EDIÇÃO ESPECIAL - VOLUME 16
AVALIAÇÃO DE CURSOS DE FORMAÇÃO DE POLICIAIS MILITARES: UM VELHO DESAFIO PARA AS NOVAS ACADEMIAS INTEGRADAS DE SEGURANÇA PÚBLICA
Anderson Duarte Barboza
Oficial da ativa da Polícia Militar do Ceará. Mestre e Doutor em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Especialista em Gestão de Segurança Pública pela Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp). Atualmente, é Diretor de Estratégia de Segurança Pública na Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública do estado do Ceará (Supesp).
País: Brasil Estado: Ceará Cidade: Fortaleza
E-mail: anderson.supesp@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4815-1348
RESUMO
Como avaliar um curso de formação de policiais militares, ou seja, saber se ele tem atendido aos anseios da sociedade que, em última instância, é sua principal beneficiária? Quais os desafios dessa avaliação no atual modelo de academias integradas de segurança pública, criadas no Brasil a partir do final da década de 1990 e existentes em alguns estados da Federação? Este artigo se propõe a responder tais questões. Para isso, utiliza-se de pesquisa bibliográfica e documental, apontando possíveis soluções. Diante dos impasses gerados por questões jurídicas e políticas historicamente relacionadas ao problema, apresenta-se a autoavaliação, entre outras, como um método prático e válido para as instituições de ensino, especialmente as academias integradas, aferirem a qualidade da educação ministrada.
Palavras-chave: Avaliação. Formação de policiais militares. Academias Integradas.
ABSTRACT
EVALUATION OF INITIAL TRAINING COURSES FOR MILITARY POLICIES AN OLD CHALLENGE FOR NEW INTEGRATED PUBLIC SECURITY ACADEMIES
How to evaluate a certain initial training course for military police, that is, to know if it has met the desires of the society that, ultimately, is its main beneficiary? What are the challenges of this evaluation in the current model of integrated public security academies, created in Brazil from the end of the 1990s and existing in some states of the Federation? This article aims to answer such questions. For this, it uses bibliographic and documentary research, pointing out possible solutions. In view of the impasses generated by legal and political issues historically related to the problem, self-assessment is presented, among others, as a practical and valid method for educational institutions, especially integrated academies.
Keywords: Evaluation. Training of military police officers. Integrated Academies.
Data de recebimento: 14/03/2021 - Data de aprovação: 17/09/2021
DOI: 10.31060/rbsp.2022.v16.n0.1449
INTRODUÇÃO
Existe um relativo consenso sobre o fato de que uma avaliação realiza um julgamento de valor ou de mérito sobre determinada atividade, coisa ou pessoa. Sabe-se também que a avaliação possui uma série de possibilidades de utilização, servindo tanto para mensurar conhecimentos e habilidades de indivíduos e grupos, quanto para aferir e melhorar a qualidade de processos e serviços prestados por uma determinada pessoa, física ou jurídica, pública ou privada. A avaliação é, portanto, uma importante etapa do ciclo de administração de uma determinada organização, permitindo saber se ela está indo na direção certa e alcançando as finalidades para as quais se propôs.
Entretanto, para além dos pontos aparentemente pacíficos, a avaliação se constitui em um campo de intensos debates, especialmente quando se refere aos processos e às instituições educacionais. No caso da educação de militares estaduais, especialmente da formação inicial de policiais militares, que se dá nas academias e nos centros de formação, as discussões são ainda mais complexas1. Existem várias questões políticas, as quais envolvem demandas sociais que cercam o tema e que, por sua vez, confrontam-se com questões jurídicas decorrentes das leis que regulamentam o ensino policial militar. Todos esses fatores encontram um ambiente ainda mais intrincado quando ocorrem no cenário das novas academias integradas de segurança pública, que surgem a partir do final da década de 1990. Este último fenômeno, por sua vez, adiciona um complicador ao problema não resolvido da avaliação dos cursos de formação inicial dos candidatos ao cargo de policial militar.
Este trabalho tem por objetivo discutir os desafios de avaliar cursos de formação de policiais militares nas academias integradas de segurança pública, apontando possíveis soluções para o problema de pesquisa. Não trata de avaliar ou comparar os modelos de academias existentes, mas tão somente apontar alguns problemas e aventar possíveis soluções relacionadas à avaliação da qualidade dos cursos nessas instituições.
Para compreensão da realidade estudada, utilizou-se de pesquisa bibliográfica, com o objetivo de utilizar conceitos e noções que auxiliam na interpretação dos fatos, por meio de uma leitura detalhada e atenta das fontes consultadas, como ensina Deslandes (2016). Buscou-se basicamente a literatura clássica do campo da avaliação educacional em geral, visto que se tem pouco sobre avaliação de cursos policiais militares e menos ainda sobre as academias integradas. Além disso, foi feita pesquisa documental sobre o tema, especialmente analisando uma série de leis e regulamentos sobre as polícias militares e suas peculiaridades.
EDUCAÇÃO E SEGURANÇA PÚBLICA: APROXIMAÇÕES INICIAIS
Tanto a educação quanto a segurança pública são serviços essenciais do Estado. No caso da educação, ela é o meio pelo qual se pode moldar e/ou produzir indivíduos para que exerçam direitos e deveres, conforme uma determinada mentalidade de governo, a partir de uma série de práticas pedagógicas2. Por essa razão, ela é tomada por responsabilidade pela Administração Pública em diversos países. Tal encargo educativo é, geralmente, compartilhado com a sociedade, que é partícipe na efetivação desse importante direito social. O art. 205 da Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88) resume bem:
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988).
Já a segurança pública é, da mesma forma que a educação, um dever do Estado, igualmente dividido com a sociedade. A CF/88 não apresenta uma definição estrita de segurança pública, limitando-se, em seu art. 144, a afirmar que ela se constitui em “um dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, expressando a sua finalidade, que é “a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (BRASIL, 1988). Esperava-se que a lei de regulamentação do capítulo destinado à segurança pública trouxesse, enfim, uma definição, o que acabou não acontecendo. Trinta anos após a promulgação da Carta Magna, a Lei Nº 13.675, de 2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), limitou-se a repetir o mesmo texto da CF/88.
O que se encontra como definição do conceito de segurança pública, dada pelo Estado brasileiro, podia ser visto no portal do Ministério da Justiça e Segurança Pública da seguinte forma:
A Segurança Pública é uma atividade pertinente aos órgãos estatais e à comunidade como um todo, realizada com o fito de proteger a cidadania, prevenindo e controlando manifestações da criminalidade e da violência, efetivas ou potenciais, garantindo o exercício pleno da cidadania nos limites da lei. (BRASIL, 2008, p.8).
O que vale ressaltar aqui é que os dois campos são direitos sociais que estão entrelaçados de várias formas, seja porque os agentes de segurança pública atuam como educadores informais nas ruas, seja também pelo fato de que esses profissionais, e aqui se destaca os policiais militares, são formados exclusivamente pelo Estado, ou seja, recebem sua educação profissional inicial por meio das escolas de formação das próprias instituições das quais farão parte. Isso os diferencia dos campos da saúde e da própria educação pública que, embora sejam funções essenciais da Administração Pública, podem admitir profissionais formados exclusivamente em instituições privadas.
Essa questão, entre outras, ressalta a necessidade da garantia da qualidade dessa formação disponibilizada aos futuros policiais militares, pois dela dependerá, em grande parte, a atuação desses profissionais nas ruas e a consequente prestação de um bom serviço de policiamento, que é fundamental para uma segurança pública efetiva, que é, por sua vez, condição essencial para um bom Estado Democrático de Direito3. Em outras palavras, não é possível pensar em uma democracia saudável sem uma boa polícia e é improvável que esta exista sem um padrão elevado de rigor e exigência intelectual e moral de seus integrantes, o que passa pelas exigências de ingresso, mas, principalmente, pelos conteúdos ministrados na formação inicial.
No Brasil, observa-se, de maneira geral, um grau de satisfação insuficiente em relação ao trabalho realizado pela polícia. Esse aspecto subjetivo é fundamental para uma segurança pública de qualidade, pois influencia, por exemplo, nas cifras ocultas, que são as subnotificações de crimes, bem como na baixa interação entre policiais e cidadãos e mesmo na predisposição em acatar orientações dessas autoridades (ROLIM; HERMANN, 2018). O medo da polícia, por sua vez, ainda existe, e é percebido, entre outros fatores, como fruto de treinamento inadequado e más condições de trabalho com as quais convivem (CARDIA, 1997).
Um exemplo de pesquisa que afere essa satisfação popular com a polícia é o Índice de Confiança na Justiça e na Polícia (ICJBrasil), medido pela Fundação Getúlio Vargas (2017). Em sua última edição, realizada em 2017, obteve a informação de que apenas 26% da população pesquisada confia na polícia. Tal número é considerado baixo, se comparado, por exemplo, à confiança nas Forças Armadas, instituições de maior credibilidade no Brasil, as quais, segundo a mesma pesquisa, alcançam 56% de confiança. Comparando-se com o desempenho de polícias em outros países, o resultado também é insatisfatório. Feltes (2003, p. 111) apresenta uma pesquisa realizada na Alemanha que chegou à conclusão de que “mais de 50% dos consultados tinham a polícia (em vez de escolas, políticos, igreja ou família) como portadora de valores”, demonstrando assim todo o apreço do povo alemão à sua polícia. Rolim e Hermann (2018) comentam sobre uma pesquisa chamada World Values Survey, de 2011, em que o Brasil figura na 34ª posição em uma lista de 47 países analisados quanto à confiança na polícia.
Após o período da ditadura militar (1964-1985), abre-se uma janela de oportunidade. Com a possibilidade de participação democrática, uma série de iniciativas de interação entre os órgãos de segurança pública e a sociedade civil se inicia, inclusive no tocante à formação dos seus agentes4. Observa-se então que,
diferentes segmentos da sociedade – acadêmicos, formuladores de políticas públicas, autoridades de governo, policiais entre outros – têm levantado a necessidade de maior capacitação da polícia como recurso capaz de torná-la mais competente, mais responsável e mais efetiva na condução da ordem e da segurança pública na sociedade brasileira (PONCIONI, 2009, p. 207).
Portanto, é essa preocupação com a qualidade da formação dos policiais militares, totalmente legítima e de interesse público, que leva à seguinte pergunta: como obter algum grau de certeza acerca da eficácia dos cursos de formação inicial de policiais militares, ou seja, saber se eles têm atendido aos anseios da sociedade que, em última instância, é sua principal beneficiária? Tal questionamento pode ser respondido, entre outras formas, por meio de uma avaliação desses cursos. Entretanto, a formação desses profissionais possui algumas peculiaridades que devem ser levadas em consideração.
A AVALIAÇÃO EDUCACIONAL E A FORMAÇÃO INICIAL DE POLICIAIS MILITARES
Como ponto de partida para esta seção, faz-se necessário definir o termo avaliação. Sabe-se que avaliação diz respeito ao ato de avaliar, que é, segundo o dicionário Michaelis (2020), “apreciação, cômputo ou estimação da qualidade de algo ou da competência de alguém”. A etimologia da palavra avaliação sugere que ela deriva do termo em latim valere, que significa “ser forte” e origina também o termo valor. Portanto, avaliar é atribuir valor, ou seja, a qualidade de “forte”, o que pode ser feito em qualquer área da vida social.
Posicionando o tema em termos científicos, Minayo (2005, p. 19) apresenta a seguinte definição: “avaliação, como técnica e estratégia investigativa, é um processo sistemático de fazer perguntas sobre o mérito e a relevância de determinado assunto, proposta ou programa”. Entretanto, o que parece ser simples e objetivo é, na verdade, um complexo campo em disputa, o qual é “constituído historicamente e como tal se transforma de acordo com os movimentos e as mudanças dos fenômenos sociais” (SOBRINHO, 2003, p. 14). Apesar disso, há registros de tipos de avaliação desde a antiguidade, em países como China e Grécia, para o exame de candidatos ao exercício de atividades públicas, prática que passou por várias mudanças, mas que permanece até os dias atuais5.
Embora a avaliação esteja presente em diversas áreas da vida individual e coletiva, é na educação que ela encontra melhores condições para se desenvolver, seja como conjunto de práticas em relação a alunos, conteúdos e instituições, seja como campo de estudos. A avaliação educacional, à qual se refere este artigo, pode ser compreendida como o campo que inclui, entre outras modalidades,
a avaliação dos alunos, a avaliação dos profissionais (educadores e professores), a avaliação institucional das escolas, a avaliação dos sistemas ou subsistemas educativos, a avaliação de projetos e programas, e a própria avaliação de políticas. (AFONSO, 2014, p. 488-489).
As disputas neste campo, como já foi dito, são constantes. Há diagnósticos e análises que mostram como determinados modelos de avaliação estão ligados às políticas de cunho neoliberal, formuladas por organismos internacionais (AFONSO, 2014), ou mesmo ao fenômeno chamado de empresariamento da educação e da sociedade (GADELHA, 2009) e pelo domínio de determinado discurso da qualidade, com a mera transferência dos conceitos empresariais para o campo das instituições públicas de educação, a ponto de o debate por democratização ser ofuscado ou mesmo substituído por aquele discurso (GENTILI, 2001).
Entretanto, entende-se aqui que formas de prestação de contas, de transparência e de avaliação podem ser importantes meios para a democratização das instituições públicas, compreendida por Libâneo (2013, p. 33) como sendo “a conquista, pelo conjunto da população, das condições materiais, sociais, políticas e culturais que lhe possibilitem participar na condução das decisões políticas governamentais”. Na segurança pública, então, o debate sobre esses instrumentos de avaliação mostra ser de fundamental importância, tendo em vista as demandas por aprimoramento democrático em suas instituições.
A avaliação da formação de policiais militares
Se a discussão sobre avaliação, no campo educacional em geral, é marcada por controvérsias e debates, na formação de policiais militares ela é ainda mais intensa. Embora tenham parâmetros e estruturas estabelecidas por legislação federal e sejam, por mandamento constitucional, força auxiliar e reserva do Exército6, as polícias militares estão subordinadas aos governadores dos estados e trazem as peculiaridades históricas e sociais da unidade da Federação a que pertencem. Este aspecto híbrido, de dupla chefia, também se reflete nas instituições de formação, bem como na avaliação de suas instituições de ensino.
Assim sendo, valeria perguntar: a qual instituição cabe o direcionamento e a fiscalização do ensino dos policiais militares? Segundo o Decreto-Lei Nº 667, de 2 de julho de 1969, cabe ao Estado-Maior do Exército Brasileiro, por meio da Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), como se vê na citada legislação:
Art. 21. Compete ao Estado-Maior do Exército, através da Inspetoria-Geral das Polícias Militares:
a) Centralizar todos os assuntos da alçada do Ministério do Exército relativos às Polícias Militares, com vistas ao estabelecimento da política conveniente e à adoção das providências adequadas.
b) Promover as inspeções das Polícias Militares tendo em vista o fiel cumprimento das prescrições deste decreto-lei.
c) Proceder ao controle da organização, da instrução, dos efetivos, do armamento e do material bélico das Polícias Militares.
d) Baixar as normas e diretrizes para a fiscalização da instrução das Polícias Militares.
e) Apreciar os quadros de mobilização para as Polícias Militares de cada Unidade da Federação, com vistas ao emprego em suas missões específicas e como participantes da Defesa Territorial.
f) Cooperar no estabelecimento da legislação básica relativa às Polícias Militares. (BRASIL, 1969, grifos nossos).
No Decreto Nº 88.777, de 30 de setembro de 1983 (BRASIL, 1983), que regulamenta as polícias militares e os corpos de bombeiros militares, a fiscalização do ensino e da instrução dessas corporações é reforçada como atribuição do Exército, por meio da IGPM:
Art. 26 – O ensino nas Polícias Militares orientar-se-á no sentido da destinação funcional de seus integrantes, por meio da formação, especialização e aperfeiçoamento técnico-profissional, com vistas, prioritariamente, à Segurança Pública.
Art. 27 – O ensino e a instrução serão orientados, coordenados e controlados pelo Ministério do Exército, por intermédio do Estado-Maior do Exército, mediante a elaboração de diretrizes e outros documentos normativos.
Art. 28 – A fiscalização e o controle do ensino e da instrução pelo Ministério do Exército serão exercidos:
1) pelo Estado-Maior do Exército, mediante a verificação de diretrizes, planos gerais, programas e outros documentos periódicos, elaborados pelas Polícias Militares; mediante o estudo de relatórios de visitas e inspeções dos Exércitos e Comandos Militares de Área, bem como por meio de visitas e inspeções do próprio Estado-Maior do Exército, realizadas por intermédio da Inspetoria-Geral das Polícias Militares;
2) pelos Exércitos e Comandos Militares de Área, nas áreas de sua jurisdição, mediante visitas e inspeções, de acordo com diretrizes e normas baixadas pelo Estado-Maior do Exército;
3) pelas Regiões Militares e outros Grandes Comandos, nas respectivas áreas de jurisdição, por delegação dos Exércitos ou Comandos Militares de Área, mediante visitas e inspeções, de acordo com diretrizes e normas baixadas pelo Estado-Maior do Exército. (BRASIL, 1983, grifos nossos).
Essa formulação de diretrizes para fins de instrução das polícias militares, com a correspondente fiscalização, funcionou por algum tempo. Segundo Veras (2006, p. 35), “a IGPM direcionava o ensino das corporações, lançando livros que eram incorporados ao conteúdo destinado à formação dos policiais, do soldado ao oficial”. O mais famoso desses livros foi o Manual Básico de Policiamento Ostensivo (MBPO), utilizado tanto na formação de praças como de oficiais. No Ceará, especialmente na antiga academia de oficiais, na qual o autor do artigo foi formado, esse manual recebeu a simpática alcunha de “Amarelinho”7.
Entretanto, para além das publicações, não se tem conhecimento de uma ação coordenada, no sentido de formular diretrizes curriculares sólidas para os cursos de formação policial, ao longo do tempo. Desta forma, abriu-se uma lacuna que foi preenchida, pelo menos no que tange ao currículo formal, à Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública do Governo Federal8. Foi a Senasp que, durante pouco mais de uma década, desenvolveu a Matriz Curricular Nacional (MCN) para Ações Formativas dos Profissionais da Área da Segurança Pública, um instrumento apresentado em 2003, que passou por atualizações nos anos de 2005, 2009 e 2014, sendo esta a sua versão atual (BRASIL, 2014).
A MCN é, atualmente, o “documento principal para a composição dos novos currículos nos cursos policiais militares”, conforme França (2018, p. 96). Para Basílio (2007, p. 62), a Matriz “possui uma grade curricular composta por disciplinas inerentes à atividade policial em uma sociedade democrática”. Pode-se dizer, então, que a Senasp, por meio da MCN, ocupou um espaço que seria originalmente destinado à IGPM, no que tange aos militares estaduais, em relação à elaboração de diretrizes para a formação e, adicionalmente, no esforço de adaptação das polícias ao cenário de um país que realiza esforços, até hoje, para consolidar a sua democratização.
Embora tenha tomado a vanguarda na elaboração de diretrizes para a educação em segurança pública, a Senasp não se estabeleceu como o órgão responsável pela avaliação dos cursos de formação dos profissionais dessa área. Tal fato pode ter ocorrido, pelo menos no que tange aos policiais e bombeiros militares, por conta da reserva dessa atribuição, feita por lei, à IGPM, como já foi explicado.
Já no ano de 2020, foi criada, por meio do Decreto Nº 10.379, de 28 de maio de 2020, na estrutura do Ministério da Justiça (MJ) do Governo Federal, a Secretaria de Gestão e Ensino de Segurança Pública (Segen). O novo órgão foi resultado, na prática, de uma divisão de funções na Senasp. Entre as competências da Segen, entretanto, não figura a de avaliação do ensino em segurança pública, como se vê:
Art. 28-A. À Secretaria de Gestão e Ensino em Segurança Pública compete:
I – coordenar as atividades relacionadas à gestão dos recursos de segurança pública;
II – promover e fomentar a modernização e o reaparelhamento dos órgãos de segurança pública;
III – promover a valorização, o ensino e a capacitação dos profissionais de segurança pública; e
IV – representar o Ministério no Comitê Gestor do Fundo Nacional de Segurança Pública. (BRASIL, 2020).
Na falta das avaliações educacionais feitas por instituições externas aos órgãos ministrantes da formação inicial de policiais militares com a consequente transparência e o controle social que poderiam trazer, foram propostas ou mesmo implantadas algumas soluções. Tavares dos Santos e outros (FBSP, 2013), no documento chamado Mapeamento dos modelos de ensino policial e de segurança pública no Brasil, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em parceria com a própria Senasp, fazem uma série de recomendações relacionadas à avaliação e à padronização de cursos, entre as quais se destacam as seguintes:
9. Avaliar as unidades de ensino policial segundo os procedimentos do Ministério da Educação e Cultura (MEC);
10. Certificar todas as unidades de ensino policial pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC);
11. Fomentar acordos entre Academias, Escolas de Polícia e Universidades em colaboração para a promoção e a avaliação do ensino (FBSP, 2013, p. 61, grifos nossos).
O que se percebe é a preocupação dos autores em estabelecer padrões mínimos de qualidade e de eficiência desses cursos, o que se daria por meio de uma possível adoção do padrão estabelecido pelo MEC. Esse padrão seria garantido por meio de avaliação e certificação daquele órgão. Entretanto, a recomendação parece ter esbarrado em diversos empecilhos, sendo o primeiro deles, jurídico. O ensino militar, conforme o art. 83 da Lei Nº 9.634, de 20 de dezembro de 1996, também conhecida por Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), “é regulado em lei específica, admitida a equivalência de estudos, de acordo com as normas fixadas pelos sistemas de ensino” (BRASIL, 1996). Assim, as instituições que ministram essa modalidade de ensino, entre as quais aquelas que formam policiais militares, não estão subordinadas às regras e à fiscalização do Ministério da Educação (MEC) e seus órgãos. Portanto, há também um elemento político que envolve a luta pela relativa autonomia que, embora de forma criticável, foi garantida pela LDB. Uma situação delicada que, com a criação das academias integradas, ganha mais elementos complicadores.
ACADEMIAS INTEGRADAS: UM NOVO MODELO E SEUS DILEMAS NA AVALIAÇÃO EDUCACIONAL DA FORMAÇÃO DOS MILITARES ESTADUAIS
A partir da segunda metade da década de 1990, um novo modelo de estabelecimento de formação de profissionais de segurança pública começa a surgir em alguns estados da Federação. São as academias integradas, instituições pouco estudadas, que podem ser assim classificadas quando constituem órgãos voltados ao oferecimento de formação, inicial e continuada, para mais de uma força de segurança pública no mesmo espaço físico ou sob uma mesma administração. Segundo Sales (2016, p. 27) “o modelo de Academias Integradas no Brasil parte de um esforço de gerar pontos de convergência na atuação profissional”. Se de fato têm alcançado tal objetivo é algo que não está evidente, necessitando, portanto, ser elucidado.
Alguns estados, especialmente das regiões Norte e Nordeste, adotaram esse modelo, enquanto os demais permanecem com suas tradicionais instituições de ensino, separadas e administradas por cada uma das corporações9. Comparando-se tais instituições, nota-se uma série de diferenças entre elas, como o fato de algumas conservarem suas academias antigas, apenas reunindo-as sob a gestão de uma instância superior.
Não é escopo deste trabalho detalhar as diferenças entre todas as academias integradas. Entretanto, apenas para marcar a diferença, utilizar-se-á dois casos. O primeiro é o do Instituto de Ensino de Segurança do Pará (IESP-PA). Ele é uma “unidade de ensino com gestão própria, autonomia didática, científica e disciplinar” (JANUÁRIO; SOUZA, 2018, p. 39), sendo um órgão vinculado à Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (SEGUP). Embora possua um Diretor, o IESP-PA é dirigido por um Conselho Superior (CONSUP), o qual é “deliberativo, responsável pela aprovação das ações formativas e administrativas do Instituto” (JANUÁRIO; SOUZA, 2018, p. 50). O IESP-PA é organizado a partir das Unidades Acadêmicas, que são justamente as academias ou escolas de formação existentes no Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social do Pará. Assim, é como se o IESP funcionasse como uma universidade e as academias fossem faculdades por ele coordenadas.
Já a Academia Estadual de Segurança Pública do estado do Ceará (AESP) possui algumas características que a diferenciam do Instituto paraense. Ela é a instituição de ensino de segurança pública criada por meio da Lei Nº 14.629, de 26 de fevereiro de 2010 (CEARÁ, 2010), que também trouxe a previsão da desativação e extinção de todas as outras unidades de ensino e instrução dos órgãos do sistema de segurança pública do estado. Em atendimento ao previsto na lei, foi publicado, em seguida, o Decreto Nº 30.188, de 14 de maio de 2010, por meio do qual foram extintas as seguintes unidades de ensino de segurança pública do Ceará: Academia de Polícia Civil Delegado Wanderley Girão Maia, Academia de Polícia Militar General Edgard Facó (APMGEF), Academia de Bombeiros Militar (ABM) e Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia Militar (CFAP), além da Diretoria de Ensino da PMCE e seu Conselho de Ensino.
Embora já se observe a criação de academias integradas na década de 1990, o surgimento das Academias Integradas pode ser compreendido como um fenômeno que se inicia com o desejo, de formuladores de políticas públicas e intelectuais, de integração das polícias estaduais a partir da redemocratização do Brasil. Esse tema aparece já no plano do governo de Fernando Collor, em 1991 (SPANIOL; MORAES JR.; RODRIGUES, 2020). No Plano Nacional de Segurança Pública, lançado no ano 2000 no período da presidência de Fernando Henrique Cardoso, aparece, ainda que de forma tímida, a previsão de “Estimular a melhor integração entre as polícias civil e militar mediante harmonização das respectivas bases territoriais, sistemas de comunicação e informação, treinamento básico e planejamento comum descentralizado” (BRASIL, 2000). Finalmente, no ano de 2003, foi lançado o Projeto Segurança Pública para o Brasil, já sob o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Neste, o tema da integração da formação aparece expressamente em forma de recomendação, sob o título “unificação progressiva das academias e escolas de formação”:
A unificação progressiva das academias e escolas de formação não se limita à integração dos currículos. É preciso que as polícias civis e militares, da base operacional aos setores intermediários e superiores, sejam formadas em uma única academia ou escola descentralizada, fundada nos preceitos da legalidade democrática e do respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. (BRASIL, 2003).
A integração das academias foi ainda apresentada como uma das 20 Proposições para a Reforma do Ensino Policial no Brasil, presentes no documento produzido pelo FBSP, no ano de 2013. Tal proposição trazia o seguinte teor: “Integrar todas as escolas de polícia (Polícia Civil, Militar, Serviços Penitenciários e Perícias) em Centros de Educação em Segurança Cidadã, em um período máximo de dois anos” (FBSP, 2013, p. 60). Algumas dessas academias, inclusive, passaram a formar os futuros policiais militares na condição de “candidatos”, ou seja, de civis ainda não incluídos na corporação. É o caso, por exemplo, dos estados do Ceará e do Maranhão, nos quais o curso de formação passou a ser parte do concurso.
O processo de criação de academias integradas, entretanto, parece ter sido praticamente paralisado no ano de 2010, sendo a AESP a oitava e última instituição conforme tal modelo. No ano de 2016, havia 8 academias integradas no país, conforme Quadro 1, a seguir.
Quadro 1 – Academias Integradas de Segurança Pública no Brasil, até o ano de 2016
NOME DO ESTABELECIMENTO | SIGLA | UNIDADE DA FEDERAÇÃO | ANO DE CRIAÇÃO |
---|---|---|---|
Academia Integrada de Formação e Aperfeiçoamento | AIFA | Amapá | 1997 |
Instituto de Ensino de Segurança do Pará | IESP | Pará | 1999 |
Academia Integrada de Segurança Pública | AISP | Maranhão | 2002 |
Academia de Polícia Integrada Coronel Santiago | APICS | Roraima | 2004 |
Academia Integrada de Defesa Social | ACIDES | Pernambuco | 2005 |
Instituto Integrado de Ensino de Segurança Pública | IESP | Amazonas | 2007 |
Centro Integrado de Ensino e Pesquisa de Segurança Pública Francisco Mangabeira | CIEPS | Acre | 2008 |
Academia Estadual de Segurança Pública | AESP | Ceará | 2010 |
Fonte: o próprio autor, a partir de Sales (2016).
Os argumentos que norteiam a criação desse novo modelo de academia parecem ser basicamente dois: economia e qualidade. O primeiro diz respeito ao fato de que, nos estados em que vigora o modelo tradicional há, geralmente, em torno de 5 (cinco) escolas de formação: o centro de formação de praças e a academia de formação de oficiais da polícia militar; o centro de formação de praças e a academia de formação de oficiais do corpo de bombeiros militar e a academia da polícia civil. O número de estabelecimentos de ensino pode variar, mas o argumento é de que seria menos custoso para o estado manter um único espaço físico, que seria utilizado por todas as instituições durante suas formações. O segundo argumento parece ter um peso maior na decisão de criar uma academia integrada. Veja-se, por exemplo, o depoimento do então secretário de segurança do estado do Ceará, à época em que a AESP estava em construção:
Tínhamos quatro academias, uma da Polícia Civil, duas da Polícia Militar e uma do Corpo de Bombeiros. As quatro, somando-se, não dava uma. Todas muito precárias, em termos de estrutura, equipamento, professores etc. Então, a ideia do governo foi montar um centro de excelência, uma academia única, que está sendo construída. Essa academia já terá uma capacidade maior, para formar, por exemplo, de uma vez só, 1.200 homens. (ALMEIDA, 2015, p. 158).
Em que pese a importante diferença que deve ser feita entre qualidade na formação e quantidade de alunos, o que se nota na fala do ex-secretário é que havia a preocupação em transformar a nascente academia integrada em um lugar de excelência na educação dos profissionais de segurança pública. Hoje, 10 anos após a sua criação, a avaliação educacional pode ajudar a comprovar se de fato isso tem ocorrido. O mesmo vale para todas as outras instituições de ensino policial existentes no país.
Entretanto, esse novo modelo de academia acrescenta um novo elemento ao já complexo problema de avaliar os cursos de formação dos policiais militares. As academias integradas, que abrigam civis e militares como discentes em suas respectivas formações iniciais, são instituições civis ou militares? A resposta, embora nebulosa, parece ser a primeira opção, especialmente nos casos das academias em que os alunos são ainda “candidatos”.
Possíveis soluções para a realização de avaliação institucional nas academias integradas
Diante das situações apresentadas, nota-se que seria preciso, em primeiro lugar, uma definição na legislação nacional acerca da responsabilidade de avaliar os cursos de formação de policiais militares. É necessário que algum órgão nacional realize essas avaliações ou, pelo menos, estabeleça parâmetros e indicadores que possibilitem aferir a qualidade dos cursos, bem como permitam o aprendizado institucional a partir de exemplos dos estados da Federação que se destaquem na referida avaliação, sempre respeitando as peculiaridades e identidades regionais.
Enquanto isso não ocorre, algumas soluções possíveis, embora não definitivas, são vislumbradas. Uma delas é o estabelecimento de convênios ou acordos de cooperação com universidades públicas ou privadas, para que possam realizar essa avaliação. Tal possibilidade, embora possa ser interessante por contar com a expertise e a experiência de profissionais e pesquisadores da educação, pode não ser a melhor opção, tanto pela questão da autonomia das instituições de ensino de segurança pública como também por conta das peculiaridades do ensino policial militar, em parte desconhecido da comunidade universitária. Ao mesmo tempo, proporciona uma oportunidade de convivência entre diferentes atores e uma contribuição da universidade para a garantia de um serviço de policiamento melhor.
Outra opção é a autoavaliação. Além de possibilitar a melhoria dos processos pedagógicos dos cursos, proporcionando aumento da qualidade, ela é também uma importante ferramenta de gestão e transparência. Ela permite demonstrar ao cidadão que seus tributos têm sido bem administrados naquele órgão, e que essa é uma preocupação da própria instituição, sendo mais um passo no processo contínuo de democratização da sociedade brasileira, por meio da melhoria dos serviços públicos. Boanafina (2009), que apresenta uma proposta de autoavaliação de cursos, explica:
Um processo de avaliação (no caso, autoavaliação) representa, também, uma forma de prestação de contas à sociedade (accountability). Considerando que na maioria dos programas governamentais, determinadas atividades visíveis à população, embora eficientes no uso dos recursos, têm deixado de ser eficazes no alcance dos objetivos. (BOANAFINA, 2009, p. 12).
No estado do Pará, o IESP-PA, que, como foi dito, pode ser considerado uma academia integrada, instaurou, no ano de 2017, uma Comissão Permanente de Avaliação (CPA), a qual tem por objetivo:
conduzir e aperfeiçoar o processo de avaliação interna da instituição fortalecendo a cultura de avaliação institucional que fomente a reflexão e revisão crítica das práticas educativas, a fim de alcançar a qualidade pedagógica nas políticas institucionais de sistematização e de prestação das informações solicitadas pelo INEP, no âmbito do SINAES. (PARÁ, 2018).
O SINAES, ao qual se refere a Portaria do IESP-PA, é o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior. Instituído por meio da Lei Nº 10.861, de 14 de abril de 2004, tem por objetivo “assegurar processo nacional de avaliação das instituições de educação superior, dos cursos de graduação e do desempenho acadêmico de seus estudantes” (BRASIL, 2004), sendo composto por três partes fundamentais: a avaliação das instituições, dos cursos e dos estudantes, possuindo uma série de instrumentos avaliativos para isso. Vale a pena, então, destacar, as dimensões institucionais que, obrigatoriamente, devem estar presentes nesse tipo de avaliação, segundo a lei que institui o Sistema citado.
I – a missão e o plano de desenvolvimento institucional;
II – a política para o ensino, a pesquisa, a pós-graduação, a extensão e as respectivas formas de operacionalização, incluídos os procedimentos para estímulo à produção acadêmica, às bolsas de pesquisa, de monitoria e demais modalidades;
III – a responsabilidade social da instituição, considerada especialmente no que se refere à sua contribuição em relação à inclusão social, ao desenvolvimento econômico e social, à defesa do meio ambiente, da memória cultural, da produção artística e do patrimônio cultural;
IV – a comunicação com a sociedade;
V – as políticas de pessoal, as carreiras do corpo docente e do corpo técnico-administrativo, seu aperfeiçoamento, desenvolvimento profissional e suas condições de trabalho;
VI – organização e gestão da instituição, especialmente o funcionamento e representatividade dos colegiados, sua independência e autonomia na relação com a mantenedora, e a participação dos segmentos da comunidade universitária nos processos decisórios;
VII – infraestrutura física, especialmente a de ensino e de pesquisa, biblioteca, recursos de informação e comunicação;
VIII – planejamento e avaliação, especialmente os processos, resultados e eficácia da autoavaliação institucional;
IX – políticas de atendimento aos estudantes;
X – sustentabilidade financeira, tendo em vista o significado social da continuidade dos compromissos na oferta da educação superior (BRASIL, 2004).
Ao se referir a tal diploma legal, o IESP-PA, talvez por ser legalmente reconhecido como uma Instituição de Ensino Superior (IES), utiliza um instrumento civil de avaliação, equiparando-se, neste quesito, às demais faculdades, aos centros de ensino universitário e às universidades do país. Seria, afinal, esse o caminho a ser seguido pelas academias integradas? Só o tempo e os caminhos da política dirão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho, buscou-se apresentar os desafios a serem enfrentados para que exista, em termos efetivos, a prática da avaliação educacional relacionada aos cursos de formação inicial de policiais militares. Tais desafios, que já eram, de certa forma, velhos, pois que dependentes de arranjos institucionais criados por leis de períodos anteriores à Constituição Federal de 1988, especialmente do período da ditadura militar.
Tais desafios são renovados e recebem um elemento complicador a partir do advento das novas academias integradas que surgem a partir da década de 1990. Tais academias, embora com características próprias em cada um dos estados que implantaram tal modelo, recebem integrantes das diversas instituições de segurança pública para realizarem seus cursos de formação, inclusive policiais militares. Em algumas delas, inclusive, o curso de formação inicial para ingresso na corporação policial militar é ainda fase do concurso, e o seu discente é apenas “candidato”, ainda não incluído nos quadros da instituição10.
Todos esses fatores impõem novas reflexões, na tentativa de resolver um velho problema que é o de aferir a qualidade da educação profissional oferecida aos futuros policiais militares. Dessa boa formação, intelectual e moral, depende o seu bom desempenho nas ruas. Além de avaliar, é necessário dar publicidade e transparência aos resultados dessa avaliação, sendo tal instrumento um importante meio para a democratização da segurança pública brasileira.
Por fim, apresentou-se algumas soluções para que os cursos de formação de policiais militares possam ter parâmetros de excelência e, enfim, colaborarem para uma sociedade mais segura e democrática. A primeira possibilidade é a mudança na legislação nacional, a fim de viabilizar a avaliação desses cursos por um órgão nacional ou, pelo menos, que sejam criados parâmetros e indicadores que permitam nortear essa avaliação pelos estados. Outra opção foi a realização de convênios ou acordos de cooperação técnica com universidades públicas e privadas, para fins de avaliação externa. Por fim, apontou-se a autoavaliação como caminho possível e efetivo para aferir a qualidade dos cursos ao mesmo tempo em que garante transparência às instituições de ensino, contribuindo para a democratização da segurança pública.
Espera-se, ao final deste trabalho, que ele tenha contribuído de alguma forma para levantar questões importantes e novas perspectivas sobre o tema da avaliação educacional na formação de policiais militares, cada vez mais necessária diante das exigências da sociedade brasileira.
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Vale, desde já, explicar que existem basicamente duas formas de ingresso nas polícias militares. A primeira é por meio do concurso público para a carreira de praças, que vai da graduação de soldado à de subtenente, os quais são os responsáveis pela execução do policiamento. Outra forma é por meio do concurso para a carreira de oficiais, que formam a categoria que comanda a corporação. Os postos desta carreira vão de 2º tenente até coronel. Existem ainda as praças especiais, que são os aspirantes a oficiais e os alunos das escolas de formação de oficiais. Essa estrutura de postos e graduações é estabelecida pelo Decreto-Lei Nº 667, de 2 de julho de 1969, com algumas variações, tanto na supressão de cargos como nos requisitos de ingresso, a depender do estado da Federação.↩︎
Libâneo (2013, p. 15) apresenta duas definições de educação, uma em sentido amplo e uma em sentido estrito. Em sentido amplo, a educação “compreende os processos formativos que ocorrem no meio social, nos quais os indivíduos estão envolvidos de modo necessário e inevitável pelo simples fato de existirem socialmente”. Já no sentido estrito, a educação é aquela que “ocorre em instituições específicas, escolares ou não, com finalidades explícitas de instrução e ensino mediante uma ação consciente, deliberada e planificada”. Embora saibamos que as duas definições se complementam, neste trabalho será marcada a ênfase na educação em sentido estrito.↩︎
Bayley (2006, p. 17) afirma que “a manutenção da ordem é a função essencial do governo”. Na mesma passagem, assevera ainda o mesmo autor que “as atividades policiais também determinam os limites da liberdade numa sociedade organizada, algo essencial para se determinar a reputação de um governo”.↩︎
Sapori (2007, p. 117) destaca a “proliferação de parcerias entre as organizações policiais militares e as universidades, institutos de pesquisa e organizações não governamentais”.↩︎
Segundo Sobrinho (2003, p. 15), essa prática avaliativa praticada na Grécia chamava-se “docimasia”, a qual consistia “numa verificação das aptidões morais daqueles que se candidatavam a funções públicas”.↩︎
Muniz (2001) explica que o termo “forças auxiliares do Exército” apareceu pela primeira vez na Constituição de 1934, sendo ampliado para forças auxiliares e reserva do Exército em 1946. A Constituição de 1967 e a atual Constituição de 1988 mantiveram essa redação.↩︎
Veras (2006) afirma que o MBPO ou “Amarelinho” era referência tanto na formação de oficiais quanto de praças, e era utilizado em todas as polícias militares do Brasil.↩︎
Criada pelo Decreto Nº 2.315, de 4 de setembro de 1997, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), a Senasp tinha, entre várias outras funções, as de apoiar a modernização do aparelho policial do País e de estimular a capacitação dos profissionais da área de segurança pública.↩︎
Sales (2016), em seu trabalho, contabilizou 92 instituições de ensino de segurança pública no país, sendo que somente 8,7% utilizavam o modelo de ensino integrado.↩︎
No caso do estado do Ceará, quando este artigo já se encontrava em fase de conclusão, foi aprovada a Lei Nº 17.478, de 17 de maio de 2021, que altera o modelo de formação até então vigente. Com a mudança, o curso de formação para ingresso nas carreiras de oficiais e de praças voltou a ocorrer com o aluno já incluído nos quadros da corporação policial militar, sendo chamado de cadete, no caso dos oficiais, e de aluno-soldado, no caso dos praças (CEARÁ, 2021).↩︎