A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA NAS DECISÕES PROFERIDAS NO ÂMBITO DO TRIBUNAL DO JÚRI

Almir Santos Reis Junior

Doutor em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professor adjunto do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor convidado dos cursos de Mestrado em Direito Penal e Doutorado em Direito Público, ambos da Universidade Católica de Moçambique.

País: Brasil Estado: Paraná Cidade: Maringá

Email: almir.crime@gmail.com Orcid: http://orcid.org/0000-0002-6228-274X

Julia Tivo Vieira

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Pós-graduada em Direito; Atualmente é assessora na Vara de Família de Maringá, no Estado do Paraná.

País: Brasil Estado: Paraná Cidade: Maringá

Email: juliativo@hotmail.com Orcid: http://orcid.org/0000-0001-7938-8527

Contribuições dos autores:

Ambos colaboraram para a elaboração de todo texto produzido.

RESUMO

O presente trabalho busca analisar a constitucionalidade do instituto da execução provisória da pena nas decisões proferidas no âmbito do Tribunal do Júri a partir da inovação trazida no Código de Processo Penal, pela Lei 13.964/19, em relação à execução da pena nos crimes com pena igual ou superior à 15 (quinze) anos de reclusão. Sua problemática pousa-se, dentre outros aspectos, na implementação da execução provisória da pena como instituto de caráter punitivista, que, possivelmente, incidirá diretamente no aumento da população carcerária, que já se encontra em estado decadente. Para isso, utilizou-se o método hipotético-dedutivo por meio da pesquisa em doutrina, legislação e outras fontes bibliográficas. Ao final, chegou-se à conclusão de que a execução provisória da pena não coaduna com as diretrizes dispostas na Carta da República, de 1988. Além disso, dados do Departamento Penitenciário Nacional mostram aumento expressivo da população carcerária relacionada a homicídios qualificados no ano de 2020; fato que demostra o caráter punitivista da execução provisória.

Palavras-chave: Execução Provisória da Pena. Resposta Penal. Tribunal do Júri.

THE (IN)CONSTITUTIONALITY OF THE PROVISIONAL EXECUTION OF THE SENTENCE IN THE DECISIONS RENDERED IN THE SCOPE OF THE JURY

ABSTRACT

The present paper seeks to analyze the constitutionality of the institute of the provisional execution of the sentence in the decisions rendered in the scope of the Court of Law based on the innovation brought by the Code of Criminal Procedure, by the Law 13.964/19, regarding the execution of the sentence in crimes with penalty equal or greater than 15 (fifteen) years of incarceration. Its problem rests, among other aspects, on the implementation of the provisional execution of the sentence as a punitivist institute, which directly affects the increase of the prison population, that is already decadent. Thereunto, the hypothetical-deductive method was used through research in doctrine, legislation and other bibliographic sources. Finally, it was concluded that the provisional execution of the sentence does not comply with the guidelines in the 1988 Constitution. In addition, data from the National Penitentiary Department show a significant increase in the prison population related to qualified homicides in 2020; a fact that demonstrates the punitive nature of provisional execution.

Keywords: Court of Law. Penal Response. Provisional Execution of the Sentence.

Data de Recebimento: 16/03/2021 – Data de Aprovação: 03/11/2021

DOI: 10.31060/rbsp.2023.v17.n1.1455

INTRODUÇÃO

O instituto da execução provisória da pena gera muita controvérsia no meio jurídico, principalmente, quanto ao momento adequado para dar início à fase executiva da pena. O presente trabalho aborda a problemática sobre a necessidade ou não do trânsito em julgado da sentença penal condenatória como marco para o início da execução penal no âmbito das decisões do Tribunal do Júri. Portanto, o escopo é analisar a legalidade da execução provisória da pena na esfera do Tribunal do Júri, a partir da introdução do art. 492, I, e do Código de Processo Penal pela Lei 13.964/19.

Para tanto, o trabalho apresenta as consequências da implementação da execução provisória da pena no sistema penitenciário brasileiro, apontando estatísticas do Departamento Penitenciário Nacional que relevam o aumento de presos por crimes dolosos contra a vida a partir da vigência da Lei 13.964/19. O referido estudo é de extrema relevância considerando o estado de coisa inconstitucional do sistema penitenciário, porquanto, encontra-se com sua capacidade máxima excedida, tornando o cumprimento da pena avesso às suas finalidades.

Para realização da presente pesquisa, utilizou-se o método hipotético-dedutivo, com a investigação de obras doutrinárias, bem como da legislação pertinente ao tema.

A EXECUÇÃO IMEDIATA DAS SENTENÇAS PROFERIDAS NO ÂMBITO DO TRIBUNAL DO JÚRI E SUA “RECEPTIVIDADE” CONSTITUCIONAL

A discussão acerca da constitucionalidade da execução provisória da pena no âmbito jurídico gera muita controvérsia, sendo que ao longo dos anos o posicionamento dos Tribunais se alterou diversas vezes, culminando no entendimento atual de que a execução da pena deve observar o marco temporal do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Da análise da alteração introduzida pela Lei 13.964/2019, no âmbito do Tribunal do Júri, depreende-se que esta se mostra totalmente contrária aos princípios constitucionais, especialmente da humanidade, e ao atual entendimento jurisprudencial.

Nesse sentido, nos tópicos seguintes serão apresentados argumentos que justificam rechaçar a aplicação da execução provisória das sentenças proferidas na esfera dos crimes dolosos contra a vida.

AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS NO ARTIGO 492, INCISO I, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, PELA LEI 13.964/2019

A Lei 13.964/2019 promoveu alterações significativas no âmbito das legislações penal e processual penal. As alterações causaram inovações expressivas do ponto de vista legislativo, o que promoveu severas críticas. A nova redação do artigo 492, inciso I, alínea “e”, do Código de Processo Penal, por exemplo, é objeto de crítica, pois introduziu uma nova sistemática na execução da pena no âmbito das decisões proferidas pelo Tribunal do Júri, possibilitando a execução provisória da pena na hipótese de condenação em pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão. Nesse sentido, dispõe o referido artigo:

Art. 492 [...], inciso I

e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos; [...].

Nesse caso, verifica-se que a primeira parte do dispositivo está em consonância com a legislação processual penal, mormente o disposto no §1°, do art. 387, do Código de Processo Penal, pois no caso de condenação à pena inferior a 15 (quinze) anos de reclusão, o juiz deverá justificar a manutenção ou decretação da prisão do réu, cumprindo a ele expedir alvará de soltura na hipótese de inexistência dos requisitos ensejadores da prisão preventiva. Por outro lado, a segunda parte da alteração introduzida no referido artigo destoa do regramento referente à prisão preventiva, porquanto permite que se decrete a prisão imediata ao réu, levando em conta apenas o critério temporal da pena.

A partir dessa alteração, foi introduzido nos parágrafos 3° ao 6°, do art. 492, do Código de Processo Penal, importantes inovações no que tange ao recurso de apelação face decisões do Tribunal do Júri. De acordo com a nova sistemática, a execução provisória da pena passa a ser regra, tendo em vista que o recurso de apelação, interposto contra decisão condenatória do Tribunal do Júri para combater pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, não terá efeito suspensivo automático. Isso porque tal efeito só será concedido em caráter excepcional, mediante pedido da parte. Nesse sentido:

[...] o teor do art. 492, §4º, do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19. Se a regra é a execução provisória, a própria lei admite, sempre excepcionalmente, a atribuição de efeito suspensivo a eventual recurso de apelação interposto pela defesa, seja pelo próprio juiz presidente (CPP, art. 492, §3º), seja pelo Relator designado perante o juízo ad quem (CPP, art. 492, §5º), hipótese esta em que o pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito incidentemente na apelação ou por meio de petição em separado dirigida diretamente ao relator, instruída com cópias da sentença condenatória, das razões da apelação e de prova da tempestividade, das contrarrazões e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia. (CPP, art. 492, §6º). (LIMA, 2020, p. 1542).

Em todos os casos, têm-se que o efeito suspensivo só será deferido quando envolver questão substancial somada ao fato de que o apelo não tenha caráter protelatório. A questão substancial, expressa nos §3° e §5°, inciso II, do artigo em questão, “cuida de um conceito indeterminado que expressa a ideia de uma questão séria, fundada, que apresente reais e plausíveis chances de beneficiar o réu” (KURKOWSKI, 2020, p. 430). Portanto, quando houver interposição de um recurso com o condão de discutir questão substancial, caberá ao juiz-presidente atribuir-lhe efeito suspensivo, impedindo a prisão imediata do réu.

Na mesma linha, o §5°, do art. 492, do Código de Processo Penal, prevê que o juízo ad quem poderá atribuir efeito suspensivo quando levantada questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão. Então, quando o juiz de primeiro grau não reconhece o efeito suspensivo, embora presente questão substancial, nada obsta que o apelante requeira, liminarmente, no apelo, tal efeito ao tribunal competente para apreciar o recurso. Além disso, pela redação do §5º, inciso I, do art. 492, do Código de Processo Penal, é necessário que o apelo não tenha caráter protelatório.

Em síntese, as alterações introduzidas pela Lei 13.964/19, ao Código de Processo Penal, mais precisamente a nova redação dada ao art. 492, no que diz respeito às decisões proferidas no âmbito do Tribunal do Júri, estabeleceram como regra a execução provisória da pena, utilizando como parâmetro apenas o critério quantitativo da pena, igual ou maior que 15 (quinze) anos de reclusão; possibilitando em caráter excepcional a concessão de efeito suspensivo ao recurso de apelação contra sentença condenatória, o que torna o cumprimento da pena praticamente automático.

DA ILEGALIDADE DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA

Pode-se afirmar que a execução da pena é uma “[...] fase processual em que o Estado faz valer a pretensão executória da pena, tornando efetiva a punição do agente e buscando a concretude das finalidades da sanção penal” (NUCCI, 2018, p. 3). Portanto, o início da execução da pena depende da ocorrência do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, pois somente assim ter-se-á um título executivo judicial passível de execução, conforme entoa o conteúdo descrito no art. 669, do Código de Processo Penal. Ainda, de acordo com o art. 1°, da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal), um dos objetivos da execução penal é efetivar as disposições da sentença ou a decisão condenatória. No mesmo sentido, é o mandamento disposto no art. 283, do Código de Processo Penal, que estabelece como marco inicial para execução da pena a condenação criminal transitada em julgado. Isso significa que a execução da pena antes do trânsito em julgado está totalmente em divergência com o ordenamento jurídico brasileiro.

Diferencia-se, ainda, a prisão provisória, especialmente a modalidade preventiva, de execução provisória da pena; isso porque a primeira trata-se de hipótese de prisão processual cautelar, decretada em situações excepcionais, em que se observe a presença dos requisitos expressamente previstos nos art. 312 e 313, do Código de Processo Penal, enquanto a segunda, de natureza penal, ou seja, de resposta penal face violação de norma de direito material.

Historicamente, a possibilidade da execução provisória da pena gerou muita controvérsia nos âmbitos doutrinário e jurisprudencial, observando-se entendimentos em sentidos diversos ao longo do tempo, culminando no posicionamento arrimado desde 2019, pelo STF, que ao julgar as ADCs 43, 44 e 54 (Rel. Min. Marco Aurélio) sobre a extensão de aplicabilidade do art. 283, do Código de Processo Penal, manifestou pela vedação à execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

A questão abarca a discussão sobre o princípio da presunção de inocência e do estado de culpabilidade do sujeito, tendo em vista que o art. 5°, inciso LVII, da Carta da República, conclama que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Sob tal lente constitucional, a imposição de prisão antes do trânsito em julgado, e ainda sem os requisitos da prisão preventiva, é totalmente inadmissível, ainda que a decisão seja proferida pelo juiz presidente do Tribunal do Júri.

Aliás, em recente julgamento, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu pedido liminar no sentido de obstar a execução provisória da pena:

HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRIPLO HOMICÍDIO, LESÃO CORPORAL E USO DE DOCUMENTO FALSO. EMBRIAGUEZ NA DIREÇÃO VEICULAR. PRISÃO PREVENTIVA. PRISÃO AUTOMÁTICA DECORRENTE DE CONDENAÇÃO PROFERIDA POR TRIBUNAL DO JÚRI. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE FUNDAMENTOS CONCRETOS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. 1. O decreto de prisão, in casu, está calcado no entendimento de que seria possível a execução provisória da pena, ante o veredicto condenatório proferido pelo Tribunal do Júri. 2. No âmbito desta Corte Superior, é ilegal a prisão preventiva, ou a execução provisória da pena, como decorrência automática da condenação proferida pelo Tribunal do Júri. Precedentes. 3. A compreensão do Magistrado, ainda que calcada em precedente oriundo da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, não foi endossada pelo Plenário daquela Corte. Nesse toar, cabe salientar que existe precedente posterior da Segunda Turma do STF julgando pela impossibilidade da execução provisória da pena, mesmo em caso de condenação pelo Tribunal do Júri (STF: HC n. 163.814/MG, Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 19/11/2019). Vale ressaltar, ainda, que a referida decisão da Primeira Turma do STF foi tomada antes do resultado das ADCs n. 43/DF, n. 44/DF e n. 54/DF, julgadas em 7/11/2019. 4. Ordem concedida para assegurar ao paciente o direito de aguardar em liberdade o trânsito em julgado da condenação, ressalvada a existência de motivos concretos, novos ou contemporâneos que justifiquem a necessidade da prisão preventiva. Liminar confirmada (HABEAS CORPUS 560.640 – DF).

Portanto, em uma breve análise do tema, é possível inferir que, se o Superior Tribunal de Justiça proibiu a execução provisória da pena após condenação confirmada por um Tribunal de segunda instância, com muito mais razão proíbe sua execução por uma condenação apenas em primeira instância.

Ausência dos requisitos da prisão preventiva na execução provisória da pena em razão de seu caráter penal

Como anteriormente mencionado, não se confunde a execução provisória da pena com a prisão preventiva. Nota-se que esta é decretada em razão de situação excepcional em que se observem os requisitos expressos em lei; sua natureza cautelar. A prisão preventiva tem previsão legal no Código de Processo Penal e é uma das modalidades de medida cautelar pessoal, entendida como sendo uma das mais gravosas, pois restringe a liberdade humana antes da resposta penal.

Sendo uma medida de grave repercussão, é necessário a observância de pressupostos legalmente previstos no art. 312, do Código de Processo Penal, para sua decretação, quais sejam os indícios de autoria e a prova da materialidade somados à existência de um dos seguintes fundamentos: a garantia da ordem pública; a garantia da ordem econômica; a conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal. Além disso, é preciso que estejam presentes as condições dispostas no art. 313, do Código de Processo Penal, que determina a necessidade de que o crime imputado ao sujeito seja doloso e tenha pena máxima superior a 4 anos; excepcionalmente, os crimes dolosos com pena igual ou inferior a 4 anos, permitem a prisão preventiva desde que o indiciado ou réu seja reincidente; que haja dúvida sobre sua identidade ou que o crime envolva violência doméstica e familiar contra mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

Em razão de sua excepcionalidade, deve-se observar com rigor a presença dos requisitos para decretação da prisão preventiva, sendo que sua inobservância pode acarretar na configuração do crime de abuso de autoridade. Acerca de seu caráter excepcional disserta Basileu Garcia:

A necessidade da prisão preventiva, segundo o entendimento comum, está sujeita a duplo ajuizamento. Deve o legislador limitar-lhe os casos ao estritamente indispensável e deve o magistrado proceder, em cada hipótese, a prudente verificação, para impor a medida só quando efetivamente o exijam os superiores interesses da justiça. (GARCIA, 1945, p. 145).

Como modalidade de prisão cautelar, a prisão preventiva é decretada antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, desde que com a finalidade de assegurar o interesse do autor – Ministério Público ou Querelante – na ação principal. Nesse âmbito, Renato Brasileiro de Lima ressalva que:

A prisão cautelar deve estar obrigatoriamente comprometida com a instrumentalização do processo criminal. Trata-se de medida de natureza excepcional, que não pode ser utilizada como cumprimento antecipado de pena, na medida em que o juízo que se faz, para sua decretação, não é de culpabilidade, mas sim de periculosidade. (LIMA, 2020, p. 175).

Por outro lado, a execução provisória da pena dispensa a presença de requisito processual cautelar para sua incidência, pois, em regra, sua natureza é penal. Para sua ocorrência, não se impõe o caráter de excepcionalidade das prisões cautelares, como acontece na decretação da prisão preventiva, bastando apenas a existência de sentença condenatória penal. Fato inadmissível, pois como alerta Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa:

ao não se revestir de caráter cautelar, sem, portanto, analisar o periculum libertatis e a necessidade efetiva da prisão, se converte em uma prisão irracional, desproporcional e perigosíssima, dada a real possibilidade de reversão já em segundo grau (sem mencionar ainda a possibilidade de reversão em sede de recurso especial e extraordinário). (LOPES JR.; ROSA, 2020, p. 5).

Diante disso, verifica-se que ao antecipar a pena, ainda que provisoriamente, considera-se o réu como culpado, realizando um juízo de culpabilidade. Tal juízo de culpabilidade do réu, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, tolhe o princípio da presunção de inocência, já que a sentença, nesse caso, está sujeita à condição resolutiva, que é a possibilidade de sua reforma que poderá, a depender do conteúdo do apelo, levar o réu a novo júri (quando o inconformismo fundar-se em nulidade posterior à pronúncia ou a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova colhida nos autos – art. 593, III, alíneas “a” e “d”, do Código de Processo Penal) ou, ainda, redimensionamento da pena (quando a sentença do juiz-presidente for contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados ou, ainda, houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança, conforme art. 593, III, alíneas “b” e “c”, do Código de Processo Penal), fato que poderá implicar pena final inferior a 15 anos.

Antes do trânsito em julgado, não há certeza quanto ao juízo de culpa do acusado, logo, é inadmissível a imposição de sua prisão em caráter definitivo, sem a natureza acautelatória. Nessa esteira, alerta Aury Lopes Jr.:

da decisão do júri cabe apelação em que podem ser amplamente discutidas questões formais e de mérito, inclusive com o tribunal avaliando se a decisão dos jurados encontrou ou não abrigo na prova, sendo um erro gigantesco autorizar a execução antecipada após essa primeira decisão. (LOPES JR., 2016, p. 1333).

O que ocorre na execução provisória da pena é uma verdadeira antecipação de seu cumprimento e, consequentemente, antecipação do juízo de culpabilidade. Em síntese, a execução provisória da pena nas decisões proferidas pelo Tribunal do Júri, além de ferir princípios constitucionais acima descritos, não leva em consideração a possibilidade de reforma da sentença pelo tribunal e, por tal razão, deve ser completamente esvaziada do processo penal brasileiro.

Desproporcionalidade na fixação do critério temporal da pena de 15 anos para execução provisória

A primeira parte do art. 492, inciso I, alínea “e”, do Código de Processo Penal, traz um critério objetivo para não imposição da antecipação do cumprimento da pena, qual seja a condenação a uma pena inferior a 15 (quinze) anos, que nesse caso obedecerá, para restrição à liberdade, a presença das normativas para a imposição de prisão preventiva, ou seja, se presentes os requisitos ensejadores da prisão preventiva, será o acusado recolhido à prisão ou nela mantido. Esse cenário se encontra em consonância com as regras relativas às medidas cautelares de restrição da liberdade humana e, por tal razão, não se discute sua legalidade, salvo, evidentemente, quando não estiverem presentes os requisitos para sua decretação ou quando for o caso de imposição de medidas cautelares diversas da prisão preventiva, previstas no art. 319, do Código de Processo Penal.

O problema que se instala refere-se à segunda parte do dispositivo que prevê a possibilidade de execução penal imediata, quando, nas decisões do Tribunal do Júri, a pena fixada for igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão. Isso significa que a nova lei introduziu o instituto da execução antecipada da pena, utilizando-se unicamente do critério temporal da pena, bem como a decisão provir do julgamento de crimes dolosos contra a vida. Contudo, a medida legal é, absolutamente, desproporcional por ferir os princípios da isonomia, da culpabilidade e da presunção de inocência.

Muito embora o Tribunal do Júri tenha competência constitucional para julgar crimes dolosos contra a vida tentados ou consumados, bem como os conexos, não se pode negar que tais decisões não são colegiadas, já que o sigilo das votações é medida que se impõe. Além disso, funda-se na íntima convicção do julgador, desprovida de fundamentação; fato que torna a decisão, embora soberana, passível de reforma por um tribunal.

A fixação do quantitativo da pena como critério de imposição de prisão, com o objetivo de punir o agente, mostra-se ainda mais grave, porque nesse caso não há cautelaridade na medida de privação da liberdade do réu. A crítica se dá, ainda, pelo fato de que a prisão será automática e obrigatória quando nas hipóteses de condenações à pena igual ou superior a 15 (quinze) anos.

O raciocínio utilizado pelo legislador para estipular o quantitativo de 15 (quinze) anos como suficiente para ensejar a prisão automática do réu está na exposição de motivos n° 00014/2019, do projeto da Lei 13.964/19, que afirma:

Os arts. 421, 492 e 584, na sua nova redação, dizem respeito à prisão nos processos criminais da competência do Tribunal do Júri. A justificativa baseia-se na soberania dos veredictos do Tribunal do Júri e a usual gravidade em concreto dos crimes por ele julgados e que justificam um tratamento diferenciado. Na verdade, está se colocando na lei processual penal o decidido em julgamentos do Supremo Tribunal Federal que, por duas vezes, admitiu a execução imediata do veredicto, tendo em conta que a decisão do Tribunal do Júri é soberana, não podendo o Tribunal de Justiça substituí-la. (STF, HC Nº 118.770/SP, REL. MIN. MARCO AURÉLIO, REL. PARA O ACÓRDÃO MIN. LUÍS BARROSO, J. 7/3/2017; HC Nº 140.449/RJ, REL. MIN. MARCO AURÉLIO, RELATOR PARA O ACÓRDÃO MIN. LUÍS BARROSO, J. 6/11/2018).

Referida tese não encontra guarida na sistemática jurídica atual, porquanto, de caráter punitivista e higienista, macula o princípio da isonomia ao não impor o mesmo ônus e a mesma vantagem a situações semelhantes na edição das leis. Isso porque alguém condenado por latrocínio à pena de 25 anos só poderá ser preso ou na prisão mantido se estiverem presentes os requisitos da prisão preventiva. Aliás, não se pode olvidar que a sistemática de dosimetria da pena para todos os crimes é a mesma, ou seja, aquela disposta no art. 68, do CP, e feita, em todos os casos de primeiro grau (inclusive na esfera do júri), pelo juiz de direito.

Realmente, ao atribuir o critério temporal da pena como condição da execução automática, o legislador onera o sujeito condenado a uma pena igual ou maior que 15 (quinze) anos de reclusão, enquanto existem crimes com pena maior que não admitem tal consequência imediata; fato que mitiga os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

A propósito, Rafael Schwez Kurkowski (2020) assevera que inexiste razoabilidade na determinação da execução provisória da pena utilizando como parâmetro a quantidade da pena aplicada, já que esse raciocínio ignora a existência de outros crimes mais graves, independentemente da pena, utilizando como exemplo os crimes de natureza hedionda. Logo, não existe fundamento para definição do critério temporal de 15 (quinze) anos para ensejar a execução penal automática, aplicando-se efeito mais gravoso aos condenados no âmbito do Tribunal do Júri.

Ademais, a inovação prevista no art. 492, inciso I, alínea “e”, do Código de Processo Penal, decorre em uma valoração prematura do estado de culpabilidade do acusado. A valoração da culpa deve ser feita com base nas provas produzidas no curso do processo penal, observando as garantias do devido processo legal e da ampla defesa, não se admitindo que se considere o réu mais ou menos culpado de acordo com a gravidade de sua pena aplicada, porquanto “só fato de o réu sofrer uma condenação mais ou menos grave não o faz mais ou menos culpado, já que a culpabilidade tem a ver com a prova produzida nos autos e com os critérios de valoração da prova, não com o quanto de pena aplicada” (QUEIROZ, 2021, n.p.).

Observa-se que ao determinar a prisão imediata e automática quando a condenação for igual ou superior à 15 (quinze) anos, pressupõe-se que a culpabilidade do réu esteja ligada à gravidade da pena aplicada, demostrando a inconsistência desse argumento, já que a culpa deriva do conjunto probatório suficientemente capaz de comprovar a materialidade e a autoria do crime.

Em face dos fatos narrados, urge a necessidade de afastar, por completo, a incidência da execução provisória da pena, nas decisões no Tribunal do Júri, porque não coaduna com as garantias constitucionais, além de ofender princípios constitucionais ligados à pena e ao processo penal.

Ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência

O princípio da presunção de inocência, ou da não culpabilidade, está expressamente previsto na Constituição Federal, em seu art. 5°, inciso LVII, que prevê: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Esse princípio norteia todo o sistema penal e presume o estado de inocência do réu até o trânsito em julgado da resposta penal, por meio do devido processo legal, com a produção de provas robustas que alicerçam o decreto condenatório. Esse preceito se encontra amparado na Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu art. 11.1, que dispõe:

Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

Igualmente mostrou-se presente na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (art. 6.2), no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14.2) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8º, §2º). E, no Brasil, enquanto cláusula pétrea (art. 60, §4°, da CF), não pode ser corrompido de forma a alterar seu sentido e sua incidência.

Sua observância é de fundamental relevância para impedir a ocorrência de condenações injustas. Para além disso, a presunção de inocência impõe um dever de tratamento, ou seja, o réu deve ser tratado como inocente durante todo processo. Essa regra se desmembra em dois âmbitos: a regra probatória (in dubio pro reo) e a regra de tratamento. A primeira diz respeito ao dever que incumbe à acusação de provar a culpa do réu, sendo que no caso de haver dúvida ou incerteza quanto à sua culpabilidade, deve ser considerado inocente, na forma do art. 386, VII, do Código de Processo Penal. Já a segunda verifica no impedimento do acusado, ou indiciado, ser tratado como culpado antes do fim do processo criminal pelo ente público. No magistério de Aury Lopes Júnior, a regra de tratamento ocorre externamente ao processo, utilizado como meio de impedir abusos e proteger os direitos personalíssimos do réu (LOPES JR., 2016, p. 474).

A presunção de inocência, enquanto princípio constitucionalmente assegurado, determina um marco temporal bem definido para seu esgotamento, no caso concreto, qual seja o advento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória; tendo em vista que o trânsito em julgado só ocorre quando esgotadas as possibilidades de interposição de recurso de certa decisão judicial, em todas as instâncias recursais.

Nessa toada, embora destituídos de efeito suspensivo, os recursos ordinário e extraordinário se configuram como condição para a ocorrência do trânsito em julgado, não bastando o esgotamento das vias recursais em segunda instância para sua ocorrência. A respeito do marco temporal para o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, Renato Brasileiro de Lima discorre que:

E só se pode falar em trânsito em julgado quando a decisão se torna imutável, o que, como sabemos, é obstado pela interposição dos recursos extraordinários, ainda que desprovidos de efeito suspensivo. A presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição, pois só deixa de subsistir quando resultar configurado o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Não há, portanto, margem exegética para que o art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, seja interpretado no sentido de se admitir a antecipação ficta do momento formativo da coisa julgada penal de modo a concluirmos que o acusado é presumido inocente (ou não culpável) tão somente até o esgotamento da instância nos Tribunais de Apelação. (LIMA, 2020, p. 51).

Ainda, acerca da ausência de efeito suspensivo dos recursos ordinário e extraordinário, Aury Lopes Jr. leciona que:

E a ausência de efeito suspensivo desses recursos? Primeiramente não guarda qualquer relação de prejudicialidade com o conceito de trânsito em julgado (marco exigido pela Constituição para o fim da presunção de inocência). Em segundo lugar, é mais um civilismo fruto da equivocada adoção da teoria geral do processo, que desconsidera as categorias jurídicas próprias do processo penal e também a eficácia constitucional de proteção que inexiste no processo civil. (LOPES JR., 2016, p. 901).

Diante disso, o disposto no art. 5°, inciso LVII, da CF, não deixa abertura para interpretações diversas, porque é nítida e inequívoca a exigência do trânsito em julgado para que se possa considerar alguém como culpado.

No contexto da execução provisória da pena, no âmbito do Tribunal do Júri, verifica-se também a colisão entre os princípios da presunção de inocência e da soberania dos veredictos, que atua como instrumento de garantia à competência mínima do júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Trata-se, portanto, de princípio que dá autonomia aos jurados, inserido no rol de direitos e garantias individuais. Tal embate é utilizado para relativizar o princípio da presunção de inocência, argumentando-se que a decisão proferida pelo Tribunal do Júri, revestida pela soberania dos veredictos, deve sobrepor-se ao princípio da presunção de inocência, autorizando seu imediato cumprimento, com a prisão do réu. Nessa linha, o Min. Roberto Barroso discorre que:

[...] a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes. No caso específico da condenação pelo Tribunal do Júri, na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri, e o Tribunal não pode substituir-se aos jurados na apreciação de fatos e provas (CF/88, art. 5º, XXXVIII, c), o princípio da presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos bens jurídicos que ela visa resguardar (CF/88, arts. 5º, caput e LXXVIII e 144). Assim, uma interpretação que interdite a prisão como consequência da condenação pelo Tribunal do Júri representa proteção insatisfatória de direitos fundamentais, como a vida, a dignidade humana e a integridade física e moral das pessoas. (HC 118.770/SP).

Em que pese o posicionamento do Min. Barroso, não parece adequada sua posição, já que “a soberania dos jurados não é um argumento válido para justificar a execução antecipada, pois é um atributo que não serve como legitimador de prisão, mas sim como garantia de independência dos jurados” (LOPES JR., 2016, p. 902). Ou seja, a soberania dos veredictos não tem o condão de afastar ou restringir a presunção de inocência, tendo finalidade distinta daquela.

Além disso, o princípio da soberania dos veredictos é garantia assegurada ao réu. Portanto, não se permite que seja utilizado como meio para prejudicá-lo:

Quinto, o fato de a Constituição garantir a soberania das decisões não significa que o Júri pode tudo ou pode qualquer coisa. Tanto não pode que cabe recurso contra suas decisões. Há decisões do Superior Tribunal de Justiça e do STF restringindo estas hipóteses de recursos a casos de condenação. O que isto quer dizer? Simples: quer dizer que a aludida soberania dos vereditos é uma garantia do réu e não algo que possa ser invocado contra ele. Afinal, o próprio tribunal do Júri existe para dar maior proteção aos acusados, tanto que está previsto no artigo 5º, o qual elenca os direitos e garantias individuais de todo cidadão. Se a soberania do Júri é direito fundamental (sim, Júri está previsto como garantia), como pode essa garantia constitucional se virar (ou ser usada) contra o réu? É típico: no Brasil, até garantias servem para ir contra o réu. Na dúvida, contra o réu. Invertemos a máxima de Palas Atena. (STRECK, 2020, n.p.).

Ao subverter a finalidade e o alcance do princípio da soberania dos veredictos, tem-se uma verdadeira distorção dos valores, já que “tanto a instituição do júri, como a soberania dos jurados, estão inseridos no rol de direitos e garantias individuais, não podendo servir de argumento para o sacrifício da liberdade do próprio réu;” (LOPES JR., 2016, p. 1333). Ainda sobre a inversão de valores ao utilizar a soberania dos veredictos como justificativa da execução provisória da pena:

A soberania dos veredictos surge, assim, não como uma garantia indistinta das partes, mas do réu, precipuamente porque imprescindível à efetividade da plenitude de defesa. Partindo dessa premissa, invocá-la para legitimar a execução provisória da pena, no Júri, ainda em primeiro grau, é um contrassenso, pois um direito fundamental do acusado militaria contra si. (SANTOS, 2020, p. 223).

Cumpre ressaltar que a utilização do princípio da soberania dos veredictos para justificar a execução provisória da pena se revela totalmente antidemocrática, na medida em que considera a decisão proferida pelo conselho de sentença irrecorrível.

Por se tratar de regra constitucional, considerada como cláusula pétrea, não se admite a possibilidade de dar interpretação diversa ao conteúdo do art. 5º, inciso LVII, da Carta da República, deixando claro o texto constitucional que sua alteração só poderá ser feita pelo poder originário constituinte, proibida a abolição ou restrição dos direitos e das garantias individuais. Diante disso, entende-se que o Supremo Tribunal Federal não tem a incumbência de modificar o significado da Constituição, mas tão somente de guardá-lo. Decisões contrárias aos mandados constitucionais são frutos de ativismo judicial que deve ser abolido no Estado Democrático de Direito Material, como o brasileiro, no qual o positivismo é a fonte da ordem jurídica, tendo a jurisprudência para importante, mas na exegese da norma; não na sua criação.

A urgência pela efetivação da justiça penal reflete o atual sistema criminal, em que se prioriza a punição do agente, frente a observância da segurança jurídica e a proteção dos direitos fundamentais e individuais. Como bem assevera Cesare Beccaria (2015, p. 30): “É porque o sistema atual da jurisprudência criminal apresenta aos nossos espíritos a ideia da força e do poder, em lugar da justiça; é porque se lançam, indistintamente, na mesma masmorra, o inocente suspeito e o criminoso convicto [...]”.

No âmbito geral da execução provisória da pena, outro argumento utilizado para execução provisória é a demora no julgamento dos recursos especial e extraordinário, tornando necessária a imposição da antecipação da pena para que seja efetivada a tutela jurisdicional. Ocorre que essa solução é inadequada pois não se autoriza o cerceamento de direitos fundamentais, como a presunção de inocência, face à efetivação da tutela penal. Além disso, deve-se levar em consideração que tais recursos não têm o escopo de levar o reexame do mérito. Contudo, por estarem atrelados a decisões proferidas em primeiro e segundo graus, que negam a vigência das leis federais ou da própria Carta da República, são capazes de, se conhecidos e providos, provocarem nulidades processuais, como, por exemplo, no reconhecimento de suspeições, impedimentos, incompetências e ilegitimidades de partes.

Em resumo, a execução provisória da pena é totalmente inconstitucional, pois contraria o princípio da presunção de inocência, que se encontra assegurado no art. 5°, LVII, da Carta da República, bem como no art. 283, do Código de Processo Penal, que prevê a excepcionalidade da medida de prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Deve-se, portanto, todo juiz presidente do Tribunal do Júri decretar a prisão de réus nele julgados somente quando presentes os requisitos para a imposição da prisão preventiva.

Impactos negativos da execução provisória da pena no sistema prisional brasileiro

As recentes alterações introduzidas pela Lei 13.964/19, que permite a execução provisória da pena a partir das decisões proferidas pelo Tribunal do Júri, quando aplicada pena igual ou superior a 15 anos, já mostra seus impactos inflacionários no sistema penitenciário nacional.

A análise das estatísticas trazidas pelo Departamento Penitenciário Nacional, em relação aos presos por crime de homicídio qualificado, identifica um aumento expressivo a partir da introdução, no processo penal, da execução provisória. No primeiro semestre de 2018, por exemplo, o número de presos por homicídio qualificado, que impõe geralmente pena igual ou superior a 15 anos, era de 39.909. No primeiro semestre do ano seguinte, houve uma diminuição nas prisões dessa natureza, totalizando 38.342. Mas, no primeiro semestre de 2020, esses números saltaram para 54.881 (DEPEN, 2018; 2019; 2020), um aumento expressivo que, possivelmente, deve-se à nova sistemática adotada pelo Código de Processo Penal.

Em outras palavras, a introdução da execução provisória da pena tem por escopo antecipar a culpabilidade, com técnica punitivista e higienista de exclusão social, impactando ainda mais negativamente na (res)socialização do violador da norma penal, posto que inflaciona ainda mais um sistema penitenciário fracassado e deletério, como o brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível concluir que a execução provisória da pena da forma como foi implementada pela Lei 13.964/19 é totalmente inconstitucional por ferir o princípio constitucional da presunção de inocência. Além disso, não se mostra proporcional às respostas penais previstas para outros crimes, mais graves, já que seu critério de aplicação é o tempo da pena e a natureza do crime (doloso contra a vida).

A problemática da constitucionalidade da execução provisória da pena é objeto de discussão no âmbito jurídico há décadas. Atualmente, o STF nega a possibilidade de execução antecipada da pena; fato que deve abranger as decisões do Tribunal do Júri. Logo, a execução antecipada da pena, sem caráter de excepcionalidade das medidas cautelares de prisão, é inconstitucional.

Sob essa lente, a introdução do art. 492, I, “e”, do Código de Processo Penal, que prevê a execução antecipada da pena no âmbito das decisões proferidas pelo Tribunal do Júri, utilizando-se como critério unicamente a aplicação de pena igual ou superior à 15 (quinze) anos de reclusão, não foi recepcionada pela Carta da República, de 1988. Além disso, essa inovação não coaduna com o atual entendimento do STF, que veda a execução provisória da pena.

A nova sistemática do Tribunal do Júri se mostra ainda mais grave, visto que as decisões proferidas pelos jurados são embasadas na íntima convicção do julgador, o que torna as decisões frágeis em relação às decisões fundamentadas tecnicamente. Sob essa perspectiva, a soberania dos veredictos também garante autonomia às decisões do Tribunal do Júri, no entanto, tal princípio deve ser entendido como garantia do réu; não como instrumento para fundamentar um instituto (execução provisória da pena) que é utilizado em seu desfavor.

Por fim, observa-se que a quantidade de presos provisórios no Brasil é significativa, dentro de um sistema carcerário que já se encontra superlotado. As condições dos estabelecimentos penais são precárias, tornando o cumprimento da pena medida ineficiente para o fim de ressocialização do infrator. Portanto, para preservar as bases principiológicas do processo penal, é preciso rever o instituto da execução provisória da pena no âmbito do Tribunal do Júri, a fim de afastar sua incidência no processo penal brasileiro.

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