EDIÇÃO ESPECIAL - VOLUME 16

REAFIRMANDO IDENTIDADES: DEMANDA POR RECONHECIMENTO E “RESPEITO” NO CURSO DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL DOS AGENTES DA GUARDA CIVIL MUNICIPAL DE NITERÓI

Carlos Eduardo Pereira Viana

Bacharel em Ciências Sociais (UFF). Mestre e Doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia na Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF). É pesquisador do Grupo de Pesquisas em Antropologia do Direito e Moralidades – (GEPADIM/NUFEP/UFF) e do Instituto de Estudos em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC).

País: Brasil Estado: Rio de Janeiro Cidade: Rio de Janeiro

E-mail: carlosviana@id.uff.br Orcid: https://orcid.org/ 0000-0002-1777-3515

RESUMO

O presente trabalho analisa o debate sobre a implementação do armamento letal na Guarda Civil Municipal de Niterói (GCM) adotando uma etnografia construída a partir do acompanhamento da aplicação do curso de formação profissional aos agentes. Durante o curso, permeado de militarismo, os alunos são submetidos à prática constante da ordem unida e, por fim, à rotina de patrulha, introduzindo-os à “prática da rua”. O contato com esses hábitos faz surgir nos agentes o anseio pelo uso de armas letais, vendo-as como fator determinante na sua identidade, especialmente para os desvincular de uma imagem inferiorizada, apelidada de “guardinhas”. Nesse sentido, busca-se explorar os pontos de interseção entre o processo de militarização da Guarda Municipal Civil de Niterói e a busca de seus agentes pelo “respeito” da população, tendo por base seu processo de formação e suas demandas pela implementação do armamento como discursos a serem analisados.

Palavras-chave: Guarda Civil Municipal. Segurança pública. Militarização. Armas letais. Formação profissional da GCM.

ABSTRACT

REAFFIRMING IDENTITIES: DEMANDS FOR RECOGNITION AND "RESPECT" IN THE PROFESSIONAL TRAINING COURSE OF THE AGENTS OF THE MUNICIPAL CIVIL GUARD OF NITERÓI

This paper analyzes the debate about the implementation of lethal weapons in the Municipal Civil Guard of Niterói (GCM) adopting an ethnography built from the monitoring of the application of the professional training course to the agents. During the course, permeated by militarism, the agents are submitted to the constant practice of the united order and, finally, to the patrol routine, introducing them to the "street practice". The contact with these habits makes arise in the agents the longing for the use of lethal weapons, seeing them as a determining factor in their identity, especially to unlink them from an inferior image, known as "little guards". In this sense, this study seeks to explore the intersection points between the militarization process of the Municipal Civil Guard of Niterói and the search of its agents for the "respect" of the population, based on their training process and their demands for the implementation of weapons as discourses to be analyzed.

Keywords: Municipal Civil Guard. Public security. Militarization. Lethal weapons. Professional training course of GCM.

Data de recebimento: 12/04/2021 - Data de aprovação: 17/09/2021

DOI: 10.31060/rbsp.2022.v16.n0.1480

Introdução

Quando se estabeleceu contato com os primeiros interlocutores na Guarda Civil Municipal (GCM)1 de Niterói, em 2014, durante a realização do Curso de Formação Profissional de novos agentes, suas falas indicavam que uma das questões fundamentais para a compreensão da instituição se relacionava com a organização interna e a distribuição de poder sob o aspecto da influência política, questão que regia de forma direta o modus operandi dos agentes. Esta distribuição de poder, orientada a partir do poder executivo e/ou legislativo municipal, ditava o que a GCM teria como foco em sua lógica operacional: o controle do tráfego da cidade e a repressão ao comércio ambulante.

A função da GCM na segurança pública municipal e, em outro momento, estadual, não esteve definida de forma contínua em quase ou nenhum momento de sua história, e isto refletiria em muito na construção de sua identidade institucional e na de seus agentes. Como resultado, em contato com essa estrutura sem definição aparente, os agentes iam se adaptando aos diferentes modelos de como pensar e de como agir que fossem surgindo.

Em decorrência dessa estrutura, ou da falta dela, permitiu-se o surgimento de duas principais perspectivas que alocam a atuação da GCM em diferentes frontes na política pública de segurança. A primeira aponta a instituição como atuante a nível estadual, aproximando-a de corporações policiais presentes nesse mesmo nicho, como a Polícia Militar; enquanto a segunda já a direciona para uma atuação com mais ênfase na estrutura política municipal, em conjunto aos poderes executivo e legislativo. Em meio a este campo de indefinição, os agentes são levados a buscar, por outras formas, maneiras de demarcar sua identidade e o que realmente representam no palco da segurança pública.

“Respeito” e busca por identidade

Dando seguimento às promessas da Prefeitura da cidade e com o auxílio de uma conjuntura nacional favorável2, a discussão sobre a possibilidade de armamento da Guarda Civil Municipal de Niterói ganhou maior projeção e protagonismo nas reivindicações dos agentes com a publicação do Estatuto Geral das Guardas Municipais em 2014. Porém, mesmo antes do inédito diploma legal, o debate já era relevante e recorrente dentro da Guarda, uma informação que pôde ser confirmada a partir de diversos relatos e falas presenciadas e registradas no decorrer da pesquisa desenvolvida na instituição. Nesse sentido, destaco a primeira entrevista que fiz quando tive a oportunidade de ter uma extensa conversa com um antigo mestre de artes marciais que, além de profissional de educação física, também era agente da Guarda.

Conversamos por volta de uma hora, sem questionário fechado ou estruturado, sem maiores provocações nas perguntas e respostas, munido apenas do interesse em dialogar com o agente, não com o mestre. O primeiro ponto abordado foi o armamento. Mesmo sem indagações ou direcionamentos sobre um possível uso de armas de fogo, o desejo pelo armamento apareceu de forma espontânea na fala do agente. Aparecia quando ele falava sobre o “respeito da população para com os agentes”. Aparecia quando ele citava situações em que, em sua percepção, levavam “grande risco” à sua vida e a de terceiros. E aparecia muito quando ele falava sobre a sua vida privada, descrevendo até mesmo uma tentativa de roubo da qual foi vítima quando ainda era quadro da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ).

Com longas experiências em mais de um segmento da segurança pública, o leque de relatos e situações vividas por ele e por colegas é vasto. Tendo mais de 10 anos completos na GCM, meu interlocutor teve uma passagem pelo Exército que durou 4 anos e meio e foi quadro da PMERJ por 5 anos, até ser exonerado. Essa experiência o permite traçar paralelos e comparações entre as instituições, apresentando críticas à estrutura de comando da Guarda que dialogavam com uma noção de companheirismo no uso da farda e na busca pelo respeito da população, mas que de alguma forma focava o debate, principalmente sobre a Guarda, para a relação dos agentes com o uso da arma. Em uma de suas falas, o agente estabeleceu uma comparação direta entre a estrutura de comando da Guarda e a da PMERJ, deixando claro que a troca de práticas entre essas instituições não era, segundo ele, algo necessariamente bom para os agentes, tal como relatado:

Na Guarda a gente vê um companheirismo maior. É um quartel só, uma instituição só. Então as pessoas se conhecem mais. Dentro da PMERJ é uma coisa muito grande, né. São vários batalhões. É uma coisa assim mais família na Guarda, você consegue se conhecer melhor. Na PMERJ por muitas vezes você é transferido. Mas na Guarda é muito mais fácil você ter um elo com um companheiro de farda. Mas a nível de chefia também é muito pior. Muito pior! Porque geralmente um comandante quando vem pra comandar a Guarda vem com um aspecto militar, já vem com comando militar e a guarda não é uma instituição militar. É uma instituição paramilitar conhecida como uma instituição civil também. Tanto que o nome é Guarda Civil Municipal. Então é bem diferente da PMERJ, né. O modo de se tratar com o guarda. Eu tomei uma punição quando entrei na Guarda porque não bati continência pra um dos comandantes da Guarda. Na época era o Coronel P., ele veio do BOPE. Não tem nada no Estatuto que você tem que bater continência pra um comandante da Guarda. Não é militar. É uma instituição civil. Tomei uma punição de 15 dias no salário. Entrei na justiça, mas a Prefeitura não acatou. Como os coronéis são ditadores, os guardas trabalham com medo. Ele dá uma punição. Se o município não acatar, ele entra com outras penalidades até o município acatar. E assim a gente é punido no salário. Além disso, ele manda os guardas fazerem operações que os guardas sabem que não eram pra serem feitas e como o guarda tem que defender o pão na sua mesa e não pode ficar perdendo salário por punição, os guardas vão e fazem. Por isso que eu acho que o Guarda tem que comandar o Guarda. O PMERJ tem que comandar o PMERJ. O bombeiro tem que comandar o bombeiro. Cada um no seu quadrado. Porque ele vai saber o que ele sofreu desde lá de baixo. O guarda sofre muito com o comando da PMERJ. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2014).

Como primeiro ponto, chama especial atenção à menção do “medo” no diálogo, como sendo um fator negativo da influência militar na atuação dos guardas. Isso porque a ideia do “medo” é acionada pelos guardas como justificativa para suas demandas pelo armamento, mas, ao mesmo tempo, é rechaçada na afirmação “Aqui não tem guardinha! Aqui tem Guarda Municipal!”, mostrando-os como agentes de bravura, que não têm medo. Essa frase, recorrente nos discursos, transparece o “pensar” sobre o que um agente da Guarda é, na ótica dos próprios agentes, ou estaria na busca de ser. Vê-se, com isso, que a construção de uma identidade mais militar ou mais civil não exclui ou se contradiz com a expectativa dos agentes pelo porte de arma, que é facilmente enquadrada pelos agentes em qualquer das categorias apresentadas, a depender da identidade que buscam externalizar.

A questão da demanda pelo armamento aparecia não só nas falas deste agente em específico, mas também nas dos demais que tive contato. Aliado a isso, suas falas transpareciam a necessidade de uma renovação no olhar de como a população enxergava os guardas. Na visão deles, essa “nova” construção tem como elemento central o imagético popular, levando-os a buscar alcançar uma conceituação que é reiteradamente expressa através da categoria de “respeito”. Nesse sentido, o armamento dos agentes e o incremento na ostensividade de sua presença no dia a dia da cidade mostram-se como os mais fortes argumentos quando da construção de uma imagem “respeitável”. E, justamente nessa seara, é que os guardas se percebiam disputando um “lugar no sol” (VERÍSSIMO, 2009) com outras instituições, como os fiscais de posturas, mas principalmente com os policiais militares.

Nesse aspecto, observa-se o surgimento de uma importante questão, trazendo à tona uma antiga disputa entre as forças, que parece poder se intensificar com o projeto de renovação da Guarda. Pautado principalmente na questão do armamento, objetivando dar protagonismo à Guarda na estrutura e na lógica de segurança pública do município, o projeto acaba por abrir, na prática, lugar para importantes conflitos de espaço e atribuições com a Polícia Militar, como se nota no relato do agente:

Existe uma rixa não declarada entre a Guarda e a PMERJ, porque eles notam que a Guarda tá tomando um pouco o espaço da segurança pública, então eles entendem como se estivessem dividindo o espaço. Agora fizeram uma guarita dividida entre a PMERJ e a Guarda na praia de Icaraí. E isso até mesmo pros comandantes da PMERJ e o comandante da Guarda aceitar, foi uma briga danada. Mas o Prefeito graças a Deus leu o Estatuto, porque até então ele não sabia da nova regra e parece que está se prontificando a investir na segurança. [...] Toda polícia tem o seu quadrado. Cada um vai mandar ou proteger aquilo que tá determinado por lei, ou seja, a PMERJ vai trabalhar mais ostensivamente, mais direto no combate ao tráfico. A Guarda vai ficar direto voltada para o combate do bairro, mais voltado pro município. A PMERJ mais voltada pro tráfico. Não que a Guarda não vá combater o tráfico, porque agora é atribuição do guarda também. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2014).

Nessa interpretação, pode-se notar que os investimentos, as propostas e promessas feitas não se voltavam apenas a melhorar a segurança pública da cidade, mas revelam, em verdade, uma disputa pelo protagonismo dessa melhoria, com quais recursos, com quais atribuições e em que espaços. Para a Guarda, no contexto de meu trabalho de campo, essa tensão era expressa no conflito sobre quem deveria estar armado na patrulha da cidade e o porquê dessa escolha.

Um segundo ponto a ser destacado, ainda da primeira conversa, se apresenta como um dos principais problemas deste artigo: a interpretação dos guardas sobre a noção de “respeito”. Para meu antigo mestre, essa noção, presente recorrentemente em muitas outras conversas e situações, se relacionava diretamente com as críticas que traçava ao comando militar. Para ele, os agentes não seriam “respeitados” em decorrência das equivocadas instruções que receberiam por parte do comando e, consequentemente, pela postura que acabavam reproduzindo na rua quando entravam em conflito com os camelôs, por exemplo. A partir dessa argumentação é possível se evidenciar, novamente, a disputa com outras instituições, abaixo relatada:

O que acontece é que a população tá acostumada a ver o guarda combatendo com o camelô. Isso não é atributo do guarda. Isso é atributo do fiscal da Prefeitura. Isso é questão até mesmo do Prefeito não conhecer a lei orgânica que tramita dentro da Prefeitura, e saber de segurança pública, ele mistura um pouco as coisas. O guarda vai pra fiscalização, onde não deveria ir. O guarda na verdade está para proteger a vida, que é o bem do cidadão. Proteger o povo niteroiense. Aí quando chega um novo comandante da PMERJ que entra a discórdia. Quando o guarda tem que ir pra rua proteger um bem ou a vida, ele vai pra pirataria, vai pra fiscalização. Coisa que é atributo fiscal da Prefeitura. O guarda tem que coibir o crime e trabalhar em prol da vida. Armamento é uma questão total de necessidade. Você botar um guarda, hoje em dia com o nível de crime que a gente tá vivendo, com um cassetete e uma algema na rua, você vira um palhaço. É melhor botar o guarda pra trabalhar no circo do que na rua. Porque a violência é muito grande, toda hora acontece delitos, e tudo que a população mais precisa hoje, além de saúde, é da segurança pública. É uma questão de necessidade. Até pra segurança do próprio guarda. Tanto em serviço quanto fora. Acontece muito em serviço. Quando o guarda vai fazer um tipo de ocorrência como um furto, ele até apanha. Em segundo lugar entra o respeito, se um cara se depara com um guarda armado, ele vai analisar o fato e ter um respeito maior. Aqui na GCM de Niterói eu vejo que é uma total necessidade, porque eu vejo os guardas num total desespero de ir pra rua sem uma arma. Até uma situação que eu presenciei assim que entrei, a gente foi fazer uma apreensão e um dos guardas entrou em colapso. Não aguentou a situação. E depois de uma semana ele tinha pedido a exoneração dele. A gente entrou em conflito, num conflito corpo a corpo. E talvez nessa situação se a gente estivesse armado, nem teria acontecido o conflito corpo a corpo. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2014).

A fala do agente permite insistir, por um lado, na existência de evidente disputa em torno das atribuições da Guarda e das outras instituições, como a PMERJ e os fiscais. Essa disputa e essa indefinição por competências parecem levar, em um raciocínio direto, à postulação da “necessidade” da arma como forma de desempenhar as funções atribuídas de modo não só eficiente, mas também “seguro”. De outro lado, atenta para o fato de que a arma não é vista apenas como uma “necessidade” e como um fator de “segurança”, mas sim como decisivo instrumento ou meio de transparecer “respeito”, evitando que os agentes possam ficar na rua e “virar um palhaço”.

Cabe destacar que, neste ponto em especial, o agente não fez nenhuma referência à falta de capacitação por ele mencionada em outros momentos da conversa. Sua fala, quando tratando especificamente do “respeito” da população e até mesmo o “respeito” dos criminosos com relação aos guardas, foi majoritariamente focada na importância do armamento.

O Curso de Formação Profissional e o contato com a demanda por armas de fogo

Passados alguns anos desta entrevista, a linha de raciocínio desenvolvida e os argumentos utilizados pelo agente me chamaram a atenção, à época, em razão da experiência de ter trabalhado no acompanhamento da formação dos agentes da mesma Guarda que meu interlocutor fez parte. Em minha etnografia no Curso de Formação Profissional (CFP)3, faz-se o relato sobre o desinteresse dos agentes e da própria instituição com relação à formação dos agentes vinculada à academia. Uma das questões mais evidentes e problemáticas, discutida reiteradas vezes durante as aulas acompanhadas no período da pesquisa, pautava-se na oposição entre “teoria” e “prática” apresentada pelos guardas. Essa resistência era sempre trazida como um dos primeiros argumentos construídos com o objetivo de deslegitimar o conhecimento dos professores e pesquisadores que lecionavam disciplinas no curso.

A intransigência era tanta que, em determinado momento do curso, a discussão se apresentou como uma barreira declarada e difícil de ser quebrada. Situação similar foi relatada por Robson Rodrigues da Silva (2011), em que os policiais militares da Academia de Polícia Militar D. João VI classificaram a sala de aula do curso como uma “ilha da fantasia”, na demonstração de total desprezo pelo saber teórico que não representava o saber da “prática”, este sim obtido por meio do contato com os seus “iguais” no dia a dia. Na presente pesquisa, os “iguais” seriam os agentes da própria Guarda ou de outras instituições de segurança pública e o que valeria, de fato, em suas formações e no momento da ação seria a teoria com base na prática aprendida na rua, que eles identificavam simplesmente como sendo “a prática”.

Considerando questões já escritas para o caso da Polícia Militar, Kant de Lima (2009a;2009b) definiu essa problemática como um conflito entre teorias. Segundo essa linha de raciocínio, os guardas tinham a expectativa de que o aprendizado tivesse por alvo uma teoria que representasse a prática deles, reproduzindo o autoritarismo, os filtros informais, a repressão, a posição de comando e outras práticas já institucionalmente naturalizadas. O problema é que a UFF, como representante da academia nesse contexto de aplicação do CFP, levou para a sala de aula uma teoria que, na visão deles, não seria legítima, eis que não representavam as práticas e os símbolos presentes no modelo atual de segurança pública, disseminado e aplicado enquanto um projeto que entende a guerra e o conflito como ferramentas de combate à criminalidade.

Nesse sentido, é curioso contrastar o acúmulo de pesquisas e trabalhos sobre as Guardas Municipais pelo país que retratam a percepção dos guardas sobre uma suposta falta de diálogo da academia com eles. Ao mesmo tempo em que o conhecimento “teórico” trazido pela academia era alvo de desprezo e de indiferença pelos agentes, era também alvo de reclamação e de cobrança, responsabilizando-se a mesma academia pela ausência de interesse em diálogo com as Guardas.

Sob esta ótica, de forma concomitante ao trabalho de campo pude ter contato com pesquisas de colegas que desenvolviam estudos sobre Guardas Municipais em outros municípios do Estado do Rio de Janeiro, inclusive incluindo pesquisas de agentes no âmbito da academia enquanto estudantes de Graduação e Pós-Graduação.

Em conjunto a esta série de pesquisas que se desenvolviam ao mesmo tempo que a minha, também foi fundamental o diálogo com importantes trabalhos como os de Kátia Sento Sé Mello (2011) e de Marcos Veríssimo (2009). O trabalho de Katia Mello (2011) descreve e analisa a sua experiência com a Guarda Municipal de Niterói no início dos anos 2000, em uma situação similar com a que eu encontraria no futuro: em um curso de formação desenvolvido pelo Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP/UFF) para os agentes da instituição. Da mesma forma o trabalho de Marcos Veríssimo (2009), em uma etnografia na qual ele mesmo se insere como participante, a partir de sua experiência como agente da Guarda Municipal do Rio de Janeiro, desenvolvendo um trabalho interessante sobre a administração de conflitos no dia a dia das ruas cariocas tendo os agentes da Guarda como mediadores e atores importantes nesse processo.

Outro relevante trabalho para esta pesquisa foi à coletânea organizada pelos professores Michel Misse e Marcos Luiz Bretas et al. (2010), que fizeram um levantamento dos diferentes projetos de funcionamento com base nos marcos legais, definidores de suas atribuições, e tendo por referência a percepção dos atores envolvidos quanto às ações efetivas, aos processos de treinamento e recrutamento, à relação com a Polícia Militar e ao uso ou não de arma de fogo. Com a mesma importância, cita-se a coletânea organizada por Ana Paula Mendes de Miranda, Joelma de Souza Azevedo e Talitha Mirian do Amaral Rocha (2014), que coloca em debate a questão da segurança e das políticas públicas ao mesmo tempo em que oferece uma proposta de um modo de se fazer pesquisa e de se construir uma antropologia sobre as políticas públicas.

A menção a esses trabalhos é relevante ao se notar que, na visão dos guardas, quando o curso “teórico” faz uso de comparações, por exemplo, entre pesquisas empíricas realizadas em outras instituições e outros países, por professores/pesquisadores que não faziam parte de nenhuma instituição de segurança pública, não se está trazendo algo “digno” de sua atenção ou de seus ouvidos, pois aquelas informações de nada valeriam para eles. Apesar disto, é fácil notar, como acima demonstrado, a relevância da existência de uma vasta literatura baseada em pesquisas especificamente com Guardas Municipais pelo país, incluindo o trabalho de Katia Mello com a própria GCM de Niterói, que permitem diversas vezes fundamentar argumentos apresentados pelos professores durante as aulas.

O problema acima apresentado, assim como o formulado por Kant de Lima (2009b), se demonstrou como um importante ponto para a análise dos fatos observados, à época, durante o Curso de Formação Profissional (CFP). Agora retorna, na presente pesquisa, de forma analítica no processo de compreensão da principal demanda dos agentes da Guarda, qual seja, o armamento. Busca-se, dessa maneira, compreender a razão pela qual os agentes direcionam suas justificativas sobre a “falta de respeito” por parte da população, e também dos criminosos, para a questão da falta de uma arma em punho.

Em dado momento do curso, os guardas que incialmente se disseram prontos para servir, agir e, segundo os próprios, mudar o perfil da Guarda, se encontravam dispersos nas aulas e sem demonstrar qualquer interesse pelos temas propostos. Essa dicotomia ficou evidente quando os agentes problematizaram a existência de certa distinção entre as aulas gerenciadas pela Guarda, e as aulas gerenciadas pela UFF, situação que foi notada pelo corpo acadêmico com o passar dos dias e com a disparidade entre o empenho dos guardas em cada um desses dois tipos de aula. Enquanto na aula da Guarda via-se em sala a curiosidade e a atenção dos agentes, nas aulas da UFF poucos demonstravam interesse. Nessas últimas, notava-se que alguns alunos apenas intervinham para discutir a questão da teoria versus prática, defendendo sempre que um professor não teria a legitimidade para apresentar realidades relatadas através de pesquisas, realidades que não envolvessem algum tipo de prática, como se vê:

Aquela professora é muito boa, a aula tava rendendo bem, deu para ver que a pesquisa dela foi muito séria e que ela realmente se empenhou. Mas quando perguntamos pra ela quanto tempo de prática ela tinha a resposta foi que não tinha nenhum tipo de prática e que tudo que estava expondo era fruto da pesquisa que ela fez. Não deu! Como que botam uma professora pra ensinar a gente sobre uma coisa prática sendo que ela nunca trabalhou com isso e nem foi da polícia? (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2015).

Era notório que os guardas esperavam e ansiavam por aulas mais voltadas para a rotina de conflitos, e não por aulas de mediação, característica da proposta que os professores do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC/UFF) colocavam à mesa. Nesse sentido, a teoria ensinada pelos professores posicionava os agentes como mediadores, e não como personagens no conflito. No entanto, o que os guardas esperavam aprender não eram formas de evitá-lo ou mediá-lo, mas sim maneiras de atuar e dar fim aos conflitos pelo intermédio do uso da força e da autoridade, o que nesse espaço de formação poderia ser aprendido nas aulas de defesa pessoal, de patrulhamento e de imobilização.

Essa aula aqui a gente não vai usar pra nada! A gente tinha que tá tendo aula de defesa pessoal, isso que vamos usar na rua!”. Esta talvez tenha sido uma das frases recordistas de repetição pelos guardas. Demonstrava claramente que o que eles queriam era estar na rua, “mediando” conflitos da maneira que eles acreditavam ser a mais correta e eficaz, ou seja, aquela proporcionada pelos ensinamentos passados na sua formação e no treinamento, frutos do contato físico com o conflito. Permite-se, dessa observação, estabelecer uma conexão entre a postura apresentada pelos agentes durante os processos de formação, a forma como eles interpretavam suas identidades institucionais e a necessidade da arma para o exercício de suas funções com plenitude. Exatamente por isso que, quando articulavam de forma direta o armamento com a questão do “respeito”, estabeleciam uma ligação entre os três tópicos, como se estes fossem argumentos complementares. Nesse ponto, retomando a fala de meu antigo mestre, parece que ele queria destacar que existia um problema na formação dos agentes, como acima retratado, mas um problema ínfimo quando comparado com a questão de não possuírem uma arma em suas cinturas. Para meus interlocutores, as armas falam por si só.

Como já retratado, a discussão sobre a possibilidade de armamento da Guarda Civil Municipal de Niterói ganhou protagonismo com a publicação do Estatuto Geral das Guardas Municipais em 2014. Com a proximidade das eleições, dois anos após, a promessa eleitoral de armamento da instituição surgiu, um aspecto que merece destaque. Apesar de serem vários os possíveis objetos de uma promessa eleitoral para os agentes da Guarda, o lobby mais forte foi realizado em torno da questão do armamento. Isso porque, em que pese às denúncias públicas feitas pelos próprios agentes quanto aos problemas de estrutura da instituição, sinalizando a precariedade na formação e nas condições de trabalho, sejam elas de estrutura, sejam de direitos trabalhistas, a mobilização maior se restringiu ao porte da arma.

A defesa do lobby armamentista foi alvo de conversa com um dos meus principais interlocutores dentro da Guarda. Um agente que, desde o início do curso, se mostrou disposto a colaborar com a pesquisa e que, por muitas vezes, direcionou o olhar pesquisador para questões que ele achava interessantes de serem analisadas e estudadas, questões que influenciavam até mesmo a forma como outros agentes agiam e que, a partir de então, passaram a orientar nossas conversas.

Seguindo a dica de Evans-Pritchard (2005)4 de se deixar interessar por aquilo que interessa aos nossos interlocutores, e não aquilo que nós achamos relevante previamente, buscou-se olhar e, de certa forma, mudar a percepção sobre a importância que os agentes davam ao armamento. Assim, permitindo aos agentes falar livremente sobre aquilo que era importante para eles; dois assuntos apareceram com maior relevância: um referido ao “descaso” apresentado por uma parcela dos novos agentes com o curso que estava sendo aplicado, principalmente pelos chamados “concurseiros” e, o outro referia-se à necessidade de ter o armamento para enfrentar “perigos” que eles imaginavam que poderiam encontrar na rua.

Como se pôde notar, na hierarquia de assuntos relevantes para os agentes, as questões voltadas para a identidade da instituição e seu armamento tinham grande destaque, deixando de priorizar, por exemplo, aspectos relacionados à estrutura da instituição que, em expectativas pessoais, ocuparia um lugar importante. A razão dessa expectativa era um retrato do que se via nas ruas, de encontrar viaturas que, por vezes, estavam enguiçadas por falta de manutenção ou de combustível, além de outros problemas que ocorriam dentro do centro de operações e na distribuição das tarefas, que foram relatados pelos próprios agentes.

Até mesmo as cabines compartilhadas com a Polícia Militar, que deveriam servir como abrigos estratégicos, foram encontrando dificuldades que denunciavam o perigo da falta de manutenção e a necessidade de melhorias nos equipamentos da Guarda. No entanto, o discurso dos guardas partia de uma perspectiva que minimizava as questões de estrutura, tratando-as como pontos que poderiam ser resolvidos facilmente. Essa afirmação pode ser observada na fala de um dos agentes, enquanto enumerava as medidas que estariam sendo trabalhadas pelo comando da Guarda junto à Prefeitura da cidade para a implementação mais rápida de melhorias:

Tá vindo com um quartel novo no Barreto. Pelo que tá previsto vai ter um centro de treinamento, um centro de triagem, um centro de tiro. A Prefeitura tá pretendendo adotar o armamento. Até agora a gente não ouviu o Prefeito falar nada. A gente viu a maquete com o stand de tiro. Até porque é aquilo que o Estatuto diz, as guardas municipais dentro da Prefeitura tem até dois anos pra se enquadrar no Estatuto. Se dentro desse tempo ela não se enquadrar, ela vai perder até mesmo o investimento federal e correndo o risco de tomar multa, né. Por não cumprir a lei. Por não cumprir o nosso Estatuto. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2015).

Essa fala deixa evidenciar que, mesmo reconhecendo a precariedade nas estruturas, a questão do armamento se faz preponderantemente presente, dando ênfase inclusive a parte do projeto que prevê a instalação de equipamentos e infraestrutura para o tiro, como o centro de tiro e o stand de tiro. Visitando o áudio da primeira entrevista e o contrastando com registros

de conversas em cadernos de campo construídos ao longo de quatro anos de pesquisa, nota-se

quase que o mesmo comentário em todos os diálogos registrados. A questão que fica é: porque, diante de tantas defasagens, os agentes não construíram uma pauta sobre melhorias na estrutura da Guarda per se, sem a necessária relação e priorização da questão do armamento como um elemento fundamental?

Não foi possível encontrar uma resposta objetiva para este questionamento, mas, a partir dos relatos dos agentes sobre o processo de formação por eles cursado e, posteriormente, com o aprendizado advindo da “prática” das ruas, fica mais fácil compreender que a estrutura da Guarda era uma questão importante, mas menos importante do que a implementação do armamento. As falas destacavam que um dos principais saldos positivos dessa medida seria não apenas uma automática melhoria na estrutura, mas o ganho do “respeito” da população. Isso porque, na lógica apresentada pelos agentes, uma Guarda “respeitada” seria uma Guarda que possuísse força política para buscar melhorias nos equipamentos, no plano de carreira dos agentes e nos treinamentos. O direito à posse da arma se apresentava como um primeiro passo: a arma traria o “respeito” da população e o “respeito” daria força política à Guarda para reivindicar melhorias.

Quanto ao aspecto dos treinamentos, é válido destacar que a referência feita por meu interlocutor seguiu a defesa do armamento, adotando a linha de raciocínio de uma capacitação voltada para aprender sobre o uso das armas e para lidar com as “situações extremas” que a rua apresenta, na forma abaixo relatada:

A minha capacitação eu tive que correr por fora, porque a Guarda não tem esse investimento em capacitação até a presente data. Eu sempre fiz cursos, dentro das artes marciais, fora das artes marciais, na área militar, cursos de segurança, cursos de segurança progressiva. Pagos do meu bolso. Até curso da SWAT. Cursos caros que tive que tirar do meu bolso. Tive que correr por fora pra me tornar um guarda bom. Continuar atualizado na segurança pública, atualizado em lei porque também tenho que correr por fora porque a guarda não dá instrução. [...] Eu acho que no nível que tá hoje a Guarda, qualquer curso que chegue vai ser bem recebido. Qualquer cursinho de adestramento de cão, um curso de taser, um curso de defesa pessoal. Qualquer curso que chegue até o guarda vai ser de bom grado, porque a Prefeitura não fornece. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2014).

A ênfase dada ao “treinamento” e à necessidade de capacitação está voltada para uma melhor atuação dos guardas na área da segurança pública, focando prioritariamente no uso de armas dos mais diferentes tipos; ambas as vertentes, a militar e a jurídica, foram destacadas por Kant de Lima et al. (2012) como sendo dominantes na formação policial no Brasil. E essa formação, focada na prática, no treinamento, no adestramento, é a que, na visão do interlocutor, tornaria um agente em um “bom guarda”.

É também possível notar, pela fala desse agente, que a demanda por esse tipo de capacitação é tratada com descaso pela gestão municipal, deixando muito a desejar com relação a essa formação “prática”. Nesse ponto, o agente entrevistado se encontra em uma complexa dualidade: ao mesmo tempo em que culpa a ausência de estrutura da Guarda pelo não fornecimento de treinamento interno, também se vê impossibilitado de buscar cursos à parte para suprir a defasagem, uma vez que os salários praticados inviabilizam esta prática, como ele mesmo retrata:

É uma prática dos guardas já fazer bicos. O guarda sai do plantão às vezes cansado e vai pegar uma segurança de mais de 12 horas, geralmente uma segurança de rua, de farmácia, posto de gasolina. Isso aí o guarda já faz de longa data. Os outros guardas até procuram fazer curso, mas como o salário é muito limitado, então fica difícil. Se o guarda não tiver um outro por fora... É que eu já trabalho com luta há muitos anos, então eu tenho o meu “por fora” e tenho o da Guarda. Então o que eu consigo fazer é com o meu recurso que tenho de fora. Se eu dependesse da instituição eu não teria feito nenhum curso. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2014).

Em se tratando do curso de formação, a leitura desse agente sobre a razão de sua realização era clara: o curso só estava acontecendo por conta do planejamento para a implementação do armamento letal. E o raciocínio prossegue, pois, uma vez a Guarda estando armada, o poder executivo municipal se veria obrigado e forçado a realizar investimentos de forma continuada na capacitação dos agentes, o que elevaria o padrão da instituição.

Dessa maneira, a combinação entre armamento letal, “respeito” da população e protagonismo político e institucional da Guarda era apresentada em uma dimensão única, capaz de viabilizar o crescimento da instituição e permitir a conquista de um papel relevante dentro da lógica de planejamento da segurança pública municipal. Direcionar todos os esforços políticos e sociais para a implementação do armamento seria, então, uma maneira de elevar a Guarda e seus agentes, tudo incluso em um único pacote para promover o desenvolvimento da instituição.

Reanalisando a citação acima transcrita sob outra ótica, pôde-se perceber que a demanda pelo armamento também deixa evidenciar uma outra vertente da falta de estrutura, que tem como consequência a adoção de práticas não necessariamente legais, como a realização de “bicos”5, muito comum entre os agentes. Esses dois aspectos, quais sejam, a falta de estrutura e a adesão à informalidade, parecem caminhar de forma conjunta, deixando transparecer que a esfera institucional é, de forma similar, permeada por interesses pessoais e políticos dos atores da Guarda e do campo da segurança pública e social da cidade.

Com base nessa última afirmação, é possível observar surgirem duas interessantes narrativas com distintas interpretações. Uma primeira justifica a realização dos “bicos” como uma consequência dos baixos salários recebidos pelos agentes. Esse fator os leva a complementarem suas rendas prestando atividades outras que possam ajudar a pagar suas contas, ou até mesmo cursos de capacitação externos, o que, como consequência, impede que eles exerçam suas funções com dedicação exclusiva, levando à precarização do serviço prestado.

Já uma segunda interpretação revela que a tão desejada demanda pelo armamento dos agentes possa ser uma verdadeira forma de potencializar seus ganhos com os “bicos”, que, como disse o interlocutor, acontecem de “longa data”. Se sem a posse de armas letais os agentes já desempenham papéis outros, especialmente aqueles voltados ao desempenho de atividades ligadas à segurança privada, com a implementação do armamento suas possibilidades de trabalho externo seriam potencializadas, expandindo-se para concorrer com um mercado já estabelecido e protagonizado por praças da Polícia Militar.

A esperança e o “não”

O caminho que se busca traçar neste artigo descreve como a demanda e o debate acerca do armamento da Guarda foi evoluindo ao longo do período da pesquisa e, especialmente, como esse aspecto reflete na construção da identidade sobre o que seria “ser um guarda”. Como mencionado no início do texto, o debate parece se iniciar com uma elevação nas expectativas dos guardas a partir do momento em que foi apresentado o projeto de investimentos na Guarda e na sua estrutura em 2013. Depois, com a publicação do Estatuto das Guardas em 2014 e a posterior mobilização para a discussão do tema em um movimento organizado pelos próprios guardas. Por fim, ocorreram os debates legislativos e as consultas públicas que se passaram tanto em Niterói quanto no Rio de Janeiro já em 20176. Em todas essas instâncias as demandas pelo “respeito” da população e pelo reconhecimento político e social da importância do trabalho da Guarda estiveram presentes.

Em 2014, como mencionado, as expectativas dos guardas em torno da obtenção de reconhecimento7 eram altas, e pairavam principalmente sobre o fato de a instituição trilhar os caminhos certos para alcançar o objetivo de se armar e, com isso, alcançar uma mudança de nível. Ao prometer a construção de uma nova sede, a chamada de novos agentes para o quadro da Guarda e a aplicação de um Curso de Formação Profissional, a gestão municipal dava sinais de empenho e de reconhecimento do papel da instituição. Para muitos dos guardas com os quais se conversou, o próximo e quase natural passo seria, pouco a pouco, armar os agentes e os colocar nas ruas de forma ativa e coordenada. Na visão deles, a população poderia servir como “o melhor termômetro da eficácia da medida”. Aqui, a noção de “respeito” aparece e se fortalece como consequência da adoção das medidas anteriores, representando um produto do reconhecimento dado pela Prefeitura ao protagonismo da Guarda.

Essa aura de otimismo foi notada nas falas que seguiram durante todo o processo de “evolução”, principalmente na formação dos novos agentes, que serviriam como um combustível extra. A ideia era que os novos agentes fossem entendidos pela população como um importante esforço da Guarda, tornando-a mais técnica e mais capacitada por contar com uma formação chancelada por uma universidade, a UFF, carregando, assim, uma credibilidade mais sólida. Nessa linha de raciocínio, a imagem da “nova Guarda” conseguiria se vincular de forma mais enraizada à noção de pertencimento ao segmento da segurança pública, e não propriamente ao ordenamento urbano, afastando-a da visão criticada tanto por setores sociais, quanto pelos próprios guardas, de que “a principal função da Guarda é mexer com camelô”.

Esse último entendimento, que era extraído pela população do que se observava da atuação dos guardas na rua, ou seja, um atuar em constante conflito com os chamados camelôs, causava grande incômodo nos agentes, principalmente os recém egressos. Esses, pelo fato de possuírem ensino superior completo em sua maioria, eram considerados “mais técnicos” e estariam dispostos a serem mais ativos no patrulhamento de proximidade. Essa ambição era mais um passo em prol do objetivo armamentista, pois possuía a intenção de modificar aquele incômodo imaginário da população sobre os guardas e, a partir disto, conquistar respeito, influência e poder político.

O curioso é que passados quatro anos da formação destes novos agentes, muitos deles, que se mantiveram como interlocutores deste trabalho desde o início, manifestaram a perda da vontade de “transformar a Guarda em uma ‘nova Guarda’”. Alguns culpavam a questão de o armamento ter sido mais complexa do que supostamente deveria ser; outros culpavam aqueles colegas que viam na instituição apenas uma escada para outros concursos públicos; e outros atribuíam essa responsabilidade à Prefeitura, em razão das promessas que foram feitas, mas que não foram concretizadas por problemas financeiros e/ou políticos, como se vê:

O [Prefeito] é o único cara nesses anos todos que olhou pra Guarda, então a maioria tá com ele. Mas muitos guardas se sentiram traídos com essa questão da consulta [pública]. Muitos ficam nessa de que ele não cumpriu o que falou em campanha. Ele já tinha falado que ia armar e depois mandou essa da consulta popular. Então isso deixou os guardas muito tristes, desapontados. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2018).

O ressentimento8 com o Prefeito aparece em muitas das falas, quase que todas as vezes acompanhado de uma ponderação sobre o quanto de ganhos a sua gestão levou para a Guarda. Novos agentes, novos uniformes, curso de formação, nova sede e promessas de transformar a Guarda na protagonista que eles acham que ela deveria ser. Essas promessas podem ser entendidas, seguindo a proposta de Carla Teixeira (2000), como uma ação política que supõe a contração de uma dívida que, não sendo cumprida, corre o risco de ser vivida como “traição”. E ocorreu exatamente como argumenta Cardoso de Oliveira (2002, p. 115), “o sentimento de ressentimento está associado às demandas que fazemos aos outros em relação a nós mesmos”.

A questão é que tais promessas, por mais que tenham sido cumpridas em algum grau, nem sempre corresponderam no ritmo e no tempo que as expectativas criadas pelos guardas desejavam. Essa decepção, expressa na fala do agente com a palavra “traição”, se deu especificamente sobre o ponto do armamento, questão que era tida como elemento-chave no entendimento dos agentes. Como já exposto, o direito à posse da arma se apresentava como um primeiro passo: a arma traria o “respeito” da população e o “respeito” daria força política à Guarda para reivindicar melhorias.

Já era claro, a esta altura, que o “avanço” que os agentes buscavam para a Guarda nem sempre se correlacionava com um plano de carreira mais bem estruturado, com o fortalecimento institucional com sua corregedoria e controladoria, novos equipamentos ou treinamentos. Para os meus interlocutores, a noção de “avanço” estava intrinsecamente relacionada à implementação imediata do armamento letal, questão muito mais relevante do que qualquer melhoria na estrutura da Guarda como um todo.

Esse é um grande ponto de destaque. A clara percepção da existência de uma hierarquia de importância entre os temas foi observada, de forma expressa e evidente, em diversas conversas, entrevistas, aulas e em operações acompanhadas ao longo da pesquisa, como a Operação Verão e a Operação Papai Noel. Poucas foram as vezes que, em um contexto de questionamentos sobre o que deveria mudar ou ser melhorado na Guarda, foram apresentadas questões burocráticas, técnicas ou estruturais como prioritárias na lista de desejos dos agentes. A questão sobre a estrutura apareceu de forma destacada apenas em um momento, quando um guarda, ao falar sobre as promessas que não foram cumpridas, mencionou o stand de tiros, de forma semelhante ao que me foi relatado ano atrás pelo meu mestre, ao afirmar que “a Guarda perdeu muito o gosto pelo serviço, ele [o Prefeito] tava injetando novas coisas, dando esperança pra instituição que ia fazer e acontecer, mas isso [consulta pública] foi um balde de água fria. Tava tudo encaminhado: coletes, armas, stand de tiros. Tudo!”.

De uma forma geral, a questão da arma encabeçava a lista de prioridade, que também era composta por menções pontuais sobre a falta material de equipamentos, mas também, e mais relevante para este trabalho, sobre a “falta de respeito” da população em relação à Guarda enquanto instituição, e com os agentes enquanto operadores e mediadores dos conflitos na segurança pública9. Permite-se, então, a defesa de uma ligação direta entre esses fatores. A “falta de respeito” se conecta com a falta do armamento porque, para eles, a população não “respeita” o trabalho de guardas que não estão armados.

Isso porque, na visão dos guardas, eles nunca são procurados para agir em situações que eles afirmam que poderiam agir, segundo suas atribuições. Em suas leituras, a não procura pela população se vincula à ausência de armas (letais) em seus cintos, impedindo a atuação em situações que, por exemplo, requereriam o uso do armamento como garantia de segurança e efetividade na intervenção. As observações rotineiras revelam uma procura majoritária da população para a resolução de questões que, na percepção deles, os diminuem enquanto agentes, comprometendo sua identidade profissional e questionando suas posições enquanto “agentes da lei”, ou “agentes de segurança pública”.

A união de todos os fatores acima expostos é o que, na visão dos agentes, se apresenta como a “falta de respeito” que a população demonstra com relação aos agentes. A “falta de respeito” decorre do fato de se sentirem tratados como “guardinhas”, de serem procurados “apenas” para dar informações sobre linhas de ônibus, localização de endereços ou para resolver questões de trânsito. A grande mudança desse imagético da população constituía, sem dúvidas, uma das grandes expectativas dos guardas que, com as promessas feitas pelo Prefeito, seria fácil e brevemente alcançada.

Nesta linha de raciocínio, a incansável busca pelo “respeito” da população se transforma em uma demanda cada vez mais significativa para os agentes por envolver um anseio tido como fundamental: o processo de construção e afirmação de uma identidade profissional e institucional. Esse processo envolve não só a definição das competências legalmente a eles atribuídas e as funções a serem por eles desempenhadas, mas também o tratamento que a população deveria lhes oferecer ou deferir. Em outras palavras, a perspectiva da compreensão do como “de fato atuam” e do que “de fato são”. Em resumo, aquilo que está em jogo nas queixas colocadas pelos agentes parece se constituir, em certa medida, de uma “demanda por reconhecimento” em termos do seu status ou posição social (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2004).

Nesse sentido, é de se compreender que as promessas feitas pelo Prefeito elevaram em muito as expectativas dos agentes no atingimento de um novo status social. Diante da não concretização do compromisso, tornou-se fácil observar o desânimo que atingiu os agentes, mas essa frustração também deixa revelar alguns interessantes aspectos sobre a importância que foi depositada no processo de discussão do armamento. Segundo o comentário trazido por um interlocutor, os novos agentes, de certa maneira, teriam entendido que seus trabalhos só seriam completos e respeitados após a implementação do porte de armas letais. Ante o não atendimento da requisição, os agentes se viram tomados por uma sensação de derrota, que deu espaço para o surgimento de sentimentos de desapego com a “vontade de trabalhar”, e afastando a vontade de serem o mais produtivo possível em suas jornadas:

Uns trabalham bem, outros não. Fui trabalhar um tempo atrás no centro de Niterói e tá tudo jogado por lá. Eu via um guarda numa ponta e camelô do lado. Na minha época eu não fazia isso não, não podia ter na minha calçada! Teve que ir a corregedoria pra rua junto com o Inspetor Geral pra fazer ronda, até os guardas antigos reclamam de alguns novatos da turma de 2014. Eles são muito frouxos. Tem uns que são bons de serviço pra cacete, cai dentro e trabalha mesmo. Mas tem outros que só querem moleza. Se acham antigões, querem fazer o que os antigos fazem. Tem muito guarda novo tomando porrada da corregedoria por conta desse corpo mole, essa postura incorreta. Tem guarda dessa turma nova que conseguiu ter mais Ficha de Resposta Disciplinar (FRD) do que eu em mais de 10 anos como Guarda, apenas em três anos de instituição no probatório. Esses guardas estão em processo de exoneração. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2019).

A análise dessa fala permite inferir a existência de dois grupos distintos: um que é composto pelos agentes que, outrora esperançosos, viram um Prefeito que “deu mole” e que “traiu” expectativas e promessas; e um segundo que, em retaliação ao “não”, ou seja, diante da negativa quanto à implementação do armamento, fizeram “corpo mole”, reagindo de acordo com as suas frustrações e desapontamentos com um processo que iria, em suas visões, valorizar e reconhecer sua identidade e seu papel na segurança pública.

“Crescer” reafirmando uma identidade

Como ficou retratado, as expectativas dos agentes em torno da questão do armamento sofreram constantes vaivéns. Após as promessas feitas pelo Prefeito, no caso da Guarda de Niterói, a decepção política maior veio da realização de uma consulta pública, determinante nesse processo. Em outubro de 2017, a população niteroiense se posicionou majoritariamente contra à implementação do armamento letal à GCM10, decisão que acabou impondo um dramático fim aos anseios dos agentes.

Neste ponto, esquecidas as expectativas do ano de 2014, com a edição do Estatuto da Guarda, e desfeitas as promessas eleitorais de 2016, o quadro que se via no final do ano 2017 era de total frustração, permeada por inúmeros ressentimentos. Mas, das promessas feitas, aquelas que envolviam a renovação da instituição e as melhorias na estrutura da Guarda de certa forma ocorreram, com a inauguração de uma nova e equipada sede para os agentes. No entanto, nem mesmo esse aspecto foi suficiente para a melhoria dos ânimos. A perspectiva dos agentes estava intrinsecamente pautada no argumento de que o armamento seria o início de uma guinada na questão do “respeito” da instituição e no ganho de poder político.

Reconhecendo, pelos menos à época, a improvável reversibilidade do quadro e digerindo o fato de que a Guarda não seria uma instituição armada, foi possível se observar uma mudança do discurso institucional no campo político, agora voltada para o retorno da valorização da estrutura e das condições de trabalho. Assim explica um guarda em uma conversa tida no ano de 2019:

Tá rolando problema? Tá! Pra caralho, muita coisa! Essa estrutura nova é muito bonita por fora, por dentro você tem que ver: várias infiltrações, rachaduras, uma piscina que forma quando chove porque o forro é ruim. Todas as salas têm ar-condicionado, 98% não funcionam. Foi entregue com muito problema. A estrutura por fora parece ser excelente, terreno bom, mas por dentro é muito ruim. O que tem menos problema é a sede da SEOP [Secretaria de Ordem Pública], porque eles que ficam com o dinheiro e esquecem da Guarda. A Prefeitura não repassa, a SEOP não repassa. Várias viaturas baixadas. Enquanto houver policial militar comandando a gente vai ter esse problema aqui, não querem que a gente cresça. Então tem problemas estruturais por conta da falta de investimentos. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2019).

A fala do agente expõe claramente o choque entre a expectativa apresentada em 2014 e a realidade material e simbólica do que foi construído e posto em operação até 2019. Com o sonho do armamento reprovado, os guardas viram, na realidade, que o cuidado e a atenção com a instituição ficaram de lado. Sem armamento e sem estrutura, viram sua situação ainda mais agravada com a valorização da parceria entre a Prefeitura e o Governo do Estado. Isso porque, quando da realização de uma operação conjunta entre os níveis municipal e estadual, sentiram que o papel que seria exercido supostamente pela Guarda em posse de armas letais, foi transferido e rearranjado para a estrutura da Polícia Militar.

Com o olhar voltado novamente para a valorização da Guarda em si, os agentes deixaram transparecer um estado de ânimo que traz à tona o conflito geral de interesses existente tanto com a Polícia Militar, quanto com a Secretaria de Ordem Pública. Em particular, destaca-se a histórica prática de nomeações de ex-militares e militares da reserva como secretários de ordem pública da cidade de Niterói e no comando da Guarda. Por essa razão, a crítica feita pelo agente atribui a essa disputa não só a possível falta de investimento, mas, ainda mais, a impossibilidade da Guarda se tornar protagonista – “crescer” – e ser reconhecida, pois sempre se encontra sob os cuidados de representantes externos, quais sejam, da Polícia Militar.

Refletindo-se sobre a posição desses militares como comandantes e dos agentes da guarda como comandados, encontra-se verossimilhança no que esclarece Taylor (2000, p. 241-254) sobre a “preocupação moderna com a identidade e o reconhecimento”. Nesse sentido, para que alguns tenham honra, é essencial que nem todos a tenham, dando origem, assim, a uma “política da diferença”, repleta de “discriminações e de recusas que produzem cidadanias de segunda classe”, ou, no caso, agentes de segunda classe, sem respeito, sem força política e, principalmente neste contexto, sem armas.

As questões dessa política da diferença, bem como toda a preocupação com a identidade e o reconhecimento dos guardas se adensam quando se analisa a forma como foi conduzido o processo de discussão sobre o armamento na gestão municipal, resumindo-se a uma consulta pública. A forma simplória de coletar a opinião da população foi um fator que desagradou em muito os agentes. Segundo suas falas, a consulta contribuiu para que as coisas não saíssem da forma que vinha sendo planejada por eles desde 2014, como se pode notar:

Uma consulta popular você não é obrigado a sair de casa pra votar, já num plebiscito sim. Então começamos a lutar pra que fosse um plebiscito, mas não aconteceu. [..] O pensamento dos guardas, mais de 90 %, porque tem guarda que não quer que arme, achou isso tudo uma grande palhaçada. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2018).

Novamente se vê surgir a alusão à imagem do “palhaço” ou, no caso, uma “palhaçada”. Por fim, esses pontos parecem refletir um sentimento recorrente: os agentes se sentem burlados e “não respeitados” em relação às suas demandas e expectativas. E, cada vez que uma expectativa se frutava, muitas vezes os agentes eram vistos tentando se amoldar às movimentações políticas do Prefeito e sua equipe, tentando se fazer presentes e obter êxito em novas demandas.

Considerações finais

Quando em 2014, os agentes estavam sendo alimentados pela ideia de que o Prefeito iria, a qualquer momento, autorizar oficialmente o início das operações com o armamento letal pela Guarda, a expectativa era impulsionada ato após ato da Prefeitura, que era vista realizando a compra de armas e encaminhado pedidos de licenciamento para a Polícia Federal, instituição responsável pelos registros do armamento e pela autorização dos agentes para uso.

Apesar de todos os sinais dados, o problema encontrado, como foi explicado pelos agentes, residia no fato de que o Prefeito teve “medo” de assumir a responsabilidade pelo armamento. Em outras palavras, teve medo de se tornar alvo quando chamado a assumir eventuais intercorrências decorrentes de atuações indevidas por parte dos guardas. É o que se vê:

Ele [o Prefeito] deu mole. Ele chegou a fazer 30 guardas fazerem curso de tiros. Eles deram mais tiros que soldado da PMERJ no recrutamento. Um soldado da PMERJ dá menos de 100 tiros, os guardas deram mais de 300. Inicialmente esses 30 guardas iriam pra rua iniciar o serviço armado, e mais tarde mais guardas fariam a qualificação. Isso foi antes da votação. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2018).

O [nome do Prefeito] deu mole”; “O [nome do Prefeito] teve medo”. Estas foram frases ouvidas repetidas vezes após a negativa da população. Na visão dos guardas, a implementação do armamento não deveria ter seguido nenhum tipo de consulta à população, afinal, “estava tudo lá preto no branco no Estatuto”. De tudo o que foi exposto, a leitura do processo que melhor sintetiza essa percepção foi apresentada por um agente enquanto se conversava sobre o histórico de enfrentamentos com os camelôs pela cidade. Em especial, sobre a repercussão negativa que esses conflitos geravam na imagem que a população tinha dos guardas:

Esse negócio do armamento foi uma foda mal dada, porque ia fazer a Guarda focar mais na segurança, aí falaram “não, guarda é maluco! Vai querer intimidar camelô!”, isso já acontece tem muito tempo. Sabe quem mais tá fazendo apreensão na rua? É a SEOP, vire e mexe eles vêm com um carro com caçamba de apreensão. Tão fazendo mais apreensão do que os guardas faziam antigamente. O armamento não era pra intimidar ambulante, era pra focar mais na segurança, no patrulhamento preventivo, porque não é nem ostensivo, é preventivo. Muitas vezes uma pessoa chega no guarda e fala que foi assaltada, que o cara tava com uma arma, e o que a gente vai fazer com cassetete e taser? E aí? Como que trabalha desse jeito? A gente poderia atuar mais se tivesse condição de trabalho, a arma seria um ponto nesse sentido. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2018).

Essa fala tem a capacidade de resumir alguns aspectos tratados neste artigo. Primeiro, por transparecer as disputas entre a Guarda e outras instituições em termos de atuação e de identidade. Nesse caso em específico, a tensão é representada pela SEOP, mas isso pode ser constatado em relação à PMERJ. Segundo, por evidenciar a percepção de uma indefinição nas funções e nas atribuições que deveriam ser exercidas pela Guarda, fator que parece repercutir negativamente na afirmação da identidade institucional e que reflete em práticas reproduzidas desde a formação dos agentes. A ausência de definição abre espaço para o anseio pela atuação pura e simples no âmbito da “segurança pública”, permitindo que seja entendida apenas nos seus aspectos repressivos, em contraste com uma realidade que os joga para outras tarefas não tão desejadas.

Terceiro e, por último, por ratificar, reafirmar e reiterar que a plena atuação desejada pelos guardas encontra como principal obstáculo a ausência do direito ao porte das armas. A frustração se intensifica quando se faz a possível correlação de que a negativa estaria sustentada no “mau uso” que os agentes fariam da arma. Em contraponto, eles defendem que a atuação com o armamento letal seria mais eficiente11 e, dessa forma, capaz de gerar a tão desejada ruptura com o histórico de confrontos com camelôs. Essa desvinculação da imagem influenciaria positivamente na percepção da população sobre a importância da Guarda e da atuação de seus agentes, de maneira a possibilitar a recuperação, ou o estabelecimento, do respeito e da admiração perdidos, ou, ainda, a serem conquistados.

Em linhas gerais, tomando a análise de Goffman sobre o estigma (1980), pode-se destacar que a busca dos agentes pela ruptura com sua imagem tem por base a forma como eles próprios lidam com as pré-noções negativas da população, pré-noções decorrentes do histórico material e simbólico de suas interações com os guardas e suas formas de agir. Expõe-se, assim, que a identidade social virtual dos agentes apresenta características que os aproximam de suas identidades reais, o que faz com que, segundo a percepção deles, a reputação da Guarda seja desacreditada e que a “falta de respeito” de parte da população seja tão arduamente sentida.

A “falta de respeito’, desse modo, apresenta-se como símbolo da ausência de definição de uma identidade da Guarda, seja no plano da estrutura formal propriamente dita, seja a partir de suas práticas militarizadas conduzidas por outras instituições, seja no plano mais subjetivo da afirmação e da busca por um reconhecimento social, político e profissional. De certa forma, o guarda, quando afirma que “não é guardinha”, que “cai pra frente” e que “necessita” de uma arma letal para “agir como se deve agir”, está buscando a reafirmação de sua identidade. O que o guarda quer, afinal, é ultrapassar a barreira do descrédito, é, ao fim e ao cabo, “ser visto como um guarda deveria ser visto”.

Nota-se, no entanto, que esse discurso apresentado pelos agentes distorce as teorias ensinadas em sala de aula durante o Curso de Formação Profissional, em especial aquelas ministradas sob a responsabilidade da Universidade. Isso porque a metodologia utilizada na construção dessas aulas foi elaborada justamente a partir das demandas apresentadas pela própria GCM e pela Prefeitura da cidade de Niterói, o que, de certa forma, demonstraria uma tentativa na produção de um conhecimento prático e teórico seguindo o ideal de uma Guarda mais comunitária, ou, ao menos, mais próxima da população. Por essa razão, as aulas buscaram esclarecer as atribuições que a lei designa para a instituição e para os seus agentes, mas, de maneira cabulosa, os guardas confundem os limites da função de fiscalização, estendendo sua atuação para a possibilidade de policiamento ostensivo equiparável ao dos agentes da Polícia Militar.

Neste sentido, a “grande questão” da Guarda Civil Municipal de Niterói até poderia se relacionar com as suas confusas e opacas atribuições, porém, em verdade, o que se visualiza ao longo do desenvolvimento deste trabalho é que a incerteza quanto às funções dos agentes serve como uma “carta na manga” para os que pensam a GCM como uma instituição policial, e não como um órgão de apoio ao ordenamento público das cidades. Dessa monta, a falta de protocolos e a falta de clareza sobre o “onde”, “como” e “por que” agir possibilita que seus representantes pautem discussões como a descrita neste artigo sobre o uso de armas letais, ao tempo que menosprezam a produção teórica que lhes fora apresentada.

A consequência da leitura das atribuições dos guardas nas entrelinhas permite observar que uma instituição civil, ao se militarizar tanto informalmente na rotina de trabalho de seus agentes, quanto formalmente durante a aplicação de um curso de formação, acaba se mostrando em uma posição desprestigiada e confusa para todos os envolvidos, sejam eles munícipes, sejam os próprios agentes, sejam, ainda, as demais instituições que compõem o ordenamento e a segurança pública.

Sinaliza-se, por todo o exposto, que o desprezo demonstrado pelos agentes com a teoria ensinada em sala de aula reforça o imaginário do conflito, do embate e, não por acaso, do militarismo. A teoria, apesar de não ser produto de pesquisadores necessariamente atuantes como agentes da segurança pública, é fruto de observação prática e busca aclarar para os guardas o seu papel no ordenamento, o que os aproxima, como já dito, de uma atuação mais comunitária, ou, ao menos, mais próxima da população. No entanto, munidos de seus discursos militarizados e armamentistas, os agentes parecem insistir em contrariar as convenções mais atuais sobre o que é, de fato, uma instituição de segurança pública eficaz e produtiva, ou, no caso da Guarda Civil Municipal de Niterói, do que seria uma instituição do ordenamento público da cidade.

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VERÍSSIMO, M. De sol a sol, em luta por um lugar ao sol: a Guarda Municipal do Rio de Janeiro e os ritos, conflitos e estratégias do espaço público carioca. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.


  1. A partir deste ponto, será utilizada GCM como abreviação para Guarda Civil Municipal de Niterói.↩︎

  2. Cabe o destaque para mudanças significativas ocorridas nas conjunturas política e social, elementos que estabeleceram a emersão da discussão pública sobre políticas armamentistas, tendo a disputa eleitoral pela presidência da República do Brasil no ano de 2018 como um dos principais palcos para o debate. Desde as jornadas ocorridas em junho de 2013, a conjuntura política brasileira sofreu grandes mudanças, que tiveram seu marco com a crescente mobilização de um grupo autoidentificado como “suprapartidário”, que tomou as ruas após as eleições de 2014. No entanto, apesar da defesa desse discurso, com o tempo se observou que, após cada manifestação, os movimentos direcionavam-se à polarização do público em diversos temas, como por exemplo, a pauta que se ocuparia do tema “muito mais do que os 20 centavos”, em referência ao aumento na tarifa do transporte público, que foram o estopim para a ocupação das ruas (PIRES, 2013).↩︎

  3. O curso teve como base sua edição anterior, organizada em parceria do mesmo tipo entre o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da Universidade Federal Fluminense (NUFEP/UFF) e a Prefeitura do Município de Niterói, realizado nos anos de 2002 e 2003. Esse mesmo curso também acabou sendo utilizado como base para que o Ministério da Justiça e a Secretaria Nacional de Segurança Pública desenvolvessem uma matriz curricular nacional voltada para a formação dos agentes das Guardas Municipais pelo país, valorizando a relevância do projeto e o seu pioneirismo ao tratar do assunto. As aulas eram ministradas em parte por pesquisadores do INCT-InEAC/UFF e professores convidados de outras universidades, e por agentes da Guarda Civil Municipal, policiais militares e funcionários ligados à Prefeitura de Niterói.↩︎

  4. Em Algumas reminiscências e reflexões sobre o trabalho de campo, Evans-Pritchard sugere que “o antropólogo deve seguir aquilo que encontra na sociedade que escolhe estudar”, e exemplifica: “Eu não tinha interesse por bruxaria quando fui para o país zande, mas os Azande tinham e assim tive que me deixar guiar por eles”. (2005, p. 244-245).↩︎

  5. Os bicos são atividades realizadas por aqueles que buscam um renda extra de forma pontual, sem objetivar a construção de uma carreira. Os trabalhos feitos por meio dos “bicos” são geralmente de curta duração e com pagamento imediato, antes ou após a prestação do serviço, o que faz com que muitas pessoas busquem complementação de renda nesse tipo de atividade.↩︎

  6. Como mencionado anteriormente, a conjuntura política contribuiu para que o tema fosse colocado sob as luzes do debate público, conseguindo ser discutido em vários âmbitos da sociedade, seja na academia, em eventos da sociedade civil organizada ou em ambientes institucionais da política municipal.↩︎

  7. “A exigência de reconhecimento assume nesses casos caráter de urgência dados os supostos vínculos entre reconhecimento e identidade, em que ‘identidade’ designa algo como uma compreensão de quem somos, de nossas características definitórias fundamentais como seres humanos” (TAYLOR, 2000, p. 241) – neste caso, “definitórias fundamentais” como agentes de segurança pública.↩︎

  8. Compreendendo “ressentimento” a partir da definição oferecida por Strawson: "Consideremos, então, ocasiões de ressentimento: situações em que uma pessoa é ofendida ou ferida pela ação de outra e em que – na ausência de considerações especiais – a pessoa ofendida poderia naturalmente ou normalmente sentir ressentimento". (STRAWSON, 1962, p. 8, tradução nossa).↩︎

  9. Importante destacar que a “falta de respeito” por parte da população difere da noção de “desrespeito” que tive contato quando em conversas com camelôs, onde o insulto moral seria vivido no choque entre os agentes da Guarda e os comerciantes.↩︎

  10. Na consulta, a população votou contra o armamento da Guarda Civil Municipal em 45 pontos de votação espalhados pelo município. A adesão foi considerada, por vários canais de comunicação, muito baixa, pois apenas 18.990 dos 371.736 eleitores possíveis do município se movimentaram para dar seu voto, ou seja, 5,1% do total de eleitores. A proposta foi rejeitada por 13.478 dos niteroienses que foram às urnas. Somente 5.480 participantes da consulta pública votaram a favor da proposta, enquanto 32 pessoas votaram branco ou nulo. Representando assim, respectivamente, margens de 70,1% contra 28,9% da população (APURAÇÃO, 2017).↩︎

  11. Compreendendo a noção de eficiência enquanto a ampliação da capacidade de pronto emprego em um conjunto maior de ambientes passíveis da atuação dos agentes por conta da ampliação de seus instrumentos de coerção e uso da força.↩︎