Racismo estrutural e filtragem racial na abordagem policial a adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas/SP

Luana Barbosa da Silva

Mestranda em Ciência Política pelo PPGCP/Unicamp e Coordenadora do Programa Rumo Certo na SEAP-MA. Pesquisa polícias, juventude e racismo. Cientista social, cientista política e pedagoga. Membra do PolCrim (Laboratório de Estudos de Política e Criminologia) e do Bitita (Núcleo de Estudos Carolina Maria de Jesus).

País: Brasil Estado: Maranhão Cidade: São Luís

Email: l282259@dac.unicamp.br Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2338-2182

RESUMO

Inserido no campo de estudos sobre raça e justiça criminal, o presente artigo tem como intuito compreender os mecanismos de filtragem racial em abordagens e apreensões violentas cometidas por policiais contra adolescentes acusados de ato infracional em Campinas/SP. Através de uma abordagem que perpassa pela percepção histórica sobre racismo e sistema de justiça criminal e a partir daí cruza a noção de juventude com os conceitos de raça, punição, classificação racial, registros policiais e desigualdades, serão articuladas as ideias de filtragem racial e racismo estrutural, através da exposição de um banco de dados sobre as variáveis raciais, de gênero, de escolaridade e socioespacialidade dos atores envolvidos nas abordagens, os meios e os tipos de violência atribuída aos policiais e os atos infracionais pelos quais os adolescentes foram acusados. Tal pesquisa foi feita baseada em dados coletados junto a procedimentos administrativos instaurados pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, abertos contra policiais com acusação de abuso de força.

Palavras-chave: Violência policial. Adolescentes. Racismo. Campinas.

ABSTRACT

Structural racism and racial filtering on the police approach to teenagers accused of offenses at the city of Campinas/São Paulo

Inserted on the study field of race and criminal justice, the goal of this article is to understand the mechanisms of racial biased violent approaches and apprehensions committed by police officers against teenagers accused of offenses in Campinas, state of São Paulo. Based on an analysis that goes through the historical perception about racism and criminal justice system and thereby, crosses the notion of youth with the concepts of race, penalty, racial classification, police records and inequalities, the types and means of violence will be articulated to the ideas of racial filtering and structural racism. This analysis will be made through the exposition of a database with racial, gender, scholarity and sociospatial variants of the actors involved on the approaches, the means and types of violence assigned to the police officers and the offenses assigned to the teenagers. This research was made based on the datas collected with the administratives procedures established by the State of São Paulo Public Ministry opened against police officers with accusation of abuse of force.

Key-words: Police violence. Teenagers. Racism. Campinas.

Data de Recebimento: 30/07/2020 – Data de Aprovação: 16/05/2022

DOI: 10.31060/rbsp.2022.v.16.n3.1346

Abordagem histórica

O legado das teorias bioantropológicas para a atividade policial e do sistema de justiça criminal associaram pessoas negras a estereótipos de criminalidade (SANTANA, 2019). Bacelar (2018) afirma que a partir da metade do século XVIII surgem as bases do racismo científico demonstrado como nova tecnologia de poder, sendo a supremacia racial a condição necessária para a produção de inimigos internos. O autor, portanto, aponta o aparato criminal como sustentáculo para a construção do sujeito negro como inimigo que deve ser encarcerado ou morto em prol do bem social, mantendo as bases do sistema penal brasileiro já existentes desde o período colonial, apenas sofisticando os padrões penais utilizados. O histórico de desumanização de corpos negros apontado pelo autor expõe as contradições de um Estado que se mostra negligente quanto às políticas de combate à criminalidade e simultaneamente fecha os olhos para o genocídio da juventude negra.

Azevedo, Dutra e Belusso Júnior (2018) evidenciam como a construção da ideia de um inimigo existente na hierarquia social teve origem com Cesare Lombroso como protagonista, o qual partiu do conceito de “criminoso nato” com pressupostos biologicamente dados, através dos quais os criminosos teriam características físicas e mentais inferiores em relação ao resto da população. A partir de tais ideias, foi construído o discurso do combate ao inimigo social através de uma política criminal defensivista. O representante mais notável dos ideais de Lombroso foi Raimundo Nina Rodrigues, o qual a partir da hierarquização entre brancos e negros construiu pressupostos teóricos que tachavam negros como criminosos por natureza, o que pode ser compreendido como criminalidade étnica, a qual colocava os indivíduos em uma fase de subalternidade na escala evolutiva.

É também apontada pelos autores a questão da reformulação incessante das estruturas das relações raciais no Brasil, sendo responsáveis pelo processo de socialização e reprodução constante de estereótipos acerca da população negra, que são frutos do processo escravocrata, o qual deixou profundas marcas no imaginário excludente e discriminatório sobre o negro no Brasil. A absorção contínua desses estereótipos demonstra dificuldade de superação do regime escravagista por parte do sistema criminal brasileiro, o qual foi estruturado sobre a ideia de superioridade racial da branquitude, que enxerga corpos negros como potenciais criminosos, evidenciando a existência de relações étnico-raciais violentas no país.

Duarte (1998) afirma que no período em que os estudos criminológicos vieram para o Brasil (1870-1930), eles foram interpretados como um modelo racial de compreensão do desvio, dando base científica às medidas jurídicas que vinham desde a escravidão, permitindo a manutenção das populações brancas no controle social. O autor divide a ligação do discurso racista da criminologia tocado pela Escola Positivista em três fases. Primeiramente, as elites latino-americanas seguiram à risca as teorias criminológicas que defendiam a superioridade de uma raça. Em um segundo momento, o discurso colonialista da primeira fase foi atualizado e atuava à margem da legalidade e sob a tutela das elites. Em um terceiro momento, houve um distanciamento entre os discursos de poder e o exercício deste, repudiando, na arena do discurso, teorias criminológicas racistas que justificaram, por exemplo, alguns dos horrores ocorridos na Segunda Guerra Mundial.

Azevedo, Dutra e Belusso Júnior (2018) afirmam que no Brasil houve a persistência de um modelo autoritário de administração de conflitos, sendo a relação entre os agentes de segurança pública e a sociedade civil ainda intermediada pelo abuso de poder e pela falta de critérios para o uso da força. Há eminente contradição acerca da criação de um Estado democrático de direito entre a Constituição Federal de 1988 e a práxis das forças de segurança brasileiras que permanecem com o uso difuso da violência, formando padrões de conduta divergentes entre si.

Afirmando que o sistema penal brasileiro foi constituído sobre ideais racistas e classistas, os autores sustentam o argumento que as sistemáticas violações aos direitos humanos cometidas pelas forças policiais são produtos de uma violência endêmica calcada nas estruturas sociais e manifestada pelos agentes de segurança pública.

O marcador racial é demonstrado nas análises como elemento-chave para a dinâmica policial, sendo o uso ilegítimo da força contra determinados grupos uma prática socialmente aceita. A naturalização da categorização da população negra como subcidadãos torna a seletividade policial, que é baseada em critérios raciais, uma prática comum quando há suspeição de um crime (SCHLITTLER; SILVESTRE; SINHORETTO, 2014).

Racismo Institucional e Estrutural

Silvio Almeida (2019) aborda o conceito de racismo institucional, o qual advém da compreensão de que o racismo não pode ser analisado apenas como oriundo de comportamentos individuais, mas tem de ser concebido através do funcionamento das instituições que atuam em dinâmicas de concessão de desvantagens e privilégios condicionados pela raça dos sujeitos. Sendo assim, os conflitos raciais são também absorvidos por meios institucionais.

O autor afirma que o racismo não existe na sociedade apenas em função de grupos isolados ou de indivíduos racistas, mas também porque há dominância de determinados grupos sociais nas instituições, de forma que estas dedicam-se a cumprir os interesses políticos e econômicos destes grupos. Institucionalmente, portanto, o poder é o elemento central das relações raciais, obtendo o racismo como forma de dominação. Este domínio é baseado em fatores discriminatórios calcados na raça, mantendo a hegemonia branca no poder.

O racismo institucional pode ocorrer através de ações ou omissões institucionais, instituições estas que podem inclusive dar vantagens sociais aos grupos raciais historicamente estigmatizados. Esta visão do racismo o associa a projetos políticos e condições socioeconômicas específicas. Entretanto, as instituições são dotadas de conflitos e disputas internas específicas que podem provocar alterações nas regras e reformar o jogo das instituições.

O autor afirma ainda que as questões estruturais determinam as questões jurídicas, econômicas e políticas da sociedade, sendo o racismo uma consequência da própria estrutura social, constituindo comportamentos individuais e processos institucionais oriundos de uma sociedade na qual o racismo não é a exceção, mas sim a regra. O olhar estrutural faz com que exista a análise de que, embora os atos racistas devam ser responsabilizados, a responsabilização jurídica não elimina a capacidade reprodutora das desigualdades raciais que a sociedade possui. Portanto, o conceito de “raça” só pode ser compreendido sob uma perspectiva relacional, manifestando-se em atos concretos existentes na estrutura social. Para o autor, o racismo é um processo político, pois é um processo sistêmico de discriminação de grupos sociais inteiros, o que consequentemente influencia a organização da sociedade.

Almeida (2019) aponta que as instituições são manifestações da estrutura social, que possui o racismo como parte de seus componentes orgânicos e parte da ordem vigente na sociedade, ou seja, a instituição não cria o racismo, mas o reproduz. O autor aponta o fato de o racismo ser capaz de criar condições sociais que possibilitam, de forma direta ou não, que negras e negros sejam discriminados sistematicamente. Esse mesmo sistema possui o racismo como ferramenta ativa de um sistema que torna possíveis ações discriminatórias, assim como as cria e recria a todo momento.

A ideia proposta por Almeida afirma que, como parte das instituições e da estrutura, o racismo molda a sociabilidade que tem constituição historicamente inconsciente dos indivíduos, o que torna as ações dos sujeitos muitas vezes pautadas em padrões de clivagens raciais imersas no cotidiano. O autor afirma que o sistema de justiça criminal é um dos mecanismos mais eficazes na criação e na reprodução da raça e seus vários significados.

Juventude e racismo

O limite entre o uso legítimo da força e a violência ilegal gera discussões acerca das práticas violentas das polícias, em especial contra a população pobre, negra e oriunda das grandes periferias brasileiras. Os debates contemporâneos acerca do racismo no Brasil evidenciam que a juventude negra é maioria no banco dos réus e nas gavetas dos Institutos Médicos Legais por utilização de uso letal da força das forças de segurança pública brasileiras.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019), em 2017 as intervenções policiais geraram 5.159 mortes, sendo aproximadamente 14 mortos por dia; 82% dos mortos em ações policiais em 2017 tinham entre 12 e 29 anos; 79% das vítimas de força letal da polícia eram negras. Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2018) também indicam que em 2016 existiam 729.551 pessoas encarceradas. Sendo assim, fica evidente a necessidade de aprofundamento epistemológico acerca da seletividade que permeia os processos de abordagem, apreensão e métodos de utilização da força policial.

Os dados mostram que grande parte das vítimas da seletividade estatal são jovens negros, existindo mecanismos de filtragem racial dentro do sistema de segurança pública brasileiro. O presente artigo buscará entender de forma aprofundada como estes mecanismos atuam com adolescentes, tendo em vista que a abordagem violenta contra menores de idade contraria os princípios da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente e os tratados internacionais de Direitos Humanos, representando uma sistemática violação de direitos fundamentais contra a juventude negra.

Apesar de existir uma extensa bibliografia que aborde a relação entre criminologia e racismo, ainda não há trabalhos que visem especificamente a relação entre seletividade racial e justiça juvenil.

Sinhoretto e Lima (2015) dissertam sobre a interação entre polícia e juventude, afirmando que esta interação gera uma considerável parte das mortes violentas existentes no Brasil, evidenciando tanto a ausência de políticas direcionadas ao direito à vida e à segurança da juventude quanto um protagonismo militarizado das polícias. Vinuto e Alvarez (2009) afirmam que a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não necessariamente gerou uma total ruptura com o processo de exclusão das crianças e adolescentes no âmbito da cidadania, afirmando que existe uma “experiência precoce da punição”. A juventude negra é a que mais morre no Brasil, vítima da acumulação de desigualdades existente entre raça e idade.

Sinhoretto e Lima (2015) realizam apontamentos para o fato de as polícias descumprirem o seu papel na proteção de crianças e adolescentes, principalmente negros, não apenas negligenciando os direitos à vida e à segurança que tais indivíduos possuem segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, como também os violando, desrespeitando seus direitos como seres em desenvolvimento.

A compreensão de que dentro do sistema de segurança pública brasileiro o debate racial é central e mola propulsora de desdobramentos relacionados à seletividade, à letalidade e ao encarceramento em massa torna possível que generalizações existentes no cenário nacional possam ser testadas em ambientes micro, como a cidade de Campinas. Nos procedimentos administrativos que serão analisados, as variáveis de idade, raça, gênero, escolaridade e socioespacialidade montam o quebra-cabeças que compõem o perfil não só dos jovens violentados pela polícia, mas também de seus responsáveis legais e dos agentes de segurança pública.

Racismo e punição

O racismo produz a estigmatização dos sujeitos negros perante a sociedade, tornando-os potenciais suspeitos dentro das estratégias de abordagem policial. A construção da identidade negra enquanto criminosa, somada ao processo de desumanização, gerou visões sociais deturpadas no que tange à capacidade de produção de violência por corpos e mentes pretas e pardas. O que muitas vezes é traduzido em retaliação desproporcional por parte do Estado. Adorno (1995) e Sinhoretto e Lima (2015) expõem a preferência punitiva das polícias e do judiciário aos pretos e pardos (em especial homens, pobres e jovens).

Utilizando como escopo Schlittler, Silvestre e Sinhoretto (2014), pode-se inferir que segurança pública e relações raciais são temas que andam imbricados e, por muitas vezes, em conflito. Evidenciando como há desigualdade de tratamento na atividade policial em detrimento de diferentes raças, as autoras demonstraram através de seus dados a disparidade racial na quantidade de assassinatos cometidos por policiais. A seletividade policial deixa explícita a falha estatal em realizar boa práxis dos princípios constitucionais de 1988 no direito à vida, à dignidade e à liberdade de ir e vir de cidadãos negros e periféricos (LIMA; SINHORETTO; BUENO, 2015).

O texto de Lima, Sinhoretto e Silvestre (2014) expõe as escolhas institucionais acerca da administração dos conflitos sociais na sociedade brasileira contemporânea e como a disputa por conceitos como “lei”, “ordem” e “segurança” gera modificações em situações reais nas práticas judiciais e policiais. Os autores mostraram como mesmo na sociedade contemporânea brasileira existe um paradoxo entre democratização e violência e como este fato causa distorções na realidade de determinados segmentos e estratos sociais.

Schlittler, Silvestre e Sinhoretto (2014) seguem a linha de pesquisa de segurança pública e relações raciais, tendo como intuito encontrar possíveis mecanismos de desigualdade racial em São Paulo, possuindo foco analítico nos homicídios realizados pelos agentes da segurança pública entre 2009 e 2011. O perfil das vítimas traçado foi o seguinte: 61% negras em contraposição a 39% brancas, 97% homens e 77% entre 15 e 29 anos. O cruzamento realizado entre raça, sexo e idade evidencia que os jovens negros são os que mais morrem nas mãos da Polícia Militar, a qual tem representatividade de 96% nas ocorrências de mortes do estado de São Paulo. Possuindo como base uma população de 100.000 habitantes, constata-se que negros morrem quase três vezes mais que brancos. Quanto às prisões em flagrante, brancos representam 42,9% e negros 54,1%, sendo a cada 100.000 habitantes, 14 brancos presos em flagrante para cada 35 negros, mostrando racialização na vigilância policial.

A partir da constatação que jovens negros são a maioria das vítimas dos assassinatos realizados pelos policiais, as pesquisadoras afirmam que a desigualdade racial da segurança pública reflete a ineficácia das práxis do princípio da igualdade, realizando uma relação assimétrica entre o direito e os fatos, expondo desigualdade na aplicação de regras judiciais de acordo com o grupo social a que cada indivíduo pertence.

A prisão em flagrante é compreendida como um fator analítico determinante, porque nela há objetivamente a visão do perfil dos “suspeitos” sem que haja mandado judicial. Os dados demonstram cruzamento entre raça e crime, no que se refere à tipificação do crime, tendo em vista que a maioria dos crimes contra a vida cometidos são realizados por pessoas brancas e mesmo assim as pessoas negras são as mais encarceradas (brancos cometem 55,7% dos homicídios em contraposição a 42,1% dos negros). Portanto, existiria maior vigilância policial sobre pretos e pardos, expressando as faces do racismo institucional que busca com mais intensidade delitos em determinada raça, distorcendo o princípio da igualdade formal.

Schlittler, Silvestre e Sinhoretto (2014) afirmam que quem é “suspeito” para os policiais possui características condenáveis para a moralidade e os estereótipos sociais, baseando algumas práticas policiais na criação de desvantagens para determinados grupos sociais, tendo as experiências subjetivas como condicionantes à dimensão formal do trabalho policial.

As autoras apontam o papel do policiamento ostensivo e do combate militarizado como fatores-chave da ação da polícia. No estado de São Paulo, os negros compõem 34% da população, mas são 58% dos mortos em ações policiais. Uma das causas apontadas para tal filtragem racial é a ausência de critérios específicos da própria organização, abrindo margem para os critérios pessoais dos agentes da segurança pública. Somado a esse fator, a militarização da vigilância policial aumenta o grau de letalidade presente nas práticas policiais.

Schlittler, Silvestre e Sinhoretto constataram que o modo pelo qual a polícia realiza a vigilância é racializado, dando foco à visão privilegiada sobre sujeitos negros que os reconhece como sujeitos criminais. Sendo assim, pessoas negras possuem maior visibilidade perante a polícia no que toca o cometimento de crimes em detrimento da população branca. Brancos têm, assim, o privilégio de cometer crimes despertando menor atenção dos agentes de segurança pública. As autoras chegaram à conclusão de que a filtragem racial está imbricada nas práticas policiais. Estas questões muitas vezes tornam critérios para suspeição: modos de andar, vestir e falar, acessórios, horário e locais de trânsito, se valendo de saberes informais e racializados para a seleção de suspeitos. Uma ponte realizada pelas pesquisadoras é a possibilidade de a informalidade e a racialização estarem associadas à pressão que a polícia possui por eficiência e obtenção de resultados.

Renato Lima, Jacqueline Sinhoretto e Samira Bueno (2015) dissertam sobre a existência de um forte hiato entre os princípios democráticos de 1988 e as práticas recorrentes da segurança pública brasileira, contrariando o art. 5º da Constituição Federal de 1988, o qual estabelece a defesa da vida como regra primordial. Entretanto, as práticas realizadas nas instituições e nas organizações policiais legitimam a violência e a seletividade das instituições do Estado. Os déficits na formação de normas técnicas e de padrões de conduta demonstram o vácuo no lugar do que deveria ser um projeto governamental das polícias brasileiras calcado na democracia e nos direitos humanos, subjugando o moral valor da vida ao papel socialmente imputado a quem é morto, seja pelas ações policiais, seja pela dinâmica conflitiva de uma sociedade rica, violenta e desigual.

As autoras realizam apontamentos que analisam os padrões operacionais da Polícia Militar como baseados no confronto e na guerra, o que torna tanto a população quanto os policiais reféns de um sistema que não tem sido capaz de superar a violência, a impunidade, o racismo e a corrupção.

Sérgio Adorno (1995) apresenta uma correlação existente entre raça e punição, articulando identidade visual e identidade social. Adorno afirma que entre os pobres, os negros são os que possuem os piores salários e os mais baixos índices de escolaridade, exibindo a exclusão social que é sustentada por mecanismos de preconceito e estigmatização. O autor aponta a sociedade brasileira como extremamente tolerante ao racismo, sob o mito da democracia racial, que é fruto de uma herança colonial que se mostra autoritária e conservadora, de forma a barrar os avanços democráticos.

Adorno disserta sobre a existência de uma construção social do perfil dos possíveis delinquentes, formando uma biologização e uma “carreira moral” para os possíveis criminosos, sendo os cidadãos negros os destaques do imaginário coletivo, tendo os seus atributos físicos e culturais determinantes para decidir quem são os culpados pela falta de segurança no Brasil. Os dados do autor mostram que, proporcionalmente aos brancos, os negros sofrem muito mais sanções do sistema judicial, considerando a composição racial do município de São Paulo, existindo afinidade eletiva entre raça e punição.

Filtragem racial e fundada suspeita

O conceito de filtragem racial toma forma no sistema de segurança pública brasileiro a partir de noções associadas ao racismo institucional, tendo em vista que as abordagens policiais são baseadas na suspeição. As pesquisas a seguir demonstram que tais abordagens possuem a raça como fator principal de seleção dos potenciais suspeitos, gerando visão privilegiada sobre pretos e pardos.

Geová Barros (2008) cita o art. 244 do Código Penal brasileiro, o qual estabelece a necessidade de “fundada suspeita” para a abordagem policial. Entretanto, o principal “filtro” da suspeição é a cor do indivíduo, tendendo a serem os suspeitos taxados com mais frequência na seguinte sequência: pretos, pardos e brancos. O autor explana sobre a mecanicidade das práticas policiais racistas, compreendendo que é tamanha a sua fixação, que a grande maioria dos policiais admite nas entrevistas já ter realizado abordagens com pessoas negras em função da raça, tornando-se uma prática coletiva e sistemática da corporação, mantendo constantemente maior vigilância sobre pretos e pardos. Os relatos obtidos pelo pesquisador evidenciam que os policiais entrevistados tendem a relacionar negritude, pobreza e criminalidade. Entretanto, a cor da pele segue sendo o fator determinante para a realização de distinções nas abordagens.

O artigo A filtragem racial na seleção policial de suspeitos: segurança pública e relações raciais (SINHORETTO et al., 2014) constata a existência de representação da população negra nas prisões em flagrante, a qual na maioria das vezes não possui investigação criminal prévia ou mandado judicial, ocorrendo frequentemente através de abordagens policiais, indicando a existência de filtragem racial nesta prática. Citando os dados fornecidos pela Polícia Militar do estado de Minas Gerais, para cada pessoa branca presa pelos policiais, há o dobro de pessoas negras encarceradas. Segundo o texto, a filtragem racial também circunda as abordagens violentas. Comparando os estados citados na pesquisa, a letalidade policial faz com que a chance de uma pessoa negra ser morta pela polícia do que uma pessoa branca seja quase quatro vezes maior no Rio de Janeiro, em São Paulo quase três vezes e em Minas Gerais, quase o dobro.

A pesquisa constata falas quase que gerais dos policiais (de todos os escalões da corporação) negando a existência da filtragem racial nas práticas policiais, creditando à denominada “fundada suspeita” a justificativa da grande maioria das abordagens feitas. Esta “fundada suspeita” é, segundo os policiais, fruto da experiência nas ruas, dando ao policial a capacidade de identificar um suspeito através do primeiro olhar e de signos de suspeição. Esta experiência positivada é denominada “tirocínio policial”.

As abordagens policiais não são orientadas por procedimentos padronizados através de dispositivos legais e pedagógicos. Embora haja negação da filtragem racial por parte dos agentes da segurança pública, a “fundada suspeita” é constituída através do olhar de um grupo social específico que é representado por um tipo de vestuário, fala e modo de andar que reivindicam a cultura negra, a qual muitas vezes constitui também uma cultura da periferia. O tirocínio é materializado na habilidade policial de mapear locais, horários e condições nas quais é possível obter uma operação considerada bem-sucedida, sendo esta uma situação na qual são encontradas drogas e/ou objetos ilícitos entre os transeuntes, efetuando um “saber-fazer” policial.

A suspeição criminal é realizada através das características da corporalidade, dos traços de classe, faixa etária, território, compatibilidade com o lugar e signos culturais expressos pelo estilo de vida do sujeito, compondo uma leitura racializada da classe do cidadão. A filtragem racial constitui o policiamento brasileiro, seja através dos locais de abordagem, seja pelos tipos de crime, formando ações calcadas em critérios estigmatizantes, evidenciando o racismo institucional, de forma a deteriorar a identidade do abordado, transfigurando-o de cidadão a potencial suspeito através do que seria o “tipo social” de um criminoso.

Registros da ocorrência

Flora (2017) afirma que toda suspeita de crime levada à autoridade policial possibilita ou motiva um registro de ocorrência, e como usualmente é a Polícia Militar que informa as autoridades, há a formação de uma burocracia por parte da Polícia Civil que deve produzir um registro escrito, devendo este orientar a investigação dos indícios do crime comunicado, o que eventualmente pode produzir uma persecução penal por parte do Ministério Público caso o mesmo constante violação da lei. A produção de registro da Polícia Civil inicia todo um processo protocolar.

O autor aponta os estudos dos registros de ocorrência como fonte primária da informação acerca do ocorrido. Segundo o autor, a fase policial deveria apenas conceder elementos subsidiários para que pudesse haver determinação dos fatos no sistema acusatório, entretanto, foi percebido um alto nível de discricionariedade acerca do desfecho dos casos. Sendo assim, boa parte dos processos parecem confirmar a versão que os policiais apresentaram na delegacia. O autor aborda os processos em grande parte das vezes como mera formalidade, já que a versão dos policiais acaba não sendo exposta ao contraditório ou ao confronto em nenhuma outra etapa do percurso legal, fazendo com que o Ministério Público e o Poder Judiciário apenas ratifiquem a versão do agente de segurança.

É defendida a ideia de que há reprodução dos discursos existentes no inquérito policial, procurando legitimar a visão dos fatos trazida pelos policiais, sendo o que é registrado nas delegacias de polícia. Assim, é identificado um deslocamento da atividade probatória para a fase pré-processual da construção da culpa, o que seria incongruente com o que as responsabilidades do sistema penal brasileiro impõem. Consequentemente, são formados processos amparados e/ou reforçados por tecnologias inquisitoriais, havendo produção do inquérito “de trás para frente”, com as seguintes etapas: suspeição de um sujeito, prisão e posteriormente verificação de veracidade.

O autor mostra como sua leitura dos registros faz parte da construção de tentativas de alcance do real, não como o real ocorrido, mas como construção social dos atores que interagem a partir de distintos pontos da situação, compreendendo a existência de relações de desigualdade de poder político e de poder econômico. Há um exercício interpretativo na forma como os policiais tipificam os registros, o que faz com que a subjetividade da definição do tipo legal da norma violada observada a nível de instituições implique em um ato interpretativo do Estado por meio das polícias. O registro de ocorrência autenticado em cartório dá autenticidade, publicidade e eficácia aos atos praticados e a sua mera existência é o que confere a formalidade legal necessária para o conhecimento oficial do delegado de polícia.

Assim como nos registros de auto de resistência expostos pelo autor, os registros de violência cometidos pelos agentes de segurança pública encontram-se esvaziados de informações fundamentais, como a autoria. É perceptível que a ausência do nome dos autores dos atos, mesmo quando a violência ocorrida é registrada no Boletim de Ocorrência, é um padrão comum e aceito, tanto pelo delegado da Polícia Civil quanto pelo sistema de justiça. Constantemente os perpetradores são registrados como testemunhas ou condutores.

Um outro ponto interessante a ser analisado e existente em comum com a dissertação do autor é a diferença sensível entre o discurso dos familiares (e no caso de minha pesquisa, também das vítimas) e a história contada nos registros policiais. O que o autor chama de “exceção legal” pode ser compreendido como um padrão operacional também presente nas forças de segurança paulistas, as quais reiteram os relatos dos policiais e produzem os inquéritos calcados neles. Como os agentes de segurança pública muitas vezes são os narradores da sequência de eventos da primeira versão que chega à autoridade policial, oferecendo a dinâmica dos fatos para que o Estado tenha acesso à construção da verdade, os testemunhos criam uma dinâmica dos fatos e assumem a função antecipada de um meio de prova testemunhal que tem valor de verdade. O grande problema colocado pelo autor é o fato de que a não necessidade sistemática de que os agentes de segurança pública possuam provas críveis de suas condutas faz com que seus testemunhos se tornem verdades, a menos que existam motivos sólidos para que esta dúvida exista. Então, o que ocorre é a produção orientada do descobrimento da verdade.

Flora observou que as descrições no campo de descrição das ocorrências são voltadas para a tecnicidade dos procedimentos realizados pelos policiais, e não para os fatos em si, o que produz uma versão cartorial. A dinâmica do ocorrido, as posições dos policiais e a qualidade de iluminação da rua, por exemplo, ficam em escanteio. Há uma repetição de nomes e situações já citados anteriormente nos registros, produzindo o que o autor denomina de pleonasmo jurídico. Motivações, posições, circunstâncias e ângulos raramente entram na pauta, procurando validações jurídicas das violações e consequentemente atrapalhando uma possível linha investigativa.

O autor pontua que a abertura que a atividade policial dá aos policiais possibilita a existência do fenômeno da suspeição e consequentemente a ideia de sujeito suspeito, criando um conceito monolítico de suspeito.

No cotidiano policial, a suspeição está diretamente ligada ao caráter estruturalmente seletivo do sistema penal, produzindo uma lógica sobre os corpos dos indivíduos.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2017) mostra que embora haja uma estrutura padrão dos formulários utilizados pelas polícias, a qualidade dos registros é empobrecida. Os dados relativos a local, hora, autoria e vítima encontram-se presentes em grande quantidade nos registros analisados, entretanto, informações acerca do contexto dos fatos encontram-se parcamente apresentadas, dificultando uma possível análise sobre a natureza de ocorrência dos crimes, então questões como a motivação e a relação entre a vítima e o autor não são comumente vistas nos autos. Os autores enxergam a formação de um ciclo que, justamente pela pouca informação existente nos registros, impossibilita que existam investigações, planejamentos ou incentivos à coleta.

Nos boletins de ocorrência consta o campo “cútis” para se referir à raça dos sujeitos envolvidos na abordagem, dentro de uma categoria feita para falar sobre a cor de pele desses indivíduos, podendo haver variação de respostas entre brancos, pardos, pretos e amarelos. Pode-se perceber que a cor apresenta uma categoria empobrecida dos registros policiais, os quais distorcem noções consideravelmente distintas e complementares, que são raça e cor. Tendo em vista que o único campo disponível para percepção quantitativa racial das abordagens e apreensões analisadas é o anteriormente citado, verifica-se uma distorção acerca da noção racial, assim como sua simplificação.

Para Guimarães (RIOS; GATO; SOTERO, 2016), as categorias de cor ocultam uma classificação racial completa, concebidas como quase que naturais ou nativas, sendo uma noção superficial. A ideia de cor foi usada em alguns momentos históricos, como na Bahia na década de 50, e teve um uso político que visava reduzir a racialização dos negros à diferença de tom de pele. Guimarães aponta o fato de a ideia de cor por si só não sustentar um sentido para a ação social, há a necessidade de que a ideia de raça também seja considerada, tendo em vista que o que informa um dos sustentáculos da ideia de cor é o prestígio social, sendo esta categoria uma espécie de ocultadora da profundidade das relações raciais no Brasil. A estrutura brasileira é informada pela ideia de raça, preceitos raciais e tradição histórica racial e é essa estrutura que aufere noção de sentido às cores. A racialização é construída através de um argumento que a associa à uma barreira construída desde a colonização, a qual propicia um diferencialismo cultural que naturaliza o processo de subalternização da população negra no país. O racismo, portanto, trabalha sob uma lógica dúbia: ele biologiza a cultura e culturaliza a biologia.

Produção de estatísticas

Lima (2008) afirma que mesmo existindo dados sobre a criminalidade no Brasil, eles não necessariamente são convertidos em informações e conhecimento. O Brasil se mostrou incapaz de avançar no processo de organização, produção e utilização de estatísticas criminais, resultando, inclusive, em uma incapacidade de que também houvesse alguma coordenação política para a existência de um possível ciclo cumulativo de conhecimento acerca dos dados da segurança pública.

As estruturas de segurança e justiça criminal mantiveram-se quase que intactas após o processo de redemocratização em 1988, sendo reproduções muitos similares à do regime militar de 1964. Dentro desse aparato, a burocracia conservou-se como aquela que já havia perpassado a segunda metade do século XX.

O olhar das instituições de segurança é voltado para o crime, não como categoria penal, mas sim como categoria socialmente percebida e sentida. Portanto, as estatísticas criminais, segundo o autor, servem não para que se possa pensar o melhor funcionamento das instituições, não de modo a coordenar suas ações, mas sim justificar sua atuação. O resultado dessa dinâmica é a pouca absorção em lógicas democráticas de resolução de conflitos.

Costa e Lima (2017) dissertam que a produção de estatísticas criminais precisa compreender que as categorias e as classificações são socialmente construídas em cada local, ou seja, o que é crime e quem seriam os criminosos são questões que variam em função da determinação do sistema de segurança pública. Crimes e criminosos também estão sujeitos a processos sociais, políticos e culturais que possuem a necessidade de serem mensurados em políticas públicas. Há o reconhecimento dos autores sobre a existência da discricionariedade no sistema criminal, entretanto é necessário analisar seus critérios, problemas e limites. Os autores alegam que os Boletins de Ocorrência (B.O.) funcionam como uma espécie de “ficha de entrada” nos registros e nas informações policiais, sendo uma narrativa mais abrangente e, a princípio, provisória.

Apesar de haver uma crença de que as estatísticas criminais possuem uma gama considerável de erros no processo de suas produções, convém considerá-las relevantes para a produção de políticas públicas que atuem contra o crescimento da criminalidade. Um ponto colocado por Costa e Lima é o pouco detalhamento dos registros criminais, constando de modo rarefeito as circunstâncias e os detalhes dos crimes. As informações sobre a vítima, o agressor e a relação entre eles também são constantemente inexistentes, e quando presentes, são de pouca qualidade.

Se bastando ao sexo, ao endereço, à raça e à idade, os registros encontrados em minha pesquisa evidenciam que o sistema de preenchimento que a Polícia Civil realiza nas delegacias é seletivo, empobrecido e racializa quase que totalmente apenas as vítimas, sendo os curadores parcialmente racializados e os agentes de segurança pública pouco racializados, de modo a evidenciar incompletudes de um sistema que não aparenta ter interesse acerca da cor dos policiais envolvidos.

Classificação racial

Davenport (2020) apresenta a ideia de raça como flexível e impermanente. Sendo assim, a fluidez da raça redefiniu nossa compreensão sobre identidades raciais, entendendo que as fronteiras raciais e étnicas no Brasil são nebulosas. Osório (2003) afirma que a ideia do termo “pardo”, por exemplo, muitas vezes absorve indivíduos que possuem compreensão racial dúbia, sendo um conceito guarda-chuva para um contexto relacional específico de pertença a um grupo discriminado ou discriminador. A grande ambiguidade é proposta pelo autor quando ele diz respeito ao “pardo” que paira sobre a sua fronteira com o “branco”.

O método utilizado pela Polícia Civil é a heteroidentificação de pertença, ou seja, outra pessoa define o grupo étnico-racial do sujeito. Ao utilizar este método, Osório (2003) nota que há uma complexa relação entre pessoas consideradas pardas (dentro do que ele convenciona como aparência limítrofe) e questões socioeconômicas, compreendendo que há potencialmente um embranquecimento de indivíduos pardos considerados mais abastados. A heteroatribuição, assim como a autoatribuição, é cerceada por subjetividades que interferem no processo de identificação racial dos sujeitos do sistema criminal.

O autor pontua que notadamente há uma tendência de branqueamento dos indivíduos à medida que se “sobe” no estrato social e ocultação da ascendência negra (caso seja possível). É colocado o fato de que o pertencimento de traços do grupo discriminado constitui inferioridade e preterimento sistemático perante a sociedade. Também é relevante notar que o objetivo da classificação não necessariamente seja a observação criteriosa acerca do fenótipo do indivíduo, mas também um enquadramento relacional, estético e local.

Resultados dos boletins de ocorrência

A partir de uma parceria constituída com o Ministério Público do Estado de São Paulo através da Promotoria de Justiça Cível de Campinas, foi desenvolvida a presente pesquisa acerca dos perfis dos sujeitos envolvidos nas ocorrências, tipos de violência cometidos e as condições situacionais em que os fatos ocorreram.

Os dados mostrados a seguir são oriundos de todos os procedimentos administrativos analisados, os quais foram submetidos ao preenchimento de dados em um formulário do Google Forms pré-testado. O Forms analisava as variáveis de raça, gênero, idade, escolaridade, força de segurança, tipo de violência, tipo de ato infracional cometido e socioespacialidade das ações. Também é importante ressaltar que nem todos os gráficos culminam em soma de 100% das variáveis, já que algumas delas podem ser acumulativas, como o “tipo de ato infracional”, que pode haver violências física e psicológica, por exemplo. Foi utilizada estatística descritiva básica para a realização deste trabalho.

A maioria dos adolescentes acusados de ato infracional tinha 17 anos (40,57%) no momento do registro da ocorrência. Adolescentes de 16 anos representam 33,02%, seguidos de adolescentes com 15 (16,04%) e 14 anos (4,72%). Jovens com menos de 14 e mais de 17 anos, bem como jovens sem idade informada nos documentos analisados representam percentuais menores do total.

Gráfico 1: Percentual de adolescentes acusados de ato infracional, de acordo com a idade no momento de registro da ocorrência (Campinas, 2015-2018) (N=106)

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Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

Adolescentes do sexo masculino representam a maior parte dos adolescentes acusados de prática de ato infracional, nos procedimentos analisados: 95,28%.

Gráfico 2: Percentual de adolescentes acusados de ato infracional, de acordo com o sexo (Campinas, 2015-2018) (N=106)

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Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

Jovens pardos são cerca de 48,11% dos adolescentes acusados de prática de ato infracional nos procedimentos apresentados; 32,08% são brancos e 12,26% são pretos. Não foi registrada raça/cor para 5,66% dos jovens registrados. Somados, pretos e pardos (negros, de acordo com as classificações oficiais) são 60,37% dos jovens.

Gráfico 3: Percentual de adolescentes acusados da prática de ato infracional, de acordo com a cor (Campinas, 2015-2018) (N=106)

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Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

Não consta informação acerca da escolaridade de 37,74% dos adolescentes. Os que possuem ensino fundamental completo são 36,79%; com fundamental incompleto, 16,04%. Estudantes com nível médio incompleto são 6,60% dos jovens identificados, sendo que jovens com nível médio completo ou superior incompleto representam parcelas menores do total.

Gráfico 4: Percentual de adolescentes acusados de prática de ato infracional, de acordo com a escolaridade (Campinas, 2015-2018) (N=106)

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Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

Boa parte dos agentes de segurança nomeados nos boletins de ocorrência eram Policiais Militares, tanto os condutores (80,28%) quanto as testemunhas (77,46%), seguidos por membros da Guarda Civil Municipal, a qual possui um percentual de 9,85% tanto para condutores quanto para testemunhas. Não foram descritas as forças de segurança em 7,04% dos casos estudados, sendo o mesmo percentual para condutores e testemunhas. Policiais Civis são 2,81% dos casos, tanto para testemunhas quanto para condutores. Há a presença de civis (ou seja, pessoas sem vinculação às forças de segurança) apenas entre as testemunhas, e somente em 2,81% dos casos.

Gráfico 5: Percentual de condutores e testemunhas da apreensão, de acordo com a força de segurança que representam (Campinas, 2015-2018) (N=71)

Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

É considerável a proporção da ausência de informação acerca da cor dos condutores e das testemunhas, chegando a 64,78% e 61,97%, respectivamente. Condutores e testemunhas brancos são 28,16% e 25,35%, respectivamente. 7,04% dos condutores e 9,85% das testemunhas são pardos. Nenhum condutor informado é negro e 2,81% das testemunhas o são, dentre as pessoas que tiveram sua raça/cor informada.

Gráfico 6: Percentual de condutores e testemunhas da abordagem e apreensão, de acordo com a cor (Campinas, 2015-2018) (N=71)

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Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

Como mostra o Gráfico 7, 49,30% dos curadores não tiveram a escolaridade informada; 22,54% deles têm ensino fundamental completo e 16,90% possuem ensino médio completo. Aqueles que possuem ensino fundamental incompleto são 5,63%, e 4,23% possuem ensino superior completo, enquanto 1,41% possuem superior incompleto.

Gráfico 7: Percentual de curadores, de acordo com sua escolaridade (Campinas, 2015-2018) (N=71)

Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

Boa parcela dos atos infracionais imputados aos adolescentes foram classificados como roubo (28,17%), seguidos por receptação (15,49%), tráfico de drogas (12,68%) e dirigir sem habilitação (11,27%). O crime de resistência soma 8,45% dos casos, assim como posse ou porte ilegal de arma (8,45%), seguidos por desobediência (7,04%). Os demais atos infracionais possuem porcentagens muito pequenas comparadas ao total.

Gráfico 8: Percentual de procedimentos, de acordo com os atos infracionais registrados imputados aos adolescente (Campinas, 2015-2018) (N=71)

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Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

Ao aglutinar os atos infracionais em categorias (de acordo com o Código Penal e a Legislação Penal Especial), os crimes contra o patrimônio detêm expressiva maioria, sendo 73,24% dos casos, seguidos por crimes de drogas (21,13%), contra a administração pública (16,90%), trânsito (15,49%), contra a pessoa (14,08%) e, em menor razão, armas (8,45%) e formação de quadrilha ou bando (considerado um crime contra a paz pública, mas que aqui aparece isolado e representando 1,41% dos casos).

Gráfico 9: Percentual de procedimentos, de acordo com os atos infracionais contabilizados agrupados em categorias (Campinas, 2015-2018) (N=71)

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Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

No que se refere à confissão da prática de ato infracional por parte dos adolescentes aos quais se atribui a prática de ato infracional, e considerando os percalços em se encontrar essas informações nos boletins de ocorrência, foi dado foco aos depoimentos dados pelos adolescentes ao Ministério Público. Em 53,52% dos casos vistos, os adolescentes confessam terem praticado os atos infracionais dos quais são acusados.

Gráfico 10: Percentual de confissões da prática de ato infracional, feitas pelos adolescentes acusados (Campinas, 2015-2018) (N=71)

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Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

Segundo os relatos analisados e categorizados a partir dos boletins de ocorrência, na maioria dos casos (77,46%) a abordagem e a apreensão dos jovens aconteceram em situação de patrulhamento de rotina. Em 39,44% dos casos os policiais alegaram que houve abordagem em decorrência de verificação de atitude suspeita. Existiram relatos de tentativa de fuga em 53,52% dos registros, sendo que em 29,58% foi alegada a perseguição de veículo. Abordagens provenientes de ação policial com o intuito de investigar ou apurar crimes anteriormente ocorridos são informadas em 33,80% dos casos analisados, e em 18,31% os policiais estavam atendendo a chamados por rádio. Foi informada a participação de adultos nos relatos dos condutores da prisão em 9,86% dos casos, e de outros adolescentes em 1,41% dos registros.

Gráfico 11: Percentual de procedimentos, de acordo com razões e circunstâncias da abordagem, na versão dos policiais (Campinas, 2015-2018) (N=71)

Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

De acordo com os relatos dos jovens apreendidos, coletados e categorizados a partir de seus depoimentos ao Ministério Público, em 71,83% dos casos os jovens disseram estar na rua ou em local público e aberto no momento da abordagem; em 16,90% dos casos analisados, os adolescentes afirmaram que estavam em suas residências e, em 5,63%, na residência de terceiros. Adolescentes relataram estarem indo ou voltando de atividades de lazer em 9,86% dos casos; em 4,23% dos procedimentos há informação de que estavam em estabelecimento comercial e, em 2,82%, de que estavam indo ou voltando de estabelecimento comercial. A presença de adultos ou de outros adolescentes no momento da apreensão é informada em relatos existentes em 16,90% e 46,48% dos procedimentos estudados.

Gráfico 12: Percentual de procedimentos, de acordo com circunstâncias da abordagem, na versão dos adolescentes (Campinas, 2015-2018) (N=71)

Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

No momento de aglutinação de dados adjacentes aos boletins de ocorrência, foram procuradas três informações distintas sobre a denúncia da violência policial, já no momento do registro da ocorrência e da apreensão dos adolescentes pela Polícia Civil: se existe relato do jovem acerca da violência sofrida; se existiu questionamento da autoridade policial que lavrava o boletim de ocorrência a respeito da prática de violência pelos autores da apreensão contra o adolescente; e se existiu registro formal da violência sofrida pelo jovem no boletim de ocorrência.

Gráfico 13: Percentual de procedimentos, de acordo com a existência de relato do adolescente, de questionamento pela autoridade policial civil e de registro no Boletim de Ocorrência da violência sofrida (Campinas, 2015-2018) (N=71)

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Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

A violência física foi a forma de violência protagonista realizada pelos policiais contra os jovens, estando presente em 95,77% dos casos analisados, seguida pela violência psicológica (35,21%) e verbal (28,17%). Prática de violência sexual aparece em um percentual minoritário dos procedimentos analisados (4,23%).

Gráfico 14: Percentual de procedimentos, de acordo com o tipo de violência sofrida (Campinas, 2015-2018) (N=71)

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Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

Pensando na tortura como meio para obtenção de provas, mas também como meio de correção moral, obteve-se o resultado a ser apresentado a seguir. Foram coletadas informações nos procedimentos analisados acerca da possibilidade de as violências praticadas pelos policiais contra os adolescentes aos quais se atribui a prática de atos infracionais terem como intuito a obtenção de provas (confissão, testemunho, localização de bens e pessoas etc.). O que pode ser visto de acordo com as informações coletadas nos depoimentos dos acusados ao Ministério Público do Estado de São Paulo é que em 39,43% dos casos existe menção expressa, por parte dos jovens, ao fato de que as violências que eles teriam sofrido tinham como finalidade a obtenção de provas. 

 

Gráfico 15: Percentual de procedimentos, de acordo com a existência de relato do adolescente que informa que a violência sofrida por ele foi praticada com a finalidade de obtenção de prova (Campinas, 2015-2018) (N=71)

https://lh4.googleusercontent.com/WTz9YbV1SP1wE0l_-pzPANINwt3TkeWKJQ2qCF2FLl8xawVkhhooP1_JkggVKbxYE_TZvJRTDR8uZrJ103k55UpHRYjWh8Z1ggi1XhCLkt4YT05Vv9HYyUlg09rZmEBVK-0ihTpHDlj4jahfcQ

Fonte: Projeto de pesquisa “Violência policial contra adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas” (LABORATÓRIO DE ESTUDOS DE POLÍTICA E CRIMINOLOGIA, 2021).

Conclusões

As conclusões deste artigo reforçam algumas das conclusões já existentes na literatura acerca da justiça criminal para adultos no Brasil, ou seja, o padrão de atuação dos operadores da segurança pública em relação aos adolescentes reproduz as práticas ostensivas e seletivas realizadas contra adultos em situações de abordagens e apreensões policiais. Pretos e pardos abordados e apreendidos representam quase duas vezes mais que brancos na mesma situação, havendo uma sobrerrepresentação negra incluída no fenômeno na suspeição criminal, evidenciando seletividade racial nos padrões operacionais da polícia.

Um dos achados deste artigo é o fato de a filtragem racial ser um dos mecanismos de manifestação do racismo estrutural, sendo o conceito de filtragem racial operacionalizado de modo hierarquicamente inferior ao de racismo estrutural. Compreendendo que através de mecanismos identificados como estruturantes na sociedade, como o racismo como preconceito associado ao fenótipo dos sujeitos e aos signos relativos à negritude, a seletividade racial que a filtragem racial representa se mostra como uma das vias de operacionalização de um modo de discriminação sistemático.

Adolescentes de 17 anos, pardos e do sexo masculino são a parcela mais vitimizada pela polícia de Campinas, reproduzindo os padrões existentes a nível nacional relativos aos fenômenos do encarceramento em massa e da letalidade policial, ou seja, homens negros jovens, mesmo menores de idade, seguem sendo o setor social que é foco de ações policiais ostensivas. Outra representação ligeiramente similar às taxas de adultos é a do perfil dos atos infracionais cometidos por adolescentes, sendo a maior parte deles encarcerados por crimes contra o patrimônio, seguidos de crimes de drogas, demonstrando que a manifestação da seletividade não é apenas racial, mas também com caráter protetivo do patrimônio, diretamente ligado ao controle violento da circulação de riquezas.

Em relação paradoxal à racialização dos adolescentes acusados de ato infracional, nos registros os policiais não são frequentemente racializados, demonstrando um possível intuito do Estado de racializar seus acusados, mas não os seus agentes de segurança pública. Deste modo, o manto da neutralidade estatal permanece mantido no quesito racial, mostrando registros quantitativamente acurados sobre seus suspeitos, mas pouco específicos sobre a raça de seus agentes.

Também pode-se inferir que existem dois tipos de heteroidentificação racial: o primeiro seria o realizado pelos policiais nos momentos de abordagem e apreensão dos adolescentes; e o segundo que parte da Polícia Civil, que registra à revelia da noção do escrivão sobre a caracterização racial dos jovens. Compreendendo que a percepção do policial e a percepção do escrivão podem ser diferentes, nota-se a existência de dois tipos de filtragens raciais.

O quesito escolaridade, tanto dos curadores, mas principalmente dos adolescentes, é demonstrativo de como o público envolto com processos sistemáticos de violência racial também possui o traço da baixa escolaridade. Apesar do quantitativo relevante de ausência de informação sobre a escolaridade dos curadores, é possível notar nos dados padrões de baixo nível escolar entre os responsáveis legais dos jovens. Já parte considerável dos adolescentes apresentam descompasso nos processos de idade-série, exibindo também um processo de marginalização que não é apenas provocado pelo sistema de justiça criminal e pela seletividade racial, mas também pelo sistema educacional.

A Polícia Militar é protagonista nas ações violentas, seguindo seu histórico ostensivo mesmo após a redemocratização, de modo a exibir sua gama de práticas imoderadas sob a sua aparente liberdade de práticas seletivas, denominadas tirocínio. Ao ser analisada a variável sobre as circunstâncias de abordagem e apreensão, nota-se que o patrulhamento de rotina é comumente praticado pela força de segurança supracitada, exibindo a escolha institucional da realização de uma espécie de “busca ativa” de atitudes criminosas em ambientes públicos e abertos. Tal concatenação de circunstâncias retira a possibilidade de normatização de padrões de conduta para a escolha de suspeitos. Coloca-se em xeque o que pode ser entendido como atitude suspeita ou quem são os suspeitos, sobrando muitas vezes aos policiais o saber-fazer obtido pela prática das ruas. A presunção de inocência também é colocada em posição de escanteio justamente pela ausência de critérios formais, os quais demonstram abertura das polícias, especialmente a Militar, para que características marcadas pelo estigma sejam criminalizadas, mesmo dentre adolescentes.

O patrulhamento de rotina, comumente associado à verificação de atitude suspeita, abre portas para a compreensão que, na maioria dos casos de abordagens e apreensões violentas, os policiais não possuem critérios institucionalizados para que selecionem os suspeitos de cometimento de ato infracional. Para além da racialização dos suspeitos, a questão socioespacial também chama atenção: a maior parte dos adolescentes estava em locais públicos no momento da ocorrência dos fatos, o que toca na questão do direito à cidade por parte de jovens negros, para além da possibilidade de prova testemunhal de pessoas que sequer estavam envolvidas com o ocorrido. O processo de circulação nas ruas e praças, assim como o direito de ir e vir dos adolescentes, é regulado e cerceado pela atuação das forças de segurança, como demonstram os dados. Os processos de regulação, de abordagem violenta e de controle de circulação de jovens representam também um controle de corpos e bens.

Percebe-se, pela construção dos relatos, que a obtenção de confissão é uma das facetas da prática de tortura contra os adolescentes envolvidos, buscando-se realizar a construção cartorial da verdade, mesmo que esta exija procedimentos que não estão amparados na dinâmica legal. Assim, a aplicação de dor e a violência tornam-se uma linguagem utilizada para que possa ser obtida a verdade. O processo construtivo da verdade, que vai desde a abordagem e a apreensão violentas contra os adolescentes até o aceite da versão policial por parte do delegado sem a consulta da versão dos adolescentes, produz um registro qualitativamente fraco, veridicamente questionável e juridicamente duvidoso. Este fenômeno corrompe a produção de provas e gera obstrução ao controle externo das polícias. Somado a este fato, devem ser levadas em consideração as confissões obtidas mediante tratamento violento, corrompendo não apenas o que pode ser verdade, mas também o princípio de proteção da vida e da dignidade dos adolescentes.

Outro dado a ser adicionado nesta conclusão é a ausência do questionamento dos responsáveis da Polícia Civil sobre a violência que os adolescentes teriam sofrido. Além de desfalcar o processo legal necessário, o qual demanda a passagem pelo Instituto Médico Legal que os jovens precisariam fazer para a emissão do laudo que vai para juntada de documentos no processo aberto contra os policiais, tal ausência também expõe a vulnerabilização que os adolescentes estão expostos ao não serem protegidos também pela força de segurança que é responsável pelo processo de inteligência investigativa.

Ao ser analisado o percentual de tipos de atos infracionais que foram agrupados como mais comumente notados pela polícia, podem ser verificadas duas questões: a busca patrimonialista de delitos e o foco na busca por drogas ilícitas. O cruzamento destes dados com a variável racial também demonstra a reprodução do padrão seletivo não só de pessoas negras, mas também da busca de delitos específicos deste público. Assim, a dinâmica patrimonialista e da guerra às drogas ajudam a compor o quebra-cabeças de um sistema seletivo que privilegia o controle de bens, patrimônios e entorpecentes em detrimento da garantia de direitos fundamentais aos jovens violentados.

Calcada na compreensão de que o adolescente é sujeito de direitos e amparados pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, conclui-se que a questão exposta neste artigo extrapola a alçada criminal, criando uma situação de acumulação de desigualdades, fazendo com que a justiça criminal não apenas reproduza desigualdades, como também crie novas.

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