta única de segurança pública, sendo que a maior parte dos recursos, no período de 2000 a 2003, “foi utilizada com despesas de capital, para aquisição de equipamentos e material permanente para as polícias, guardas e bombeiros” (FBSP, 2012, p. 10).

Apesar das críticas, Soares (2007) reconhece que o 1º PNSP representou uma virada no trato dado pelo governo federal à questão da segurança pública no Brasil. Nesse sentido, Ballesteros (2014, p. 10) afirma que o Plano inseriu o tema da segurança na agenda nacional, “sistematizando várias contribuições sobre o tema, enfatizando seu caráter social e destacando o governo federal como protagonista da coordenação federativa no setor”.

Embora o 1º PNSP seja simbólico por caracterizar uma tentativa de organizar as políticas de segurança pública a partir das ações ditada pelo governo federal, o documento não foi capaz de romper com o protagonismo do governo estadual e das instituições policiais na área. Neste sentido, Soares (2007) afirma que o FNSP, diante da ausência de uma política nacional sistêmica, limitou-se a reiterar velhos hábitos e procedimentos: “o repasse de recursos, ao invés de servir de ferramenta política voltada para a indução de reformas estruturais, na prática destinou-se, sobretudo, à compra de armas e viaturas” (SOARES, 2007, p. 85).

2º Plano Nacional de Segurança Pública

O 2º Plano Nacional de Segurança Pública foi apresentado ainda durante a campanha presidencial, em 2002, pelo então candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva. O Plano, denominado Projeto para Segurança Pública no Brasil, foi elaborado no âmbito do projeto Segurança Pública para o Brasil, do Instituto Cidadania (BISCAIA, 2002). Dividido em 15 capítulos, previa a criação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) que, nos moldes de outras políticas públicas, como as da saúde, procurava integrar as três instâncias federativas e a sociedade civil na implementação de uma política pública de segurança (FBSP, 2012).

As mudanças partiam da premissa de que o 1º PNSP carecia de planejamento e gestão e uma das apostas era no bom diagnóstico da violência como forma de orientar as políticas de prevenção. A ideia primordial era reformar as instituições de segurança pública e implantar o SUSP (CARVALHO; SILVA, 2011; DELGADO, 2015). “Tratava-se de um conjunto de propostas articuladas por tessitura sistêmica, visando a reforma das polícias, do sistema penitenciário e a implantação integrada de políticas preventivas, intersetoriais” (SOARES, 2007, p. 89).

Em relação aos municípios, o Plano qualificava a participação desses entes via políticas preventivas e através da criação das Guardas Municipais. Embora pequeno, o Capítulo 4 do Plano era denominado Reformas substantivas na esfera municipal: segurança pública no município – a Guarda Municipal, trazendo apenas o subitem “4.1: Modificações nas guardas municipais” (BISCAIA, 2002, p. 48-49). O Plano preocupava-se em criar diretrizes para o fortalecimento das guardas municipais, reconhecendo que lhes faltavam, inclusive, metas claras para atuação ou construção de instrumentos operacionais.

Hoje, muitas Guardas não têm metas claras e compartilhadas, não atuam segundo padrões comuns, não experimentam uma identidade institucional, que poderia ser a base para uma autoestima coletiva elevada, e tampouco têm sido objeto de questionamento ou alvo de propostas reformadoras. [...] Mas, antes e acima de tudo, falta uma política que as constitua como protagonistas da segurança municipal e lhes determine um perfil, uma identidade institucional, um horizonte de ação, um conjunto de funções e, muito particularmente, lhes atribua metas claras, publicamente reconhecidas. (BISCAIA, 2002, p. 48-49).

Nesse projeto a temática segurança pública municipal já é merecedora de um capítulo à parte – embora o debate ainda tenha se limitado às guardas municipais – fato este que, segundo Barbosa et al. (2008, p. 390): “é significativo de como o tema segurança municipal vem se desenvolvendo nos instrumentos programáticos municipais”.

O 2º PNSP estabelece que “nos municípios, o único instrumento especificamente voltado para a segurança, atualmente, são as guardas municipais – quando elas existem, silenciando-se sobre outras formas de atuação do município nesta área” (BISCAIA, 2002, p. 48). Os pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2012) concordam que no 2º PNSP a discussão sobre a atuação do município também ficou limitada à guarda municipal: “não trata das outras possibilidades de elaboração de ações e políticas locais preventivas mais amplas” (FBSP, 2012, p. 25).

Em relação às guardas municipais, no ano de 1995, apenas 318 municípios tinham criado essas instituições. “Como essas corporações são proporcionalmente mais presentes em cidades maiores, tem-se que o percentual da população atendida por tal serviço atingiu em 2012 o maior valor da série, 58,9% (em 1995 eram apenas 26,7%)” (FILHO; SOUZA; ALVES, 2018, p. 517). Nesse sentido, Peres, Bueno e Tonelli (2016, p. 44) afirmam que “os municípios, que praticamente não tinham despesas relevantes na década de 1990, passaram a apresentar um crescimento continuado desde 2000 e mais significativo a partir de 2004”. Assim, o incremento de municípios que optaram pela instalação de guardas municipais pode ser reflexo das ações indutivas dos Planos Nacionais de Segurança Pública (1º e 2º PNSP).

No que diz respeito aos municípios, a legislação que criou o FNSP permitia repasse às cidades que possuíssem guarda municipal, o que em parte explica o grande número de GCM no quadriênio 1999-2002. [...] Verifica-se que o primeiro crescimento expressivo dessas estruturas aconteceu entre 1999-2002, seguido do período compreendido entre 2003-2006. Isso significa dizer que, apesar da série histórica de mais de quatro décadas, 35% das guardas civis municipais foram criadas no início dos anos 2000. (PERES; BUENO; TONELLI, 2016, p. 42).

No que tange ao financiamento dessas políticas, a Lei Nº 10.746/2003 alterou a Lei Nº 10.201/2001, que instituiu o Fundo Nacional de Segurança Pública. Embora a nova lei ainda vinculasse o acesso aos recursos do FNSP aos municípios que mantivessem guarda municipal e/ou plano municipal de segurança pública, a alteração inovou ao inserir a implantação do Conselho de Segurança Pública ou a realização de ações de policiamento comunitário como requisitos para obtenção dos recursos (art. 4º, § 3º da Lei Nº 10.201/2001, com a redação dada pela Lei Nº 10.746/2003).

Para Peres, Bueno e Tonelli (2016, p. 44) o ano de 2003 é o marco de um momento em que os municipios deixam a invisibilidade e “passam a dedicar mais esforços sistemáticos à prevenção da violência e à cooperação com os governos estaduais”. Segundo os autores, a regulamentação do FNSP pela Lei Nº 10.746/2003 é uma das explicações para esse fenômeno por permitir “que os municípios que não possuíssem guardas municipais também recebessem recursos, desde que tivessem outras ações, como planos municipais de segurança e parcerias com as polícias estaduais, dentre outros” (PERES; BUENO; TONELLI, 2016, p. 44).

Apesar de ressaltar vários pontos positivos do Plano, Sá e Silva (2017, p. 19) afirma que “o Plano não foi capaz de alterar os padrões de investimento federal, nos quais a maior parte dos recursos era destinada a compras de equipamentos para as polícias, nem de promover as alterações institucionais que prometeu para o setor (reformar as polícias e construir o SUSP)”. Peres, Bueno e Tonelli (2016) também concordam que a distribuição de recursos do FNSP deu-se de forma desarticulada e pulverizada em distintos convênios, sendo destinado, prioritariamente, para aquisição de equipamentos e material permanente para as polícias, guardas e bombeiros. Peres et al. (2014), ao analisarem a aplicação dos recursos do FNPS no período de 2000 a 2003, afirmam que:

O FNSP, que deveria dar respaldo à criação do Susp, continuou a ser operacionalizado em convênios mais pulverizados do que articulados na construção de uma pauta única na segurança pública. Conforme análise de Grossi (2004), a maior parte dos recursos do Fundo no período de 2000 a 2003 foi utilizada com despesas de capital, aquisição de equipamentos e material permanente para as polícias, guardas e bombeiros. (PERES et al., 2014, p. 136).

Em breve síntese, apesar dos avanços programáticos, o 2º PNSP ficou longe da efetiva implementação, o que reforça o caráter fugaz das Políticas Nacionais de Segurança Pública no Brasil. No que tange à atuação do governo municipal, essa continuou se limitando às guardas municipais. No entanto, diferentemente do 1º PNSP, que buscava induzir a própria criação das guardas municipais, a preocupação maior do 2º PNSP era com o fortalecimento dessas instituições através da estipulação de metas mais claras para sua atuação.

3° Plano Nacional de Segurança Pública: Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI)

O capítulo subsequente na construção de uma Política Nacional de Segurança Pública é formado pelo PRONASCI. O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania foi lançado durante o 2º mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2007-2011), através da Medida Provisória Nº 384, convertida na Lei Nº 11.530/2007. O PRONASCI deslocou o equilíbrio de prioridades entre repressão e prevenção, valorizando a contribuição dos municípios para a segurança pública, “contribuição que não se esgota na criação de Guardas Civis; estende-se à implantação de políticas sociais preventivas” (SOARES, 2007, p. 92). Segundo Carvalho e Silva (2011), a intenção do Plano é

Ser uma política de Estado que proporcione a autonomia administrativa, financeira, orçamentária e funcional das instituições envolvidas, nos três níveis de governo, com a descentralização e integração sistêmica do processo de gestão democrática, transparência na publicidade dos dados e consolidação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), com percentual mínimo definido em lei e assegurando as reformas necessárias ao modelo vigente. (CARVALHO; SILVA, 2011, p. 65).

Sá e Silva (2017) afirma que o PRONASCI é a marca da PNSP no Governo Lula 2, tendo como mote a prevenção e, como público-alvo, jovens residentes em áreas vulneráveis. Contudo, o autor afirma que embora tais ações tenham contribuído para a mudança do paradigma repressivo-ostensivo da Política Nacional de Segurança Pública, as mesmas foram ofertadas na forma de soluções preconcebidas (ex.: os projetos Protejo e Mulheres da Paz), às quais estados e municípios simplesmente “aderiam”. “Ademais, o PRONASCI contava com nada menos que 94 ações, o que tornava difícil compreender, monitorar e avaliar o sentido do que estava sendo ‘transferido’ aos Estados e Municípios” (SÁ E SILVA, 2017, p. 21).

As 94 ações estavam divididas em duas categorias: Ações Estruturais e Programas Locais. O primeiro eixo subdividia-se da seguinte forma: 1) modernização das instituições de segurança pública e do sistema prisional; 2) valorização dos profissionais da segurança pública e agentes penitenciários; 3) enfrentamento à corrupção policial e ao crime organizado. O segundo, programas locais, era subdividido em: 1) território de paz; 2) integração do jovem à família; 3) segurança e convivência (SOARES, 2007).

Além de estar representado no eixo 1, das ações estruturais, através da ação de valorização das guardas municipais, o município passou a ter local privilegiado nas ações descritas pelo PRONASCI. No primeiro ponto do eixo dos “programas locais”, denominado “território de paz”, estavam os seguintes tópicos: a) Gabinetes de Gestão Integrada Municipal; b) Conselhos Comunitários de Segurança Pública; e c) Canal com a comunidade (SOARES, 2007).

Em relação aos Gabinetes de Gestão Integrada Municipal (GGIM), eles eram vistos como instâncias fundamentais à implantação do PRONASCI, “porque descentralizam o programa até o nível municipal, integrando representantes de órgão estaduais, municipais e federais, para em conjunto planejarem a política local em consonância com as diretrizes federais” (FBSP, 2012, p. 26).

Ballesteros (2014) afirma que os Gabinetes de Gestão Integrada (GGI), que tiveram origem em 2003, foram frutos dos “Protocolos de Intenções” firmados entre o governo federal e todos os estados, além do Distrito Federal, com vistas à implementação do SUSP. Segundo a autora, “o GGI passou a ser tratado como órgão deliberativo e executivo, que operaria por consenso, garantindo a manutenção da autonomia e a não hierarquização de seus integrantes” (BALLESTEROS, 2014, p. 11).

Peres, Bueno e Tonelli (2016) afirmam que, embora o PRONASCI tenha representado uma grande injeção de recursos na área da segurança, a análise dos gastos revela seus limites de implementação. Além disso, citam os autores que, mesmo que o PRONASCI tenha influenciado o aumento de convênios municipais e estaduais, o governo federal sempre teve seu foco voltado para a relação com os estados.

Se, por um lado, a grande proporção de recursos direcionada a eles pode ser compreendida a partir do protagonismo que as polícias estaduais exercem na organização da segurança pública brasileira, esse dado revela também a dificuldade da União estimular a adoção de um novo modelo, assim como a falta de clareza por parte do ente central sobre qual papel as cidades deveriam desempenhar nesse interim. (PERES; BUENO; TONELLI, 2016, p. 47).

Por fim, os autores afirmam que, embora a primeira década de 2000 tenha sido marcada pelo aumento de repasses da União para os municípios, a década de 2010 foi marcada pela redução destas transferências. Apesar da expressiva redução no volume repassado aos municípios a partir de 2012, as cidades continuaram empreendendo esforços consideráveis no financiamento das políticas locais de segurança. É o momento que os autores identificam como de protagonismo municipal na atuação na área da segurança pública. O maior “envolvimento” municipal é demonstrado pelo volume de recursos empenhados pelos municípios no período compreendido entre 1998 e 2015.

Verifica-se que as despesas passaram de menos de R$ 1 bilhão no início da série histórica para R$ 4,5 bilhões em 2015. Mostra também que, mesmo diante da redução dos recursos federais, os municípios continuaram a manter o patamar de gastos próximo a R$ 4 bilhões anuais, ainda que diante de várias dificuldades de gerar receita para essas políticas. (PERES; BUENO; TONELLI, 2016, p. 47).

Apesar das inconsistências e do caráter essencialmente programático, o fato é que o PRONASCI pode ser visto como um ponto de inflexão na indução de uma maior participação do município na segurança pública. Quando analisados o aumento de gastos dos municípios com a função segurança pública, se comparados os números de 2002 (1,59 bilhões) e de 2008 (3,16 bilhões), o investimento dos municípios nesta área quase dobrou (FBSP, 2019). Peres et al. (2014), com base nos dados do FINBRA/STN, confirmam que os municípios aumentaram seus gastos com segurança. No entanto, esta participação é mais relevante dentre os municípios com mais de 100 mil habitantes.

Segundo levantamento realizado pela STN em 2010, entre os 5.564 municípios do país, 2.106 declararam gastos em segurança pública, totalizando R$ 2.359.209.740,29. Ainda que a participação dos municípios menores seja relevante, aqueles com mais de 100 mil habitantes são responsáveis por 80% das despesas declaradas na área e protagonistas no processo de incremento dos investimentos municipais na área na última década. (PERES et al. 2014, p. 145).

Embora confirmem um volume maior de despesas conveniadas com os municípios no período de vigência do PRONASCI, Peres, Bueno e Tonelli (2016) afirmam que em nenhum momento estes repasses superaram os convênios estaduais. Ou seja, apesar do discurso fomentado pelo governo federal da descentralização das políticas de segurança pública, o próprio governo federal sempre teve o foco direcionado aos estados, reforçando a centralidade das polícias estaduais na organização da segurança pública. Além disso, tal dado, segundo os autores, “revela também a dificuldade da União em estimular a adoção de um novo modelo, assim como a falta de clareza por parte do ente central sobre qual papel as cidades deveriam desempenhar nesse ínterim (PERES; BUENO; TONELLI, 2016, p. 46).

Conclui-se que a destinação de um espaço privilegiado ao município na política nacional de segurança pública, como realmente o fez o PRONASCI, não significa ter o governo priorizado projetos em âmbito local. Ao contrário, permaneceu o padrão anterior de privilegiar os estados, principalmente com compras de equipamentos para as instituições policiais. Assim, mesmo dependentes das transferências e em um cenário de poucas transferências do governo federal, os municípios aumentaram seus gastos com a segurança pública.

4º Plano Nacional de Segurança Pública

Já no início de sua 1º gestão (2011-2015), Dilma Rousseff pôs fim ao PRONASCI. Essa decisão, além de colocar um freio na expansão das atribuições do Ministério da Justiça na segurança pública, sinalizava a nova tendência do governo federal em não se intrometer nos assuntos relacionados à segurança. A decisão de acabar com o PRONASCI é simbólica da inação do executivo nacional em relação ao papel do governo federal em traçar diretrizes para a política nacional de segurança pública.

Kopittke (2017, p. 56) afirma que “novamente não se criou nenhuma estrutura permanente e os avanços conceituais e orçamentários do programa foram imediatamente desfeitos com o início do Governo Dilma, em 2011, que girou o conteúdo da Segurança Pública novamente para concepções de Segurança Nacional”.

Com base em dados obtidos por meio de acompanhamento, análise e mesmo assessoramento do Executivo Federal entre 2009 e 2016, Sá e Silva (2017) relata que a abordagem do governo federal para a segurança pública era mais conservadora por pregar um entendimento rígido das competências federativas. A função de prevenir e combater a violência seria uma tarefa, por excelência, dos estados, enquanto a dos municípios seria residual. Na visão de Sá e Silva (2017), as alterações nas diretrizes da política nacional sinalizavam para um considerável reposicionamento programático que acabaria por prejudicar avanços no campo da segurança pública.

Em um período pouco explorado da Política Nacional de Segurança Pública foi lançado em meados de 2012 o 4º Plano Nacional de Segurança Pública, que tinha como componentes:

1. Um Plano Estratégico de Fronteiras; 2. O Programa “Crack, é Possível Vencer”; 3. Ações de Combate às Organizações Criminosas; 4. Um Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional; 5. Um Plano Nacional de Segurança para Grandes Eventos; 6. O mencionado SINESP; e 7. Um Programa de Enfrentamento à Violência. (SÁ E SILVA, 2017, p. 22).

O plano tinha três características centrais. A primeira, relacionada a uma agenda federal, agora mais preocupada com crime organizado, uso de drogas, sistema prisional e segurança de grandes eventos, do que com prevenção e redução das manifestações mais cotidianas da violência urbana. A segunda dizia respeito à relação entre entes federados, na qual ganhavam destaque as competências executivas da União e dos estados. Já as guardas municipais e os programas de prevenção ou projetos sociais, cujos lócus de gestão são, em geral, municipais, ocupavam posição bem mais discreta do que tinham vindo a ocupar no passado recente do PRONASCI. Por fim, o Plano era baseado na concepção de que o governo federal devia desempenhar apenas a função de apoio aos governos (estaduais) na produção e gestão das ações (SÁ E SILVA, 2017, p. 22-23).

Em relação às Guardas Municipais, embora Sá e Silva (2017) sugira que a instituição não tenha recebido do governo federal a devida importância, foi durante o Governo Dilma que foi sancionada a Lei Nº 13.022 de 2014, visto como um importante instrumento para a consolidação e o fortalecimento das guardas municipais no Brasil.

O Estatuto das Guardas Municipais, como ficou conhecido, entrou em vigor em 8 de agosto de 2014. Dentre as principais alterações, trouxe a obrigatoriedade de que o comando da instituição se desse por servidor da guarda municipal e que esta contasse com ouvidoria e corregedoria própria. Estabeleceu, ainda, que as guardas municipais não estão sujeitas à disciplina militar, consolidando a natureza civil da instituição. Nos art. 4º e 5º, a Lei Nº 13.022 delimitou as competências das guardas municipais, que agora poderiam atuar de forma preventiva, desde que respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais. Definiu princípios mínimos de atuação das guardas municipais que podem ser sintetizados da seguinte forma: “I - proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas; II - preservação da vida, redução do sofrimento e diminuição das perdas; III - patrulhamento preventivo; IV - compromisso com a evolução social da comunidade; e V - uso progressivo da força” (DELGADO, 2015, p. 101).

Por fim, a alteração programática da agenda do governo federal, somada a um período de intensa crise econômica e política, pode ter sido um dos fatores que contribuiu para o declínio substancial dos repasses (via convênio) de verbas do governo federal para os municípios. Como exemplo, podemos citar que, no ano de 2010, foram repassados aos municípios o total de R$ 457,95 milhões e, após progressivo declínio, o valor chegou a R$ 31,15 milhões em 2013. Após alcançar o patamar de R$ 100,01 milhões em 2014 (ano de eleição), os repasses chegaram a R$ 45,97 milhões em 2016 (FBSP, 2019, p. 26), ano que Dilma Rousseff, reeleita em 2014, foi afastada da Presidência da República, após um processo de impeachment.

Sistema Único de Segurança Pública e a “nova” Política Nacional de Segurança Pública

Em um contexto de extrema crise institucional e política, no último ano de governo do ex-Presidente Michel Temer (2016-2019), foi sancionada em 11 de junho de 2018 a Lei Nº 13.675, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). A lei, de autoria do Poder Executivo, é fruto de projeto em trâmite desde o ano de 2012.

Com a finalidade de disciplinar o § 7º, do art. 144, da Constituição Federal, dispõe o art. 2º da lei do SUSP que: “A segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos, compreendendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no âmbito das competências e atribuições legais de cada um” (BRASIL, 2018a). O art. 1º, por sua vez, dispõe sobre a atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada dos integrantes estratégicos e operacionais do SUSP.

Impulsionando a descentralização e a gestão compartilhada das políticas públicas de segurança, os municípios, ao lado da União, dos estados e do Distrito Federal, passam a compor o SUSP como “integrante estratégico”, status este também conferido aos Conselhos de Segurança Pública e Defesa Social dos três entes federados (art. 9º, § 1º, da Lei Nº 13.675/2018). A Guarda Municipal, por sua vez, passa a constar como um integrante operacional do SUSP, ao lado dos demais orgãos indicados no art. 9º, § 2º, da Lei Nº 13.675/2018.

Composta por 50 artigos, a referida lei determina a criação de Conselhos de Segurança Pública e Defesa Social, no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, que deverão “propor diretrizes para as políticas públicas de segurança pública e defesa social, com vistas à prevenção e à repressão da violência e da criminalidade” (art. 20, § 5º, da Lei 13.675/2018) (BRASIL, 2018a).

Além da criação do Conselho, a lei determina expressamente que os municípios elaborem seus Planos Municipais de Segurança Pública, tendo como referencial o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSP), instituído em 26 de dezembro de 2018 pelo Decreto Presidencial Nº 9.630/2018. A lei ainda fixou o prazo de dois anos, contados da data de publicação do PNSP, para que estados, Distrito Federal e municípios elaborem e implementem os planos, sob pena de não poderem receber recursos da União para a execução de programas e ações de segurança pública e defesa social.

Dentre os 11 objetivos do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, destaca-se o item 11: “Fortalecer a atuação dos Municípios nas ações de prevenção ao crime e à violência, sobretudo mediante ações de reorganização urbanística e de defesa social” (BRASIL, 2018c). O PNSP também prevê as estratégias para a concretização deste objetivo, quais sejam: I. Estimular a criação de consórcios e outras parcerias intermunicipais para atuação conjunta em ações de segurança pública, a exemplo do compartilhamento de câmeras com tecnologia que possibilite a melhoria dos resultados e a redução dos custos; II. Definir estratégias para que as questões urbanas atinentes à área da segurança pública sejam contempladas nos planos diretores municipais; III. Fomentar o desenvolvimento de políticas municipais interinstitucionais para prevenção social e situacional à violência, abrangendo a assistência aos egressos do sistema prisional, inclusive por meio da instalação de patronatos; IV. Fomentar a implementação de programas voltados ao atendimento e acolhimento de segmentos socialmente vulneráveis, estimulando sua vinculação às respectivas redes de assistência psicossocial; V. Estimular a implementação de estratégias de mediação de conflitos, inclusive no âmbito da comunidade escolar; VI. Estimular a implantação de observatórios municipais para produção e análise de dados sobre situações de violência e avaliação de iniciativas de prevenção; VII. Capacitar gestores e guardas municipais para produção e análise de dados sobre dinâmicas de violência e vitimização; VIII. Desenvolver modelagem para organização de guardas municipais, publicar a matriz curricular para formação de seus profissionais e produzir manuais e procedimentos padronizados para as instituições; e IX. Produzir indicadores para mensuração da atuação das guardas municipais.

Em comparação com os planos nacionais anteriores, a Lei do SUSP e o PNSP se mostram bem mais específicos em relação à atuação municipal na segurança pública, por elencar ações que ultrapassam o âmbito de atuação da guarda municipal e que reconhecem a importância da intersetorialidade nas políticas públicas.

No entanto, embora no plano normativo a lei que instituiu o SUSP sinalize para um avanço nas medidas em prol da descentralização das políticas de segurança pública e no sentido de conferir ao município um papel de destaque no recém criado sistema de políticas públicas, isso não garante que serão realizadas as mudanças necessárias para a superação do modelo de segurança pública centralizado nos estados-membros.

Em suma, as evidências aqui apresentadas indicam que o SUSP constitui um importante avanço para a área da segurança pública ao propor uma reengenharia da arquitetura institucional da segurança pública em nível nacional, dotando o governo federal de maior protagonismo na coordenação e governança da política. Seu futuro, entretanto, parece incerto, tanto pela mudança de gestão no Governo Federal, como pelas limitações de recursos financeiros. (FBSP, 2019, p. 48).

É justamente a diferença entre o teor da Lei Nº 13.675/2018 e a proposta originária de 2002 a principal crítica feita por Soares (2019) em relação à Lei do Sistema Único de Segurança Pública, sancionada pelo então presidente Michel Temer. O autor, em texto intitulado O SUSP e o poder embriagado (2019), afirma que a ideia de um Sistema Único de Segurança Pública foi formulada e apresentada pela primeira vez no documento chamado Projeto de Segurança Pública para o Brasil, que integrou o programa de governo do então candidato Lula, em 2002.

Ao criticar severamente a lei de 2018, Soares (2019) afirma sua inconstitucionalidade, posto que a efetiva criação de um sistema único de segurança pública dependeria de uma emenda constitucional que alterasse o art. 144 da CF, o que não foi feito. O autor afirma que “o Brasil, na área de segurança pública, tornou-se o reino do voluntarismo, do arremedo, do improviso, da mistificação mais simplória, da retórica no lugar do tratamento sério e objetivo dos problemas reais” (SOARES, 2019).

Em síntese, a principal crítica feita por Soares (2019) ao SUSP relaciona-se à falta de previsão de um comando, fator este que inviabiliza a adoção de estratégias que garantam integração, coordenação e cooperação federativa entre os atores operacionais e estratégicos do SUSP, dos três entes federados. O pilar da integração, crucial para o SUSP, estaria engessado pela falta de previsão de comando ou da forma de tomada de decisões, falha esta que esbarraria na autonomia dos governos estaduais e municipais. Citando contradições na lei, Soares (2019) cita o § 4º, do art. 9º, afirmando ser inviável aos entes federados respeitarem o previsto na lei e, ao mesmo, tempo, agirem com liberdade de organização e funcionamento.

Ainda em relação à omissão quanto ao comando e ao processo decisório, o autor menciona o art. 10 da Lei Nº 13.675/2018 e afirma a inviabilidade da integração e da coordenação dos órgãos integrantes do SUSP, nos termos do previstos. Em sentido semelhante, os pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública afirmam que, apesar de expressões como integração, coordenação, cooperação e planejamento esterem presentes no texto legal, “os mecanismos de indução e coordenação definidos possuem deficiências, em especial se comparados à proposta inicial do sistema único para a área desenvolvida em outro momento político, em 2002” (FBSP, 2019, p. 47).

Por fim, apesar do ceticismo em relação à capacidade do SUSP de realizar alterações estruturais na segurança pública, é certo que de um ente periférico e, por vezes, invísivel, o município passou a ser um ente de destaque na política nacional de segurança pública. No entanto, para que esse reconhecimento não passe de mera retórica legislativa, alguns avanços são necessários. O principal deles, ousamos dizer, é a alteração da forma das transferências dos recursos do FNSP para os municípios, que está disciplinada pelo art. 7º, da Lei N° 13.756/2018, que dispõe sobre o FNSP. Diferentemente dos estados e do Distrito Federal – e sem nenhuma justificativa que não seja o aparelhamento das instituições policiais – o repasse aos municípios não é feito mediante transferência obrigatória, fundo a fundo, e sim mediante a celebração de convênio, de contrato de repasse ou de instrumento congênere. Ao limitar as transferências dos recursos federais aos municípios, o governo federal, além de prejudicar a atuação do município na segurança pública e sobregarregar os recursos do tesouro municipal, reforça o velho modelo de segurança pública centralizado nas instituições policiais e na lógica repressiva.

Conclusão

Embora haja um reconhecimento de que os municípios têm atuado de forma mais efetiva na gestão da segurança pública, inclusive criando políticas e estruturas municipais nesta área, ainda são poucos os estudos que buscam compreender esse maior envolvimento a partir da dinâmica das políticas nacionais, ou seja, a partir do discurso oficial do governo federal acerca da forma e dos limites desta participação. A ausência de estudos com esta perspectiva pode ensejar interpretações de que atuar, ou não, na segurança pública é uma decisão adotada pelo gestor municipal, baseada na adesão aos princípios de uma segurança cidadã ou em condições de governabilidade, independente do movimento ou da diretriz do governo federal.

Através da reconstrução das tentativas de criação de uma política nacional de segurança pública no Brasil, este artigo buscou compreender de que forma o município foi sendo incorporado neste processo. De um ente periférico, e por vezes, invisível, o município foi alcançando destaque na política nacional de segurança pública. A título de exemplo, enquanto a Constituição Federal de 1988 limitava a participação dos municípios na segurança pública à possibilidade de criação das guardas municipais, a lei que institui o Sistema Único de Segurança Pública reconhece os municípios como integrantes estratégicos do SUSP, ao lado da União, dos estados e do Distrito Federal. No entanto, esse processo foi lento e sem ritmo definido.

Apesar da ausência de continuidade e das constantes rupturas das políticas nacionais de segurança pública, esse movimento do governo federal de maior responsabilização dos municípios pela segurança pública trouxe resultados. Como visto, a pesquisa apresentada pelo FBSP (2019) demostrou que houve um aumento de 258% dos gastos dos municípios com segurança pública no período de 2002 a 2017, aumento bem superior aos percebidos nas despesas da União e dos estados. Além disso, foi identificado um aumento significativo das estruturas e políticas municipais (guardas municipais, secretarias municipais e conselhos municipais), investimentos estes que, sem dúvidas, impactam no orçamento municipal.

No entanto, investir na segurança pública é o único caminho possível para que os municípios busquem o recebimento de verbas do governo federal. Isso porque, ao longo deste artigo, foi possível verificar ser prática normal das sucessivas políticas nacionais de segurança pública condicionar a possibilidade de acesso aos recursos federais àqueles municípios que se ajustam aos critérios definidos pela política nacional. Já em 2001, a Medida Provisória Nº 2.120-9, ao instituir o Fundo Nacional de Segurança Pública, limitou o acesso aos recursos aos municípios que tivessem guarda municipal. A estratégica de indução tornou-se frequente. Como exemplo, o art. 22, § 5º, da lei que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública, condicionou que o município somente poderá ter acesso aos recursos da União caso elabore e implemente seu plano municipal de segurança pública.

No entanto, a elaboração de um plano, por si só, depende de outras iniciativas a serem gestadas e custeadas pelo município, como a criação de um conselho municipal de segurança pública e uma secretaria municipal para atuação nesta área. Assim, somente para cumprir os requisitos para o recebimento das transferências do governo federal, o município deve aumentar suas despesas, sem que haja, entretanto, aumento de receitas.

O certo é que, embora as unidades da Federação representem aproximadamente 80% de todos os gastos com a função da segurança pública no período entre os anos de 2002 a 2017, os municípios apresentam um crescimento constante de gastos com esta função, considerado o mesmo período, gastos estes que passaram de 3% em 2002 para 6% em 2017.

Apesar da progressiva responsabilização dos municípios com a segurança pública, a contrapartida do governo federal ainda está longe de ter alguma previsibilidade. As despesas empenhadas pelo governo federal para repasse via convênio para os municípios não seguem nenhum padrão, seja em relação à quantidade de contratos firmados, seja em relação aos valores empenhados. Ademais, a ausência de previsão de transferências obrigatórias fundo a fundo para os municípios impede que esses entes possam fazer qualquer previsão para a implementação de seus planos municipais que, como dito, é um dos requisitos trazidos pelo governo federal para o recebimento das verbas federais.

Para análise deste contexto é importante ressaltar que os municípios se mostram extremamente dependentes das transferências estadual e federal, posto que as receitas tributárias destes entes representam apenas 20% do total das receitas correntes. Assim, “a capacidade destes entes se financiarem é muito menor, fazendo com que as transferências correntes, e principalmente as governamentais, sejam vitais para sua manutenção” (FBSP, 2019, p. 14).

Não há dúvidas sobre a importância de uma maior participação do município na segurança pública. No entanto, é necessário repensar a forma com que o governo federal se compromete (ou melhor, não se compromete) com o financiamento das políticas municipais de segurança pública. A não obrigatoriedade de transferência para os municípios dos recursos do FNSP alimenta uma lógica contraditória e perversa: os municípios, tradicionalmente dependentes das transferências dos demais entes federados, aumentam seus gastos na área da segurança pública com a expectativa de receberem repasses do governo federal. No entanto, é somente uma expectativa!

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BRASIL. Lei Nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018. Dispõe sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), sobre a destinação do produto da arrecadação das loterias e sobre a promoção comercial e a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa; altera as Leis n º 8.212, de 24 de julho de 1991, 9.615, de 24 março de 1998, 10.891, de 9 de julho de 2004, 11.473, de 10 de maio de 2007, e 13.675, de 11 de junho de 2018; e revoga dispositivos das Leis n º 6.168, de 9 de dezembro de 1974, 6.717, de 12 de novembro de 1979, 8.313, de 23 de dezembro de 1991, 9.649, de 27 de maio de 1998, 10.260, de 12 de julho de 2001, 11.345, de 14 de setembro de 2006, e 13.155, de 4 de agosto de 2015, da Lei Complementar nº 79, de 7 de janeiro de 1994, e dos Decretos-Leis n º 204, de 27 de fevereiro de 1967, e 594, de 27 de maio de 1969, as Leis n º 6.905, de 11 de maio de 1981, 9.092, de 12 de setembro de 1995, 9.999, de 30 de agosto de 2000, 10.201, de 14 de fevereiro de 2001, e 10.746, de 10 de outubro de 2003, e os Decretos-Leis n º 1.405, de 20 de junho de 1975, e 1.923, de 20 de janeiro de 1982. Brasília/DF, 2018b.

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  1. Secretária de Segurança Urbana e Cidadania de Juiz de Fora/MG. Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais (UFF), com a defesa da tese intitulada Formação da agenda municipal de políticas públicas de segurança: a emergência de políticas e dos dispositivos de segurança em Juiz de Fora/MG (2021). Mestra em Ciências Sociais (UFJF). Graduada em Direito. Pesquisadora do INEAC. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Violência e Direitos Humanos da UFJF (NEVIDH-UFJF). Pesquisadora do Núcleo em Sociologia em Direito da UFF. ↩︎