A EFICIÊNCIA POLICIAL E SEUS INDICADORES
Marcos Flávio Rolim
Doutor em Sociologia pela UFRGS, com pós-doutorado na mesma Instituição. Especialista em segurança pública pela Universidade de Oxford (UK). Professor do Mestrado em Direitos Humanos da UniRitter; membro fundador do FBSP, integra a Assembleia Brasil da Anistia Internacional e o Conselho da Artigo19.
País: Brasil Estado: Rio Grande do Sul Cidade: Porto Alegre
Email: marcos@rolim.com.br Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1076-5990
Vanessa de Quadros Pereira
Advogada, assessora jurídica do Ministério Público, na 2ª Promotoria de Justiça Criminal de Cachoeirinha-RS e pós-graduanda em Direito e Processo e Penal no Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), Porto Alegre/RS.
País: Brasil Estado: Rio Grande do Sul Cidade: Cachoeirinha
Email: vanessadequadrospereira@hotmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0715-3769
Contribuições dos autores: O artigo foi redigido com a coautoria de Vanessa de Quadros Pereira, que realizou a pesquisa via LAI, recolhendo e sistematizando os dados de secretarias estaduais de segurança. Marcos realizou a pesquisa bibliográfica e fez a redação final do texto.
RESUMO
O texto discute os critérios para se medir a eficiência policial, revisando aspectos relevantes do debate internacional e apresentando os resultados de estudo empírico a respeito dos indicadores de eficiência policial operantes nos estados brasileiros quanto às polícias civis e militares. O estudo foi realizado a partir das respostas obtidas, via Lei de Acesso à Informação (LAI), das secretarias estaduais de segurança a cinco questões básicas. Encontramos que a grande maioria dos gestores estaduais não possui informações sobre indicadores de eficiência policial, que não há um padrão para esses indicadores no Brasil e que as polícias estaduais usam descritores operacionais e registros criminais como indicadores de eficiência, sem consideração por resultados efetivos na redução do crime e da violência, pela redução da letalidade, pela legitimidade policial e pela confiança do público nas corporações.
Palavras-chave: Eficiência policial. Indicadores de eficiência. Legitimidade. Confiança.
ABSTRACT
POLICE EFFICIENCY AND ITS INDICATORS
The present article debates the criteria used to measure the efficiency of police activity, reviewing relevant aspects of the international debate, as well as presenting the results of an empirical study on the efficiency indicators currently used by brazilian states to measure civil and military police activity. The study was based on the answers from the security departments of each state to a set of five questions, obtained through the Access to Information Law (LAI). Our findings show that the vast majority of policy makers at state level didn't have the requested information and that there is no standard for such indicators in Brazil. Also, state police use operational descriptors and criminal records as indicators of efficiency, with no consideration for the effective results in reducing crime, violence and lethality, or regarding police legitimacy and public confidence in corporations
Keywords: Efficiency of police. Indicators of efficiency. Legitimacy. Confidence.
Data de Recebimento: 09/03/2021 – Data de Aprovação: 02/11/2021
DOI: 10.31060/rbsp.2022.v.16.n3.1445
Introdução
Um dos mais importantes estudiosos da polícia no mundo, professor emérito da London School of Economics and Political Science (LSE), Robert Reiner, sustenta que a noção de bom policiamento e a maneira como ele deve ser avaliado assinalam uma enorme lacuna nos debates contemporâneos sobre o trabalho das polícias (REINER, 2002, p. 83). A primeira edição desse trabalho de Reiner é de 1998. Desde então, passaram-se mais de 20 anos e a avaliação a respeito da eficiência do trabalho policial segue desafiando as polícias e os pesquisadores. O que entendemos por eficiência policial? A pergunta parece simples, mas quando começamos a coletar respostas entre os gestores e entre os próprios policiais, vemos o quanto ela é complexa e o quanto carecemos de um entendimento básico a seu respeito.
É preciso considerar, inicialmente, que as forças policiais variam muito em todo o mundo e inclusive dentro de um mesmo país. Temos, em um polo, polícias que são legitimadas pelo consentimento do público, como, notavelmente, o modelo britânico e, em outro polo, polícias que servem a ditaduras e que operam sem qualquer consideração pelas necessidades do público, como ocorre atualmente em países tão diferentes como Nicarágua e Belarus. Esses pólos opostos permitem lembrar o quanto a eficiência das polícias pode ser afetada por fatores externos, de natureza política, histórica, cultural, econômica e social. Por isso, quando discutimos a eficiência policial, não é possível cingir o debate à estrutura interna das organizações como seus recursos humanos e materiais, seus processos de seleção e formação, a maneira como as carreiras policiais são organizadas, os mecanismos de incentivo operantes nas corporações ou as dinâmicas de controle interno e correição. As polícias, afinal, são instituições históricas que refletem, em larga medida, características das sociedades em que atuam e que podem se manter como “enclaves autoritários” (GONZÁLES, 2020) mesmo em democracias consolidadas. Também, por isso, não há como se desvincular os esforços em favor da eficiência policial da luta mais ampla pelo aprofundamento das democracias contemporâneas e pela eficiência do Poder Público.
Esse artigo sintetiza algumas contribuições teóricas a respeito da eficiência policial e expõe os resultados de um estudo empírico, de natureza exploratória, realizado em outubro de 2020, a partir de informações obtidas com as secretarias estaduais de segurança pública, sobre os indicadores de eficiência utilizados para medir o desempenho das polícias civis e militares brasileiras. Com o artigo, buscamos estimular o debate sobre quais seriam os indicadores mais adequados para se medir o desempenho institucional das polícias1.
Eficiência policial
No catálogo de Teses e Dissertações da Capes, a busca pelas palavras agregadas “indicadores de eficiência policial” não encontrou qualquer trabalho; o mesmo ocorreu com a busca por “eficácia policial” e “indicadores de desempenho policial”. A busca com a expressão “eficiência policial” localizou sete trabalhos, mas eles tiveram outros objetos que não a eficiência policial; o mesmo ocorrendo com a busca por “eficiência da atividade policial”, que localizou um trabalho. O catálogo possui 135 estudos, com diferentes perspectivas e recortes, que são localizados com as palavras agregadas “atividade policial”, e uma busca ampliada com a palavra “polícia” localizou 3.773 trabalhos. Na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, os resultados foram semelhantes, sendo que a busca pelas palavras agregadas “eficiência policial” localizou quatro trabalhos que também não tiveram o tema como seu objeto de estudo. As buscas pela expressão “eficiência policial” e “eficácia policial” na plataforma Scielo localizaram um estudo para cada expressão (ROLIM; HERMANN, 2018; ZANETIC, 2017) que aborda a confiança nas polícias, mas não se dedica especificamente à eficiência.
Apesar dos conhecidos limites de levantamentos por palavras de busca, temos um quadro que sugere a existência de uma tradição de pesquisas acadêmicas sobre diversos aspectos da organização e da atividade policial, mas que o tema específico da eficiência policial ainda não despertou um interesse maior. A impressão parece ser reforçada pelo contraste revelado pelas buscas genéricas com as mesmas expressões. Assim, por exemplo, a busca feita no Catálogo da Capes por “indicadores de eficiência” encontrou 225 trabalhos, a busca por “indicadores de eficácia”, 35 resultados e a busca por “indicadores de desempenho”, 2.417 trabalhos.
A literatura especializada no Brasil, a propósito, produziu diagnósticos precisos sobre muitos dos problemas a serem enfrentados quanto às polícias brasileiras, o que nos permitiu avançar em uma crítica ao modelo de polícia; identificar déficits expressivos em áreas diversas como seleção, formação, constituição das carreiras policiais, controle externo, accountability e transparência, gestão de inteligência e de informações, entre outros, e perceber a gravidade de temas como a violência policial, o racismo institucional, a formação de esquadrões da morte e de milícias e a vitimização policial. A discussão a respeito de como se medir a eficiência policial, entretanto, ainda é incipiente. As dificuldades desse debate são muitas, a começar pela situação apontada criticamente pelo oficial da PMBA, João Apolinário da Silva:
Não é uma prática de se perscrutar as atividades de segurança pública com base em indicadores. Alguns gestores ainda nutrem algumas desconfianças no que diz respeito à coleta e disseminação de dados nesse setor, principalmente quando esses dados devem chegar ao domínio público. (SILVA, 2008, p. 4).
Observações dessa natureza aparecem em alguns outros estudos no Brasil como, por exemplo, pela pesquisa qualitativa de Pereira (2009) que entrevistou gestores da PM do Espírito Santo e cuja conclusão foi assim exposta:
Os resultados apontam para o fato de que um item imprescindível para qualquer análise de eficiência organizacional, a avaliação de desempenho, é relegada a segundo plano quando individual, ou simplesmente não existe, quando relacionada a grupos de trabalho ou ao órgão. A conclusão que se chega para esse abandono parece centrar-se em duas linhas de análise que se completam. A primeira decorre do medo de ser avaliado e, em função disso, ser pressionado a mudar o comportamento organizacional. A segunda deriva do jogo do “perde e ganha”. Se outros órgãos públicos, concorrentes na atividade, não se avaliam, ficando numa zona de incerteza perante a população, avaliar-se pode demonstrar uma falha na estratégia de permanecer incólume a ataques. (PEREIRA, 2009, p. 1).
Mastrofski (1999) propõe seis indicadores para a avaliação do trabalho policial a partir da perspectiva dos destinatários do serviço: a) O quanto os policiais estão disponíveis e próximos para prestar ajuda (Attentiveness); b) O quanto se confia que o serviço policial será prestado sem erros (Reliability); c) Quão pronta foi a resposta da polícia e, caso não tenha sido possível o atendimento rápido, se as razões são justificáveis e se foram explicadas (Responsive service); d) O quanto os policiais foram competentes e capazes de resolver a demanda (Competence); e) O quanto os policiais se revelaram educados e se comportaram como se espera que se comportem (Proper manners); e f) O quanto os policiais trataram as pessoas de forma justa e respeitosa (Fairness).
Reynoso et al. (2017), partindo da realidade mexicana, reconhecem a importância dos temas propostos por Mastrofski (1999), mas propõem uma matriz para a avaliação do trabalho policial composta por quatro dimensões: a) organizacional; b) axiológica; c) humana; e d) tecnológica; o que torna o processo mais complexo e sinaliza um caminho integrador de avaliação.
Já Mohor (2007), na mesma linha de complexidade e a partir da realidade chilena, sustenta a necessidade da construção de indicadores para a avaliação do trabalho policial que sejam capazes de estimar o impacto das práticas policiais, dos seus resultados, dos processos e das atividades. Em revisão da literatura internacional, a pesquisadora destaca duas fontes para construção dos indicadores: a) fontes institucionais – dados registrados pelas próprias polícias (procedimentos operacionais, denúncias recebidas, nº de prisões, contingentes policiais etc.); e b) pesquisas de vitimização e de satisfação – estimativa mais acurada da quantidade de delitos praticados e percepção dos residentes sobre o trabalho policial. Os indicadores propostos seriam: a) índices de criminalidade e de violência, com dados de pesquisas de vitimização e com destaque para as taxas de homicídio; b) sensação de insegurança na população; c) atividades policiais, com destaque para investigação e prevenção; d) indicador de práticas policiais desviantes (malas prácticas) – corrupção, violência, ações ilegais, arbitrariedade, etc.; e) indicadores de gestão institucional – uso eficiente dos recursos, qualidade e resultados dos processos de seleção e formação policial, fluxo de informações, controle interno, etc.; e f) indicadores de relacionamento comunitário, com destaque para a confiança nas polícias. No Chile, assinale-se, pesquisas de vitimização que medem também a percepção e a confiança do público sobre a polícia, tem se realizado anualmente desde 2005.
Cano (2002), por seu turno, chama a atenção para a necessidade de se diferenciar as avaliações do trabalho policial em três níveis: a) o desempenho individual dos policiais, aos moldes do que realiza o Comitê Sheeny no Reino Unido; b) o impacto de um programa específico de trabalho policial; e c) a qualidade de uma organização policial como um todo, o que exige uma gama de dimensões, abordagens e indicadores. O autor propõe oito indicadores: a) incidência criminal e desordem; b) atividade policial; c) taxa de esclarecimento de investigações criminais; d) sensação de insegurança; e) avaliação da polícia pela comunidade; f) autoimagem da polícia; g) corrupção, violência e arbitrariedade policial; e h) estrutura e gestão da instituição. Nesse conjunto, o autor propõe que o tema da autoimagem da polícia envolva estudos com aplicação de escalas de autoestima; de status ou prestígio da profissão policial, em comparação com outras profissões; levantamentos sobre a percepção da imagem que os policiais pensam que a sociedade tem deles; aplicação de escalas de satisfação no trabalho; e perguntas sobre o desejo dos policiais de que seus filhos sejam policiais.
Países de democracia consolidada costumam contar com fortes mecanismos internos de correição policial, entre outras formas de controle que envolvem, por exemplo, a presença de comitês de cidadãos e instituições que inspecionam as polícias. As polícias britânicas, por exemplo, são fiscalizadas em diferentes planos por 17 agências de supervisão governamental (KIRBY, 2013, p. 9)2. O tema da eficiência policial é também tratado a partir da formação de organismos especializados e independentes. No Reino Unido, por exemplo, Her Majesty’s Inspectorate of Constabulary and Fire & Rescue Services – HMICFRS (Inspetoria da Polícia e dos Serviços de Bombeiros e Resgate de Sua Majestade) é um órgão autônomo dedicado a avaliar o desempenho das 43 polícias da Inglaterra e do País de Gales. Essa instituição elabora um relatório anual chamado Police Effectiveness, Efficiency and Legitimacy (Efetividade, Eficiência e Legitimidade da Polícia) que mede o desempenho de cada força policial autônoma.
Para ter presente a distinção entre eficácia3 e eficiência, destacamos a definição clássica do professor Wesley Skogan:
Eficácia significa desempenho de tarefas: organizações eficazes são aquelas que atendem aos desafios recebidos, satisfazem demandas de serviço ou resolvem problemas. Na terminologia da análise de sistemas, são organizações que convertem uma grande proporção de seus inputs (entradas/demandas) relacionadas a tarefas em outputs (saídas/resultados) desejados. A eficiência, por outro lado, é definida em termos de custos de processamento. Agências eficientes são aquelas que convertem entradas em saídas com menos esforço organizacional. (SKOGAN, 1976, p. 278).
A eficácia, assim, diz respeito à produção de resultados tomados como positivos. Uma prática eficaz, entretanto, pode não ser eficiente se sua relação custo/benefício não for adequada. Essa distinção coloca o desafio da avaliação do desempenho policial em um nível de complexidade maior para países como o Brasil, onde estudos de custo/benefício, embora comuns no setor privado, não costumam ser realizados no setor público e ainda menos nas nossas polícias ou, mais amplamente, na área da segurança pública.
As avaliações do HMICFRS consideram no quesito eficácia os resultados obtidos pelas polícias em quatro temas: a) prevenção ao crime e combate ao comportamento antissocial; b) proporção de investigações criminais exitosas; c) proteção às pessoas vulneráveis; e d) enfrentamento ao crime organizado grave. Quanto à eficiência policial, são avaliados dois itens: a) o atendimento às demandas atuais / boa utilização dos recursos públicos e b) o planejamento feito pelas polícias. Por fim, sobre a legitimidade, essa conquista definida por Jackson et al. (2012, p.01) como “o direito de comandar e o reconhecimento dos comandados desse direito”, são considerados três indicadores: a) o tratamento justo com o público; b) o comportamento ético e o respeito à lei pelos policiais; e c) o tratamento justo da polícia com seus policiais.
Entre os pontos mais recentes considerados pelas inspeções está a relação das polícias com as novas tecnologias de informação, um tema que segue sendo menosprezado no Brasil. As autoridades britânicas têm sublinhado a importância de as instituições policiais estarem à altura dos desafios postos pelas novas tecnologias:
A tecnologia moderna é parte integrante da vida das pessoas. O serviço de polícia deve responder em conformidade. Quase qualquer crime é agora capaz de envolver tecnologia moderna, seja na organização de seu cometimento através de mensagens de correio electrónico ou de meios de comunicação social entre conspiradores, utilizando a própria tecnologia para perpetrar a infração, ou tirando uma fotografia dos resultados do crime, como fotografar uma vítima de agressão quando essa se encontra ferida na rua, para compartilhar a imagem online. [...] Como tal, já não é apropriado, mesmo que alguma vez o fosse, que o serviço policial considere a investigação do crime digital como sendo da competência de quem tem conhecimentos especializados [...] O público tem o direito de exigir ação rápida e conselhos de boa qualidade sobre a melhor forma de lidar com aqueles que cometem crimes digitais desde o primeiro agente com quem entram em contato até um detetive experiente. (HMICFRS, 2018, s/p).
A concepção de avaliação do desempenho policial na experiência britânica parte de vários pressupostos. O primeiro deles é que as polícias necessitam da estima e da colaboração do público. A atividade policial depende de informações para que os policiais percebam riscos, tomem iniciativas de prevenção e identifiquem pessoas responsáveis por condutas ilegais e danosas. Para obter essas informações, a polícia precisa manter e desenvolver a confiança do público. No modelo de policiamento por consentimento, há a clara percepção de que as polícias não são capazes de abarcar o desafio geral do controle e da manutenção da ordem pública, para o que é decisivo o protagonismo da sociedade e das iniciativas tomadas pela cidadania. A própria ideia de policiamento corresponderia, desde a concepção original de Robert Peel, a uma especialização do público, segundo “histórica tradição de que o público é a polícia e a polícia é o público”. Em outras palavras, é preciso perceber que a polícia não pode dar conta das causas do crime, o que demanda uma atuação em rede com outras organizações, desde os recursos de assistência social, escolas e serviços de saúde até o papel que empresas, clubes, igrejas, entre outras instituições, além dos próprios indivíduos, podem cumprir para resolver problemas que, na ausência de qualquer intervenção, darão origem a mais violência e a mais crimes. Por todas essas razões, o tema da legitimidade aparece com destaque nesse modelo de avaliação.
Nos Estados Unidos, o Office of Community Oriented Policing Services – COPS Office (Escritório de Serviços de Policiamento Orientado para a Comunidade), do Departamento de Justiça, realiza um trabalho de orientação aos gestores e considera que a avaliação do desempenho policial deve estar vinculada à capacidade de reduzir o crime e a violência e não à descrição de atividades-meio:
Geralmente, as agências policiais são avaliadas em termos de relatórios de crime, número de prisões, casos resolvidos e tempo de resposta da patrulha, mas essas medidas por si só distorcem grosseiramente a verdadeira imagem da qualidade do policiamento e da Segurança Pública. Por exemplo, visto que o verdadeiro objetivo do policiamento é prevenir o crime e aumentar a confiança da população, e não apenas fazer cumprir a lei para seu próprio bem, simplesmente contar o número de prisões diz muito pouco sobre a eficácia da polícia. (PLANT; SCOTT, 2009, p. 18).
O COPS Office também lembra a necessidade de considerar outros indicadores como a segurança no trânsito e o bem-estar daqueles em situação de maior vulnerabilidade como “idosos, jovens, doentes mentais, suicidas, dependentes químicos ou pessoas com deficiência” (PLANT; SCOTT, 2009, p. 19).
Observe-se que as perspectivas de avaliação do trabalho policial nessa tradição oferecem destaque à percepção do público, incluindo a sensação de segurança ou o medo do crime (fear of crime) e a confiança dos residentes na polícia. É importante lembrar que as prioridades dos residentes quanto à segurança costumam ser pensadas a partir de critérios muito distintos daqueles imaginados pelas polícias. Temas como vandalismo, lixo na rua, prédios abandonados e terrenos baldios, pessoas bebendo em áreas públicas ou usando drogas aparecem em vários estudos como prioridades na área da segurança desde a sensibilidade dos residentes (SKOGAN, 1990; SKOGAN; HARTNET, 1997). Situações dessa natureza dizem respeito a um problema que pode ser identificado como “incivilidade pública”, mais presente nas grandes cidades pelas interações entre desconhecidos, e que deprecia a qualidade de vida dos moradores, perturbando seu sossego e aumentando a sensação de insegurança. Normalmente, tais temas não são considerados importantes pelas polícias, embora se saiba que há uma relação entre a incivilidade pública e a escalada de crimes violentos (WILSON; KELLING, 1982; HOPE; HOUGH, 1998).
Examinando a realidade estadunidense, Baughman (2020) sustenta que há pouca discussão a respeito da eficiência policial, sendo os debates concentrados em temas específicos, como o uso da força, as posturas abusivas no policiamento, o racismo, as relações entre os policiais e as comunidades ou os resultados do uso de tecnologia de informação nas polícias. Segundo a autora, os quatro indicadores mais comuns usados para medir a eficiência das polícias são: a) taxas de esclarecimento de crimes; b) crimes registrados pelas polícias; c) quantidade de prisões, abordagens de rua e multas impostas; e d) tempo de resposta após a chamada à polícia. Ela chama a atenção para o fato de que se imagina que as polícias geralmente identificam os autores dos crimes mais graves, o que está longe de corresponder à verdade. Afirma, então, que os dados dos últimos 50 anos nos Estados Unidos revelam que 97% dos responsáveis pelos crimes de furto e roubo, 88% dos autores de crimes sexuais e mais de 50% dos autores de homicídios nunca foram punidos. Baughman (2020) é crítica da definição do FBI que entende que um crime deve ser considerado esclarecido quando alguém é preso pela polícia, acusado da prática de um delito e entregue ao Tribunal para responder ao processo. Para a autora, lidar com taxas de esclarecimento não oferece um bom indicador e pode estimular a polícia a focar no objetivo de prender e de dar mais importância aos casos em que é mais fácil fazê-lo.
Além disso, há inúmeras possibilidades de manipulação desse indicador. Reiner (2002, p. 93) lembra dos escândalos produzidos por algumas polícias britânicas, como em Kent, onde os policiais anotavam aleatoriamente placas de carros, relatavam essas licenças como sendo de carros roubados e, alguns dias depois, registravam os veículos como “recuperados”. As polícias de Los Angeles e de Chicago já passaram por crises do tipo quando vários dos seus dirigentes foram acusados de manipular dados, desclassificando crimes graves; assim como a polícia de Baltimore que inflou suas taxas de esclarecimento de crimes sexuais (BAUGHMAN, 2020, p. 62-63). No caso brasileiro, temos muitos exemplos de práticas dessa natureza, a começar pelas formas criativas de registro de homicídios. Soares (2000, p. 374) relata as “categorias” de “mortes suspeitas”, “encontro de cadáveres”, “encontro de ossadas” e “autos de resistência” que eram usadas como “gavetas” pelas polícias de modo a deflacionar as taxas de homicídio no Rio de Janeiro. A ausência de um critério único, ainda que no interior de um mesmo país, torna muito difícil, no mais, a comparação dos dados. Em várias polícias do mundo, por exemplo, um homicídio é considerado esclarecido quando há denúncia formalizada à justiça; no Brasil, costuma-se considerar um homicídio esclarecido quando o inquérito policial é concluído com indiciamento, o que produz dados tão impressionantes quanto distantes da realidade. Há, também, situações onde as polícias adulteram resultados para não perder recursos vinculados a metas. Baughman (2020) destaca, além desses, outros motivos para se introduzir novos indicadores:
as taxas de esclarecimento desconsideram todas as seguintes informações: Quantas pessoas são vítimas de um crime, mas não o relataram à polícia? Com que frequência a polícia prende as pessoas certas? Por quais crimes é mais provável que a polícia faça prisões? Quantos indiciamentos policiais resultam em condenação? Em quantas situações criminais a polícia deixou de efetuar uma prisão, mas resolveu o problema de outras maneiras? Nenhuma dessas informações é rastreada. E, além disso, um crime denunciado que não resulte em prisão é uma falha da polícia, pois diminui o índice de esclarecimento. (BAUGHMAN, 2020, p. 53).
Independente da importância da taxa de esclarecimento, parece claro que ela não é um indicador suficiente para se medir a eficiência policial. A autora sugere, por isso, uma nova métrica, a da “responsabilização criminal” (criminal accountability), que permite examinar o curso total de um crime, desde quando ele ocorre até o momento em que é solucionado efetivamente, o que pressupõe a condenação do autor ou a solução pela polícia por outros meios. Essa mesma métrica irá considerar a estimativa de crimes não reportados às polícias, vale dizer: crimes que ocorreram, mas que, por alguma razão, não foram registrados. O fenômeno, identificado na literatura como subnotificação ou taxa obscura (dark rate), tem sido estimado há décadas por pesquisas de vitimização em vários países (nos EUA, desde 1972). Se considerarmos os crimes cometidos nos EUA (ao invés dos crimes reportados) como base para o cálculo das taxas médias de esclarecimento, teríamos uma taxa média de crimes esclarecidos nos últimos 30 anos de 10% (BAUGHMAN, 2020, p. 90).
Baughman (2020) propõe um indicador geral de eficiência policial com base em sete indicadores, sendo três medidas tradicionais: a) taxas de esclarecimento, b) crimes registrados e c) taxas de prisão; mais quatro indicadores: d) crimes não registrados, e) taxas de condenação, f) taxas de encarceramento e g) taxas de solução de crimes. Quanto ao elenco de crimes a serem considerados, ela sugere os crimes dolosos contra a vida, estupro, lesões corporais graves, roubo, furto simples, arrombamento e furto de veículos. Observe-se que esse conjunto de crimes diz respeito tão somente a uma pequena parte do total de crimes praticados. Entre inúmeros delitos graves não considerados nessa proposta, encontram-se os variados delitos digitais, desde as fraudes que vitimam milhões de pessoas até os crimes de ódio, tráfico de mulheres, compra ilegal de armas, racismo, etc.
O tema, aliás, expõe o equívoco comum no Brasil de se elaborar diagnósticos com base em registros de ocorrências policiais que expressam mais propriamente a atitude das vítimas do que as tendências criminais. Por outro lado, deve-se lembrar que a quantidade de crimes praticados diz respeito a dinâmicas sociais criminogênicas que demandam políticas públicas situadas muito além das possibilidades do policiamento, o que sugere que a quantidade geral de crimes praticados, estimada por pesquisas de vitimização, por exemplo, não deva ser superestimada como um indicador de eficiência policial. Crimes podem aumentar ou reduzir, afinal, sem que esses resultados sejam decorrência da intervenção ou da inação das polícias (CANO, 2002).
As taxas de condenação são, por certo, um indicador de eficiência do trabalho policial muito superior aos critérios usuais de “crimes esclarecidos”, porque um dos aspectos centrais dos julgamentos é a qualidade da prova produzida. Por isso, embora a polícia não seja a única responsável pelas decisões das cortes criminais, parece evidente que a qualidade do seu trabalho é diretamente proporcional às taxas de condenação. No sentido contrário, investigações mal feitas e provas frágeis resultam em absolvição4. Por isso, se não levarmos em consideração as taxas de condenação, contornamos o abismo da impunidade, produzindo um engano público a respeito da qualidade da investigação policial e mesmo o autoengano. Observando as taxas de condenações, as polícias terão um elemento objetivo para repensar seu trabalho.
Há dois motivos para monitorar condenações como medida do desempenho policial. Em primeiro lugar, se a polícia for pressionada a prender mais indivíduos para aumentar as taxas de esclarecimento, a taxa de condenação em uma jurisdição provavelmente será muito menor do que o normal. Se for esse o caso, será uma indicação de que um departamento de polícia deve avaliar melhor suas prisões e definir medidas para investigar adequadamente. (BAUGHMAN, 2020, p. 69).
Muitos problemas tratados pela polícia podem ser resolvidos sem prisão e deve haver um critério que permita considerá-los positivamente. Nos EUA, é bom lembrar, os policiais possuem uma maior discricionariedade no tratamento de conflitos e de crimes de menor gravidade e muitos departamentos de polícia estimulam que seus profissionais sejam criativos na solução de problemas, contando, por exemplo, com a participação das comunidades e procurando evitar prisões desnecessárias. Nos indicadores tradicionais de eficiência policial, essas práticas se perdem e terminam sendo desestimuladas. Com a proposição de um indicador para “crimes solucionados”, Baughman abre uma janela para que se considerem iniciativas exitosas da polícia que não resultaram em prisões. Ainda assim, o modelo proposto por ela segue centrado na relação polícia/ocorrência, ao não considerar as expectativas da população, seus sentimentos de (in)segurança e as taxas de confiança na polícia, entre outros temas pertinentes.
Brodeur (2002, p. 75) já havia destacado que “as medidas padrões do desempenho policial, tais como índices de solução de crimes, número de prisões e condenações, e feitos heroicos no combate ao crime, não são satisfatórias”. Na base dessas impropriedades está a definição dos objetivos que se pretende alcançar com as atividades de policiamento. Se pensarmos a atividade da polícia a partir da noção de que sua tarefa é efetuar prisões, o padrão de avaliação será um; se pensarmos que o objetivo da polícia é aumentar os níveis de segurança das pessoas, teremos um desafio de avaliação de desempenho muito diverso. Qual o papel que o atendimento às vítimas deve ter na avaliação do trabalho policial? E qual a importância que devemos dar aos projetos de prevenção da violência executados pelas polícias? É preciso ter os objetivos da polícia muito bem definidos antes de pensar em avaliar o desempenho dessas instituições. “Se o avaliador não consegue definir o papel exato, como o desempenho pode ser julgado?” (KIRBY, 2013, p. 9). Nem sempre os objetivos da polícia estão bem definidos e é comum que a troca de governo os alterem substancialmente. Kirby (2013, p. 28) reproduz três declarações de ministros dos Assuntos Internos (Home Office), órgão que centraliza as políticas de segurança no Reino Unido, que manifestam visões e sensibilidades muito distintas. “O principal trabalho da polícia é capturar os criminosos”, disse o político conservador Michael Howard, que comandou a pasta entre 1993 e 1997. Já para o trabalhista Jack Straw, ministro entre 1997 e 2001, a missão das polícias deveria ser definida pelo objetivo de “construção de uma sociedade segura, justa e tolerante na qual os direitos e responsabilidades de indivíduos, famílias e comunidades são devidamente equilibrados”. Theresa May, titular da pasta entre 2010 e 2016, por seu turno, asseverou: “Cabe à polícia reduzir o crime, nem mais, nem menos”. Os chefes de polícia da Inglaterra e do País de Gales, a propósito, estabeleceram, em 2012, uma definição consensual a respeito dos objetivos da polícia nos seguintes termos:
A missão da polícia é tornar as comunidades mais seguras, aplicando a lei de forma justa e firme; prevenindo o crime e o comportamento antissocial; mantendo a paz; protegendo e tranquilizando as comunidades; investigando crimes e conduzindo os infratores à justiça. Agiremos com integridade, compaixão, cortesia e paciência, não mostrando medo nem favorecimento no que fazemos. Seremos sensíveis às necessidades e dignidade das vítimas e demonstraremos respeito pelos direitos humanos de todos. Seremos criteriosos e lançaremos mão do julgamento profissional e do bom senso para nos guiar, assumindo a responsabilidade por nossas decisões e ações. Responderemos às críticas bem fundamentadas com vontade de aprender e mudar. Trabalharemos com comunidades e parceiros, ouvindo suas opiniões, construindo sua confiança e segurança, envidando todos os esforços para entender e atender suas necessidades. Não seremos desviados de nossa missão por medo de sermos criticados. Ao identificar e gerenciar o risco, buscaremos alcançar resultados bem-sucedidos e reduzir o risco de danos a indivíduos e comunidades. Diante da violência, seremos profissionais, calmos e contidos e aplicaremos apenas a força necessária para cumprir nosso dever legal. Nosso compromisso é entregar um serviço que nós e aqueles a quem servimos possam se orgulhar e que mantenha nossas comunidades seguras. (KIRBY, 2013, p. 28-29).
Essa definição situa claramente o papel dos policiais como “guardiões” e não como “guerreiros” (MCLEAN et al., 2019), permitindo que a missão da polícia seja concebida nos marcos da proteção dos direitos e não da “guerra contra o crime”, como ela tem sido descrita pelas posições conservadoras que reduzem o papel da polícia à repressão e pela extrema-direita que estimula os policiais aos confrontos armados.
O tema é importante para se pensar a eficiência das polícias brasileiras já que ainda é comum se imaginar, por exemplo, que a letalidade produzida por policiais em situações de confronto com suspeitos seja um sinal positivo e que concorra para a redução da criminalidade. Estudo econométrico recente de Monteiro, Fagundes e Guerra (2020) a respeito da associação entre o aumento da letalidade produzida por policiais e os índices de criminalidade, aliás, evidenciou que não há qualquer redução da criminalidade por conta da morte de suspeitos. Pelo contrário, em alguns casos, a correlação estatística significativa é positiva (mais mortos pela polícia = mais crimes). Em termos de legitimidade da ação policial, sabe-se que a percepção do público a respeito da forma como os policiais agem, se de maneira justa ou não, é um dos aspectos centrais para a construção da confiança na polícia e para a própria disposição geral de obediência à lei, desafio que, uma vez negligenciado, pode inviabilizar a colaboração do público com as forças policiais (TYLER; FAGAN, 2008; SILVA; LEITE, 2017). As evidências em torno da justiça procedimental (procedural justice) nas atividades de policiamento, aliás, são robustas e apontam para a importância de os policiais seguirem determinados princípios em suas interações com o público:
[A abordagem da justiça procedimental] pode ser dividida em quatro elementos ou princípios centrais: a) dignidade e respeito, b) motivos confiáveis, c) neutralidade e d) voz. Quando a polícia trata as pessoas com respeito, demonstra confiabilidade, é neutra em suas tomadas de decisão e fornece às pessoas a oportunidade de participar antes que as decisões sejam tomadas (ou seja, quando as pessoas são ouvidas), então elas tendem a acreditar que a polícia está sendo processualmente justa. (MAZEROLLE et al., 2014, p. 3).
As percepções do público a respeito da vigência desses quatro princípios tendem a fornecer elementos decisivos em qualquer avaliação do trabalho policial no mundo. A emergência do paradigma do policiamento baseado em evidências (evidence-based policing), proposto em 1998 pelo criminólogo estadunidense Lawrence Sherman5, tem permitido que as polícias modernas renovem suas práticas, o que abre perspectivas inéditas de inovação e de melhores indicadores de eficiência policial. Na sequência desse paradigma, os caminhos que estão sendo propostos, mais recentemente, pela chamada “Criminologia Translacional”(Translational Criminology), na tentativa de traduzir evidências em ferramentas e recursos que possam ser aplicados na prática policial, parecem indicar a possibilidade de mudanças ainda maiores.
Os indicadores de eficiência das polícias brasileiras
Na tentativa de conhecer mais propriamente os critérios utilizados no Brasil pelos gestores públicos para medir a eficiência das polícias civis e militares, elaboramos cinco questionamentos básicos sobre o tema e os remetemos, em outubro de 2020, pelos respectivos portais, às Secretarias Estaduais de Segurança Pública dos 26 estados e do Distrito Federal com amparo na Lei de Acesso à Informação (LAI). As perguntas foram:
Quais os indicadores utilizados pelo Estado para medir a eficiência da atividade policial na Polícia Civil?
Quais os indicadores utilizados pelo Estado para medir a eficiência da atividade policial na Polícia Militar?
Quando da definição desses indicadores, houve participação de representantes da sociedade civil? Em caso positivo, quais foram as representações da sociedade civil que participaram?
Os indicadores utilizados pelo Estado para medir a eficiência da atividade policial estão referenciados em documento específico que justifique as razões pelas quais eles foram selecionados?
Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, solicitamos cópia desse documento.
A opção por separar os dois primeiros questionamentos para ambas as polícias estaduais deriva da existência das funções e prerrogativas distintas das corporações, previstas em nosso modelo bipartido do ciclo de policiamento. Natural, então, que as corporações policiais brasileiras tenham métricas e critérios de eficiência diferentes. Partindo da definição constitucional de que o Brasil é um Estado Democrático de Direito (art. 1º, CFB) e que esse conteúdo demanda uma sociedade civil superposta ao Estado, procuramos saber qual a intensidade das interações entre as polícias estaduais e a sociedade civil quando da definição de um tema de tamanha relevância como os padrões de eficiência policial. A terceira pergunta permitiria, ainda, a coleta de informações sobre a natureza dessas interações; se, por exemplo, as universidades e os institutos de pesquisa tiveram alguma participação nesse debate, o que parece uma condição elementar se desejamos dialogar com evidências científicas e alguma expertise em avaliação institucional e de políticas públicas. Já a quarta pergunta teve por objetivo saber se os indicadores de eficiência definidos e em vigência nas polícias estaduais estão expostos em um documento de natureza pública que ofereça à sociedade as razões pelas quais se adotou aqueles indicadores e não outros, e em que medida essa definição se articula com o papel atribuído às forças policiais e, por decorrência, aos objetivos da política de segurança. A quinta demanda, por derradeiro, solicitou cópia desse documento de forma que ele pudesse ser analisado.
Do total de 27 secretarias, 22 responderam aos questionamentos6. A maioria delas, entretanto (15 secretarias)7 responderam solicitando que as perguntas fossem encaminhadas às polícias Civil e Militar ou tomaram elas próprias essa providência, solicitando que as polícias respondessem. O motivo desses procedimentos foi o de que tais secretarias não dispunham de informações a respeito dos indicadores de eficiência solicitados.
A análise das respostas recebidas foi dificultada pela ausência de um padrão. As respostas foram estruturadas, como regra, de modo inconsistente, o que torna a comparação entre elas uma tarefa tortuosa. Foi comum, por exemplo, que, ao invés de indicadores objetivos, algumas respostas tenham indicado textos legais ou documentos administrativos que tratam de temas diferentes. A Brigada Militar do RS, por exemplo, afirmou que “a construção dos indicadores de eficiência é oriunda de orientações constitucionais”, o que é estranho já que a Constituição Federal não trata do tema e não seria razoável esperar que orientasse as polícias a respeito. Informou também que não existe um documento específico sobre o tema e que os dados a respeito das taxas criminais não são utilizados como indicadores de eficiência. Já a Polícia Civil lida com indicadores de produtividade (produção média de cada agente), taxas de conclusão de procedimentos encaminhados ao Judiciário e de elucidação, tendo informado que esses indicadores são, como regra, de consumo interno. Rondônia, por seu turno, remeteu o Termo de Adesão ao Sistema Nacional de Informações sobre Segurança Pública, Prisional e sobre Drogas (Sinesp), uma plataforma que recolhe os registros criminais dos estados, mas que não trata de indicadores de eficiência das polícias.
As respostas mostraram, também, dissintonia interna em alguns estados e informações contraditórias na mesma polícia. Esse foi o caso, por exemplo, de Alagoas, onde um oficial afirmou que “os indicadores foram pontuados a partir da prática policial, bem como das tipificações das diversas legislações penais”, enquanto o Chefe do Estado Maior da PM afirmou que: “A Polícia Militar não detém essas informações uma vez que são utilizados indicadores da SSP”. A Polícia Militar do Rio Grande do Norte informou que não lida com indicadores de eficiência policial. Possivelmente, outras polícias se encontram na mesma situação, como a PM da Paraíba. Neste estado, a Secretaria de Segurança Pública orientou para que os questionamentos fossem encaminhados à PM; esta, por sua vez, respondeu que eles deveriam ser remetidos à Secretaria.
Em outros momentos, a informação recebida não permitiu compreender quais são os indicadores de eficiência vigentes nas polícias, como ocorreu com a resposta enviada por Rondônia, a qual afirmou que o Estado “tem dois grandes indicadores para mensurar as atividades policiais [...] um se reporta à análise criminal do sistema Power BI, o segundo indicador refere-se ao sistema SISEG/PMRO”. Ou seja, os dois sistemas são apontados como indicadores, o que não faz qualquer sentido. No mais, não sendo sistemas abertos à consulta pública, não é possível saber quais informações estão lá hospedadas, o que, é fácil perceber, não guarda relação com o desafio mais elementar de transparência e accountability, temas que assinalam amplas lacunas na tradição policial brasileira, como evidenciou Kopittke (2016).
Com a mencionada exceção da Brigada Militar, as demais polícias da amostra utilizam indicadores criminais para medir sua eficiência e todas elas o fazem apenas com base em ocorrências registradas. No Mato Grosso do Sul esse foi, aliás, o único indicador informado (quantidade de homicídios, latrocínios, feminicídios, homicídios culposos no trânsito, roubos e furtos)8. Essa característica confirma a ausência de uma tradição de uso, pelos estados, de pesquisas de vitimização.
Quanto às polícias civis, a maioria dos estados informou que o indicador operante, pelo menos o mais importante, é a produtividade policial, o que costuma ser medido por inquéritos concluídos e remetidos ao Poder Judiciário. A Polícia Civil de Minas Gerais, por exemplo, informou que seus indicadores de eficiência são aqueles definidos pela Resolução 06 do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil (CONCPC), que: “Dispõe sobre a instituição de indicadores de eficácia e eficiência das atividades de polícia judiciária”, de 15 de agosto de 2018. Por esse documento, a eficiência das atividades de polícia judiciária deve ser aferida “pelo índice da taxa de conclusão, resultante da razão entre a totalidade dos procedimentos remetidos ao Poder Judiciário e as ocorrências criminais registradas e/ou recebidas pelo órgão policial no período em análise”. As diferenças quanto aos critérios realmente empregados são, ainda assim, bem significativas. Assim, por exemplo, no Rio de Janeiro, foi criado um sistema de pontuação na Polícia Civil pelo qual um inquérito concluído sobre crime de lavagem de dinheiro vale 10 pontos; um inquérito sobre homicídio doloso ou feminicídio vale 4 pontos; e um inquérito sobre receptação vale 2 pontos; para citar apenas alguns dos crimes ranqueados. Já no Amapá, o critério de produtividade selecionado implica na meta de que cada delegado deve realizar pelo menos 10 inquéritos por mês.
Pelo levantamento que realizamos, ficou patente que as polícias brasileiras consideram como indicadores de eficiência, além das ocorrências criminais, o quantitativo de atividades policiais, com destaque para o número de pessoas presas e a quantidade de drogas apreendidas.
Algumas das polícias estaduais trabalham com taxas, outras com números absolutos. O Pará informou que seus indicadores são: taxa de condutores regulares, taxa de veículos regulares, taxa de presos por vagas, taxa de atendimentos policiais para cada 100 mil habitantes, taxa de identificação de autoria para roubos, taxa de identificação de autoria de crimes violentos letais, taxa de homicídios de jovens, taxa geral de homicídios, taxa de mortes por acidentes de trânsito, taxa de roubos e taxa de violência contra mulheres. A PM de Minas Gerais também considera preponderantemente taxas, mas montou um sistema mais complexo que envolve: taxa de crimes violentos, taxa de homicídios consumados, taxa qualificada de furtos, índice de apreensão de armas de fogo, taxa de reação imediata aos crimes violentos, repressão qualificada da violência, índice de efetividade no cumprimento de demandas geradas via disque denúncia unificado, interação comunitária, índice de prevenção aos crimes e infrações ambientais, taxa de acidentes de trânsito com vítimas nas rodovias estaduais e federais delegadas a cada 10 mil veículos e operações lei seca.
A Polícia Civil do Distrito Federal divulga dados sobre 27 indicadores, desde as atividades policiais (registro de ocorrências, inquéritos, veículos recuperados, prisões, mandados cumpridos, etc.) até armas e drogas apreendidas, laudos e perícias realizadas, pessoas mortas e feridas pela polícia e policiais mortos e feridos (no trabalho ou fora), procedimentos de conduta disciplinar e procedimentos de conduta criminal. O planejamento estratégico da Polícia Civil do DF9 estabeleceu, além disso, vários indicadores gerenciais, como: “Índice Integrado de Governança e Gestão Pública”, “Índice de Transparência Ativa”, “Índice de assertividade orçamentária”, “Taxa de absenteísmo por motivo de saúde” e “Índice de clima organizacional”; e indicadores de satisfação, como: “Índice de satisfação do cidadão”, “Taxa de notícias positivas”, “Número de reclamações na ouvidoria”, “Taxa de atendimento às recomendações de auditoria”, entre outros. Já a Polícia Militar do DF lida com indicadores administrativos e de produtividade individual dos policiais, além de trabalhar com: os percentuais de prisões de suspeitos por crimes contra o patrimônio e contra a vida diante dos totais desses crimes; os percentuais de ocorrências atendidas por iniciativa das guarnições em relação ao total de ocorrências atendidas, agregando dados sobre o tempo médio de atendimento de solicitação em casos de extrema urgência; o tempo médio de atendimento após o despacho da viatura; etc. Além disso, os indicadores da PM do DF envolvem a realização de pesquisas periódicas em que se avalia a percepção da população e dos policiais militares a respeito dos direitos humanos, em que se mede a sensação de insegurança, a confiança na polícia e a percepção dos residentes sobre a qualidade dos serviços oferecidos pela polícia.
Em Goiás, foi criado o “Índice de Policiamento Preventivo da Polícia Militar”, cuja metodologia “baseia-se na taxa por 100 mil habitantes sobre quantidade total de ocorrências relacionadas a patrulhamentos, abordagens, pontos de estacionamentos, apreensões de armas e/ou munições, apreensão de drogas, visitas comunitárias e registros de bloqueios”. Já para a Polícia Civil, é monitorado o “Índice de Resolutividade de Inquéritos de Homicídios Dolosos”.
Há, também, situações em que algumas polícias estão em fase de elaboração de indicadores, como parece ser o caso do Amapá que informou ter realizado um processo de discussão envolvendo representações da sociedade para a definição de um plano estratégico, ao final do que: “foram minutados 17 Objetivos Estratégicos e 71 Indicadores, os quais, depois de aprovados pelo Conselho Superior de Polícia, serão devidamente divulgados à sociedade”. A busca nos dois sites indicados pela resposta, entretanto, não localizou o plano indicado.
A análise comparativa identificou uma diferença substancial quanto à qualidade das informações prestadas pelo Distrito Federal, o que deve ser avaliado por outros estudos, de forma a se saber se os avanços alcançados com a definição dos indicadores e com o planejamento possuem existência real no cotidiano das corporações e, em caso positivo, quais as possíveis repercussões na atividade policial brasiliense.
No que tange à participação da sociedade civil na elaboração dos indicadores de eficiência policial, não recebemos, exceção feita à menção do Amapá, uma única resposta indicando qualquer tipo de participação. Também não houve uma resposta em que os gestores tenham indicado um documento em que as razões dos critérios de eficiência operantes tenham sido expostas e justificadas.
Conclusão
O fato da maioria das secretarias estaduais de segurança não terem informações a respeito dos indicadores de eficiência policial sugere que os gestores em segurança pública nos estados brasileiros não exercem, em regra, uma gestão efetiva das polícias. A gravidade da situação pode ser melhor percebida se a compararmos com outros serviços públicos. Teríamos uma situação similar caso perguntássemos às secretarias da saúde quais os indicadores de eficiência dos serviços públicos sob sua responsabilidade e elas encaminhassem os questionamentos aos postos de saúde e aos hospitais, “já que eles têm seus próprios indicadores”. A incapacidade político-administrativa das secretarias estaduais de segurança pública terem gerência sobre as polícias reforça o diagnóstico de Soares (2021) de que os secretários, assim como os governadores, seriam reféns dessas corporações.
O que as respostas que recebemos revelam é que os estados brasileiros utilizam indicadores de eficiência policial que se concentram em descritores operacionais e crimes registrados. Tomemos, a título de exemplo, um desses descritores: a quantidade de drogas apreendidas. Um estudo recente do Instituto Sou da Paz10, que examinou 200 mil ocorrências entre 2015 e 2017, mostrou que, em São Paulo, metade das ocorrências por tráfico de maconha envolve a prisão de pessoas que portavam quantidades pequenas de até 40 gramas (o equivalente a dois bombons). Essas apreensões são uma pequena parte do total de drogas apreendidas pela polícia (no caso de tráfico de maconha, 1% das ocorrências são responsáveis por 76% do total de droga apreendida), mas o que importa observar aqui são os custos desse tipo de operação policial. Primeiro, a mobilização dos policiais que efetuam a prisão, que se deslocam em suas viaturas e que passarão horas para o registro de cada prisão em flagrante nas delegacias, se afastando das ruas onde poderiam ser muito mais úteis; segundo, os custos cartoriais e judiciais de um processo criminal que pode levar anos; terceiro, os custos das condenações criminais que irão agregar estigma social, inviabilizando quase sempre a inserção dos apenados no mercado de trabalho formal. No mais, quando a quantidade de drogas apreendidas a cada ano aumenta, como interpretar esse “indicador”? Quando tomamos o descritor operacional como indicador, chegamos ao ponto de valorizar apreensões de drogas sempre crescentes, porque esses números estariam mostrando maior capacidade repressiva das polícias sobre o tráfico, quando, na verdade, eles oferecem evidência de que o aumento das apreensões não diminui o volume dos negócios ilegais e, talvez, provoque tão somente crimes adicionais – especialmente roubos – para que as dívidas com os fornecedores produzidas pelas próprias apreensões sejam honradas. Se somarmos a esses efeitos a massa de encarcerados por delitos de drogas e as dinâmicas subsequentes de deterioração da execução penal e de fortalecimento das facções criminais, teremos razões muito substanciais para não tomar apreensões de drogas e prisões por tráfico como indicadores de eficiência policial.
A análise das respostas permitiu identificar uma dinâmica de fechamento institucional das polícias que parece ser uma realidade uniforme no Brasil, ainda que mais pronunciada nas polícias militares. O fato do planejamento da atividade policial, assim como a definição dos poucos indicadores utilizados, ser realizado sem qualquer participação da sociedade civil revela muito a respeito desse fenômeno que expressa visão não compatível com a ideia de uma governança democrática dessas instituições.
Os dados que colhemos são, por certo, limitados e devem ser tomados com cautela exatamente por expressarem informações divulgadas por instituições que, como todas as demais, possuem interesse em projetar uma imagem de profissionalismo e competência. Ainda assim, as deficiências presentes nas respostas obtidas são evidentes e sugerem que as polícias brasileiras, em sua grande maioria pelo menos, permanecem afastadas de um padrão gerencial de excelência e de indicadores de eficiência que lhes permitam medir de forma apropriada seu desempenho institucional.
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Não abordamos neste texto a necessidade de se medir o desempenho individual dos policiais, um tema que precisa ser tratado especificamente.↩︎
Tradução nossa.↩︎
Há quem diferencie “eficácia” de “efetividade”, o que não parece agregar vantagens metodológicas quando se lida com avaliação de resultados e de impacto.↩︎
Certamente, há um percentual de condenações que podem ocorrer mesmo sem prova robusta, o que tende a ser tanto mais comum em cenários de demanda punitiva disseminada socialmente e pouco apreço às garantias dos réus.↩︎
O professor Sherman foi um dos fundadores do Campbell Crime and Justice Coordinating Group , que tem disponibilizado estudos de revisão sistemática e outras pesquisas com evidências sobre policiamento e projetos de segurança pública. ↩︎
Houve dificuldades com os sites de alguns estados, notadamente com Paraná e Pernambuco, no período de envio dos questionamentos.↩︎
Acre, Amapá, Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins.↩︎
São Paulo fez referência à divulgação periódica dos indicadores criminais, por conta de lei estadual, mas remeteu as perguntas às polícias, sem que tivéssemos o retorno.↩︎
Disponível em: https://www.pcdf.df.gov.br/images/conteudo/institucional/Gestao_Estrategica/PEI_SITE.pdf. Acesso em 12 mar. 2020.↩︎
Apreensões de drogas no estado de São Paulo. São Paulo: Instituto Sou da Paz, maio 2018. Disponível em: http://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/analises-e-estudos/diagnosticos/apreensao-de-drogas/#documentos-1. Acesso em: 21 mai. 2021.↩︎