SERIAM OS FUTUROS POLICIAIS MILITARES SUJEITOS LIMINARES? UMA CRÍTICA À ABORDAGEM PROCESSUALISTA NOS ESTUDOS SOBRE FORMAÇÃO E IDENTIDADE POLICIAL

Eduardo de Oliveira Rodrigues

Doutor em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense. Tem mestrado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduação em geografia também pela UFRJ. É professor efetivo de geografia da Educação Básica, Técnica e Tecnológica do Colégio Pedro II. É pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Conflitos, Cidadania e Segurança Pública (Laesp) da UFF, vinculado ao Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC) da UFF.

País: Brasil Estado: Rio de Janeiro Cidade: Rio de Janeiro

Email: eorodrigues@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9246-6462

Resumo

Entre os estudos interessados no processo de formação dos profissionais de segurança pública no Brasil, é comum o diagnóstico sobre a influência que as escolas de formação e a prática policial possuem na construção da identidade policial. Neste universo, é inegável a importância assumida pela análise processual turneriana, dada a tendência em compreender os futuros policiais enquanto sujeitos liminares, cuja identidade profissional seria moldada, fundamentalmente, pelas escolas de formação e pelo saber prático das ruas. Apoiado em dados etnográficos construídos junto a candidatos à carreira de policial militar no Rio de Janeiro, sugiro que muito mais do que criar novas identidades, os espaços de formação e prática contribuem no sentido de reorganizar e complexificar representações e modelos simbólicos que, de certa forma, já estão presentes nos possíveis futuros policiais. A entrada na polícia marcaria muito mais uma continuidade do que uma ruptura com a vida civil prévia dos candidatos.

Palavras-chave: Formação policial; Identidade policial; Liminaridade; Representações sociais; Polícia Militar.

WOULD FUTURE COPS BE LIMINOIDS? A CRITICAL ESSAY OF PROCESSUAL SYMBOLIC ANALYSIS IN STUDIES ON POLICE EDUCATION AND POLICE IDENTITY IN BRAZIL

Abstract

A common approach among studies of police education in Brazil relates the influence of police academy and police street culture on police identity. In view of such perspective, the importance of Victor Turner’s processual analysis is undeniable, given the tendency to understand future policemen as liminoids, whose professional identity would be shaped, fundamentally, by police training academies and by police practical knowledge gained in the streets. Supported by ethnographic research with candidates who wants to join the military police in Rio de Janeiro, this paper suggests that far more than creating new identities, the spaces of training and police practice may reorganize and reinforce social representations and symbolic models that already shape, to some degree, the possible future cops. Joining the military police would be much more continuity than rupture with the candidates's previous civilian life.

Keywords: Police education. Police identity. Liminoid. Social representations. Military Police.

Data de Recebimento: 18/04/2021 – Data de Aprovação: 17/09/2021

DOI: 10.31060/rbsp.2023.v17.n1.1484

PALAVRAS INICIAIS: A FORMAÇÃO POLICIAL ENQUANTO PROBLEMA

Entre os estudos interessados no processo de formação dos profissionais de segurança pública no Brasil, é lugar comum o diagnóstico sobre a enorme influência que as escolas de formação e a prática do cotidiano policial possuem na construção da identidade profissional dos agentes. Em relação às polícias militares, tal debate ganha maior densidade através de dois problemas correlatos identificados por inúmeros trabalhos. Em primeiro lugar, pela entrada na corporação marcar uma ruptura com a vida pretérita dos policiais quanto ao seu “passado civil” (BRITO; PEREIRA, 1996; MUNIZ, 1999; ALBUQUERQUE; MACHADO 2001; 2003; SÁ, 2002; STORANI, 2006; SILVA, 2011; entre outros), como também, de maneira igualmente importante, pelo caminho de profissionalização dos agentes ser pavimentado através da transmissão de saberes práticos adquiridos fora da sala de aula, isto é, pelo chamado “currículo oculto” das polícias (CARUSO; PATRÍCIO; PINTO, 2010).

Essas formas de saber, cujo conteúdo não passa necessariamente pela regulamentação dos regimentos internos e currículos formativos das corporações, atuam de maneira direta não somente sobre a construção da própria identidade profissional dos policiais, como também naquilo que Reuss-Ianni e Ianni (1983) e Muniz (1999) chamam de “cultura policial das ruas”. Em certo sentido, tais diagnósticos procuraram ressaltar, como identificam Pires e Albernaz (2019), uma espécie de tensionamento entre saberes organizados de maneira binária em pares estruturais, como “teoria X prática”, “caserna X rua”, “praças X oficiais” ou ainda o mundo “civil X militar”, no que toca a formação policial e a identidade profissional dos PMs brasileiros. Tais binarismos aparecem enquanto chave de leitura importante na explicação de uma série de problemas das nossas polícias militares, em especial na dificuldade de se empregar mudanças mais profundas nas práticas cotidianas dos agentes. Esses diagnósticos ganharam importância ainda maior, sobretudo, após a redemocratização de 1985, dada as continuidades presentes nos aparatos repressivos do Estado em relação ao período da ditadura civil-militar brasileira (SILVA, 1990; PINHEIRO, 1991; BATISTA, 1997; ZAVERUCHA, 1998).

O caso da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) é emblemático neste sentido. Embora, desde o período da redemocratização, o cenário da segurança pública fluminense tenha oscilado num movimento errático de alternância entre políticas, ora mais próximas do respeito relativo aos direitos humanos, ora marcadas pela filosofia militarista e discricionária (SOARES; SENTO-SÉ, 2000, p. 4), as altas taxas de letalidade e mortalidade policial no estado persistem tanto na sua Região Metropolitana (RMRJ), em geral, porém mais especificamente nos bairros cariocas cujas favelas são predominantemente territorializadas pelo tráfico varejista de drogas ilícitas (RODRIGUES, 2021). Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) analisados por Misse et al. (2013) apontam que, no período entre 2001 e 2011, mais de dez mil pessoas foram assassinadas no Rio de Janeiro pela polícia. Nos anos entre 2015 e 2019, o estado fluminense acompanhou a tendência geral de agravamento da letalidade policial no Brasil, com o número de mortes saltando de 645 (ano 2015) para 1.810 (ano 2019) – um aumento de 180,6% no período (FBSP, 2016; 2020)1. Na leitura de Ramos (2016), embora as últimas três décadas tenham experimentado algumas políticas públicas capazes de mudar conjunturalmente o panorama da segurança no estado, elas não foram suficientes, todavia, para mitigar os problemas ligados à brutalidade e à corrupção das práticas policiais em longo prazo. Para a autora, a própria polícia e as políticas de segurança pública seriam os principais elementos para explicar a variação da intensidade criminal no Rio de Janeiro ao longo do tempo.

Diante do referido quadro, a formação dos profissionais de segurança pública é considerada componente fundamental de uma possível “reforma das polícias” em prol da garantia de um Estado de Direito. Como argumenta Poncioni (2005; 2012), o cenário de “crise” das últimas décadas criou certo consenso entre estudiosos da área, formuladores de políticas públicas, algumas autoridades de governo e parte dos próprios policiais, sobre a necessidade de maior profissionalização dos agentes, em especial pela necessidade de melhoramento do seu desempenho na condução da ordem e da segurança no Brasil contemporâneo. Por outro lado, como alerta Kant de Lima (2003, p. 73), os potenciais riscos dessa abordagem dizem respeito ao raciocínio por vezes errôneo de relacionar o baixo desempenho dos policiais com o despreparo oriundo da má formação recebida nas escolas. Sendo este o principal problema, bastaria então, segundo esta lógica, oferecer uma formação de melhor qualidade aos policiais para que o cenário de “crise” possa ser, em grande medida, superado.

No caso do Rio de Janeiro, trabalhos como os de Filho (2003), Poncioni (2005), Riccio e Basílio (2006), Cortes e Mazzurana (2015) e Costa (2015) apontam, a título de exemplo, algumas rupturas e continuidades que os currículos dos oficiais e das praças da PMERJ sofreram ao longo das últimas décadas. A partir de 2011, na esteira do processo de “pacificação” de favelas, uma série de reformas procurou adequar melhor o currículo principalmente dos soldados às demandas sociais e às competências contidas na Matriz Curricular Nacional (MCN). O objetivo básico das mudanças tratava não somente da ampliação das disciplinas de direitos humanos, como também do redirecionamento das disciplinas do Direito para uma perspectiva mais garantista e menos formalista, em termos legais (CORTES; MAZZURANA, 2015, p. 8).

A potencialidade dessas iniciativas esbarra, todavia, num outro problema apontado novamente por Kant de Lima (2003, p. 76-77), que diz respeito ao próprio ideário da segurança pública no Brasil se atrelar a diferentes tradições culturais presentes em nossa sociedade. Para o autor, outro desafio da formação policial é também o de formar policiais que já estão “formados” anteriormente à entrada na polícia, ou seja, de desconstruir paradigmas de pensamento e ação que não enxergam todos os cidadãos enquanto sujeitos de direitos. Tal elemento me parece de suma importância, uma vez que essas tradições culturais agem também na conformação das diferentes representações sociais que todos nós temos sobre as forças de segurança. Falo em especial sobre as representações dos possíveis futuros policiais, ou seja, das pessoas comuns que se interessam pela carreira policial antes de qualquer contato prévio com a corporação.

Nesse sentido, o presente artigo objetiva refletir acerca da construção do “ser policial” através de um olhar distinto sobre o problema. Não pretendo partir do estudo das polícias quanto ao seu papel considerado lapidar na conformação da identidade profissional dos agentes, mas sim sobre os indivíduos que se propõem a ingressar na carreira antes de serem formalmente policiais. Entre os anos de 2019-2020, por conta da minha pesquisa de doutoramento, acompanhei por 14 meses parte da vida de alguns sujeitos interessados em ingressar na PMERJ. Não estou a falar de um grupo de recrutas, isto é, futuros praças que já se encontram matriculados nas escolas de formação da polícia, mas sim de jovens que ainda não tiveram qualquer contato formal com a corporação. Trata-se de simples candidatos – homens e mulheres comuns com idade entre 18 e 30 anos – que por algum motivo desejam se tornar policiais. A partir da minha inserção num “cursinho” preparatório para o concurso de “soldado PM”, pude interagir com os possíveis futuros policiais no cotidiano da sala de aula, nas conversas em grupos de Whatsapp e, principalmente, em outros espaços de lazer, trabalho e estudo dos candidatos.

Por conta da minha atuação profissional enquanto professor de geografia da rede básica de ensino e doutorando em antropologia, meu papel no campo foi o de uma espécie de monitor “informal” das disciplinas de ciências humanas constituintes do concurso2. Em cada turma de preparatório “soldado PM” que acompanhei, eram oferecidas aulas com duração de três horas, realizadas de duas a três vezes por semana, durante um período de, no mínimo, três meses consecutivos. Geralmente, os candidatos que se transformaram nos meus principais interlocutores permaneceram no curso por um período de tempo mais longo. Do ponto de vista metodológico, a primeira parte do campo foi assim toda conduzida presencialmente junto aos candidatos no cotidiano do “cursinho”. No intervalo das aulas, tirei dúvidas de dezenas de candidatos, resolvi centenas de questões de prova, montei listas de exercícios, indiquei matérias de jornal, filmes e séries de TV sobre possíveis temas de redação, consegui organizar, algumas vezes, grupos de estudos, entre outras atividades. No caso dos candidatos com os quais desenvolvi relações de maior confiança, o campo se desenvolveu, num segundo momento, em outros espaços importantes das suas vidas, como bares, padarias, restaurantes, shopping centers, festas, jogos de futebol, praias, bordéis, seus locais de trabalho e, algumas vezes, suas residências. Logo, este artigo toma como base apenas pequena parte dos dados que foram construídos no âmbito do meu trabalho de campo, que se desenvolveu dentro de uma perspectiva multissituada voltada para “seguir as histórias” (MARCUS, 1995, p. 106) que me foram contadas por esses possíveis futuros policiais.

Pelos limites do texto, minha proposta é então empreender um exercício compreensivo do processo de construção do “ser policial” a partir de algumas representações sociais (MOSCOVICI, 1988; 2003; ABRIC, 1993) nativas acerca da carreira na Polícia Militar. O artigo objetiva demonstrar como alguns valores, imagens e representações que os candidatos trazem, eventualmente, anterior ao seu estado liminar enquanto neófitos da PMERJ, mostram muito mais continuidades do que rupturas entre seu “passado civil” e o horizonte semântico policial militar. Enquanto ponto de partida deste exercício, proponho uma breve revisão crítica sobre algumas leituras importantes no campo da formação policial que procuram compreender os futuros PMs enquanto andarilhos ainda a transitar pelas aleias da liminaridade.

SER POLICIAL: VOCAÇÃO OU PRAGMATISMO ENTRE SUJEITOS LIMINARES?

Acredito que qualquer boa investigação acadêmica comece a partir de uma dúvida relevante. Ao menos para mim, a escolha pelo ofício de PM sempre me intrigou, ainda mais em uma cidade como o Rio de Janeiro. Pela profissão ser geralmente considerada um emprego de alto risco e baixo prestígio social, era difícil compreender ao certo o que levava uma pessoa a querer entrar para a PMERJ. Sob diferentes perspectivas, trabalhos interessados no processo de construção social da identidade policial (MUNIZ, 1999; PONCIONI, 2004; SOARES; MUSUMECI, 2005; ALBERNAZ, 2009; SILVA, 2011; entre outros) tangenciaram essa questão. Geralmente, duas explicações aparecem enquanto justificativa para a escolha profissional segundo a leitura dos próprios policiais. Em primeiro lugar, o sentido vocacional da profissão como inscrito em Weber (2000), ligado a uma dimensão secular da habilidade/aptidão em realizar determinada tarefa, ou mesmo uma dimensão religiosa, que tornaria a escolha em ser policial num designo sagrado, quase como o atendimento a um “chamado” para alguns (ALBERNAZ, 2009; 2010). De maneira igualmente importante, a escolha pela polícia poderia levar em conta também razões de ordem pragmática, alimentadas, em grande medida, por motivos ligados à situação de desemprego generalizado no país, o salário razoável pago por uma qualificação de Ensino Médio, a estabilidade profissional garantida por um emprego público, o pagamento da aposentadoria integral, etc.

Seja pelo princípio da vocação ou do pragmatismo, fato é que as polícias militares (e as Forças Armadas [FAs] de modo geral) exercem papel importante enquanto instituições de ascensão social para os segmentos mais humildes da sociedade brasileira. Trabalhos como os de Bretas (1997) e Holloway (1997) nos mostram que a atividade laboral na polícia, desde sua origem, sempre foi muito mais atrativa para trabalhadores pobres e negros alforriados do que para os segmentos médios e as elites. Na leitura de Sansone (2002, p. 518), a PMERJ em particular consegue de maneira muito clara interligar marcadores de classe e raça nas suas fileiras, se constituindo enquanto veículo de ascensão social importante também para os afro-brasileiros viventes no Rio de Janeiro. Não é à toa que o perfil da maior parte da tropa – isto é, aquele formado por soldados, cabos e sargentos – seja facilmente identificável enquanto majoritariamente masculino, não branco e de escolaridade de nível Médio e Fundamental (MINAYO; SOUZA; CONSTANTINO, 2008, p. 67-73.). Não seria exagero especular, neste sentido, que mais do que qualquer outra instituição pública no estado do Rio de Janeiro, a PMERJ talvez seja aquela com o maior número absoluto de negros e pessoas de origem mais pobre nos seus quadros, em especial no “círculo das praças”.

Tal perfil é encontrado de maneira muito clara entre os candidatos ao cargo de “soldado PM”. A maior parte deles é formada por homens jovens com menos de 30 anos, não brancos, de escolaridade de nível Médio e moradores de periferias pobres e favelas do Rio de Janeiro. Os próprios cursos preparatórios voltados para o concurso da PMERJ se localizam, em grande medida, em bairros da capital e em municípios da RMRJ com este perfil. Quando consegui a autorização para acompanhar as aulas num desses “cursinhos”, optei, por sugestão do diretor pedagógico da rede de preparatórios, por uma unidade localizada em um bairro do subúrbio carioca3. A recomendação foi feita por dois motivos: não só porque lá havia mais turmas e maiores possibilidades de observação das aulas, como também pelo perfil do candidato suburbano, segundo o diretor, ser mais “adequado” para a minha pesquisa. Percebendo minha curiosidade, ele me explicou que, na unidade do centro do Rio, os candidatos não queriam de fato a carreira de PM, mas eram apenas “concurseiros” (MAIA, 2019, p. 119), ou seja, candidatos que se dedicavam sistematicamente a se tornar funcionários públicos, inscrevendo-se em vários concursos e frequentando vários cursos preparatórios até a aprovação. Segundo o diretor pedagógico: “o candidato da PMERJ aqui no centro é nutella. Lá no subúrbio não, lá você vai encontrar o candidato raiz4. Pouco tempo após o início do campo, compreendi perfeitamente sua observação.

Neste cenário, a escolha pela carreira policial é tributária de trajetórias de vida não tão distantes assim do horizonte da PMERJ. A maior parte dos candidatos com os quais convivi eram jovens oriundos das patentes baixas das FAs, trabalhadores atuantes na área da “segurança patrimonial”, ou mesmo pessoas que possuíam na proximidade com PMs reformados e da ativa um elemento importante para sua escolha profissional. Algumas vezes, até mesmo indivíduos cuja história de vida é atravessada por diferentes atividades criminais se candidatam a uma carreira na PMERJ – a exemplo de ex-assaltantes, ex-varejistas de drogas e, principalmente, milicianos.

Mesmo compreendidos dentro de um horizonte simbólico relativamente comum – afinal, todos eles almejam a carreira de PM no Rio de Janeiro – a história de cada candidato revela, por vezes, interesses muito díspares para a entrada na polícia. Sob a fina camada de pragmatismo e vocação que enverniza o discurso nativo, repousam motivações das mais variadas que envolvem pessoas, instituições e lugares que, no caso do meu trabalho, se espraiam por todo o subúrbio carioca. Tais interesses, é importante perceber, parecem funcionar enquanto catalisadores de uma série de relações de afinidade estabelecidas entre estes sujeitos antes mesmo da entrada na corporação. Como exercício de ilustração, vale a pena relembrar as vezes em que pude observar como alguns candidatos evangélicos sempre se sentavam juntos. Eles procuravam ir às aulas e de lá voltar diretamente para casa, sem jamais “esticar” a convivência com outros candidatos nos bares próximos ao “cursinho”. Por outro lado, aqueles que tinham alguma passagem pelas FAs também procuravam formar grupos, muitas vezes pela própria convivência cotidiana (ou pretérita) em algum quartel da caserna. Enquanto militares, suas visões negativas sobre os candidatos civis ficavam muito evidentes em algumas ocasiões – sobretudo nas conversas onde a rusticidade exigida pela vida militar era tomada enquanto vantagem na futura vida na PMERJ5. Havia ainda as esposas e namoradas de PMs, sempre muito bem alinhadas e absolutamente reservadas (com raras exceções) no trato com outros candidatos homens. Ao final de cada aula, o caminho delas era sempre da sala de aula para o banco do carona de algum dos carros – na maioria das vezes, sedans com os vidros “filmados” – que as aguardavam na porta do curso. Por fim, outro perfil comum era o de candidatos geralmente muito jovens, cuja afinidade maior se dava pelos regimes da curtição (SILVA, 2019) em bares, festas, “peladas” de final de semana e bordéis. O “cursinho” era mais um desses espaços de potencial confraternização, embora alguns tomassem o momento das aulas como etapa fundamental na sua preparação para o concurso.

A entrada na polícia poderia sugerir, com efeito, a inserção dos candidatos numa espécie de “sociedade” se evocarmos a ideia de estrutura social defendida por Radcliffe-Brown (1973). Neste caso, ela implica a adoção de um conjunto de regras (formais e, sobretudo, informais) que orientariam as relações sociais entre os futuros policiais nas suas diferentes funções exercidas na corporação. Os candidatos têm clareza quanto a esta potencial pluralidade e o próprio caráter heterogêneo da PMERJ sob a perspectiva das funções na polícia. Boa parte das suas expectativas é construída inclusive sobre as possibilidades de ocupação diferenciada desses espaços. Existem sujeitos desejosos em ser policiais para “dar tiro e prender vagabundo”. Outros já enxergam a entrada na polícia como forma de “conseguir dinheiro rápido”. Há ainda aqueles que querem entrar na PMERJ para “ter estabilidade pra tentar outro concurso”, ou mesmo, no caso de muitos egressos das FAs, para “dar continuidade à vida de quartel”. São muitas as motivações e várias delas aparecem entrelaçadas. No entanto, uma representação muito comum acerca da PM por parte dos meus interlocutores – e que eu já havia escutado da boca de policiais em outras ocasiões – é que não obstante sua pluralidade, a PM funciona como uma “grande família” a acolher todos os seus irmãos em farda. Valores como o “companheirismo” e a “camaradagem” entre a tropa – que são comuns também em outras forças militares, a exemplo do Exército (CASTRO, 2004) – sustentam a representação de harmonia construída sobre a corporação.

Contudo, se pensada nos termos sublinhados por Strathern (2017), tal leitura pode sugerir uma visão reificadora da ideia de sociedade ao balizá-la pela sua relativa autonomia e identidade em relação à ideia de indivíduo. Para a autora, se as pessoas de “carne e sangue” são o objeto central do interesse antropológico, elas não devem ser pensadas enquanto entidades individuais em contraposição à sociedade, mas sim através de uma perspectiva relacional, ou seja, que conceba as relações como algo primário e intrínseco à existência humana (STRATHERN, 2017, p. 199). Quero chamar atenção, em outras palavras, que, embora as polícias militares possam ser lidas enquanto instituições totalizantes (GOFFMAN, 1987), a construção social do “ser policial” é um processo dotado de inúmeros tensionamentos e distensões. Ele se realiza em diferentes contextos de ações sociais que não se manifestam, é importante dizer de antemão, externamente à constituição das pessoas em outros espaços para além da própria polícia.

Tradicionalmente, uma referência muito cara a boa parte das análises sobre formação policial e construção da identidade PM é a ideia de processo. Mesmo em diferentes contextos de pesquisa, a explicação sociológica para um jovem tornar-se policial comumente parte da dialética entre “estrutura X antiestrutura” (TURNER, 2008; 2013), ou seja, ela é tributária dos “ritos de passagem” (VAN GENNEP, 1978) que animam toda a trajetória deste sujeito a partir do momento de entrada na polícia. O indivíduo liminar, para Turner (2013), encontra-se entre dois mundos distintos. Ele ocupa uma posição particular num espaço/tempo onde as estruturas sociais estão em relativa suspensão. Tal indivíduo, que assume o papel de neófito num dado “ritual de passagem”, é um indivíduo que se desnuda dos valores que o conformavam no seu estado pretérito. Pela temporária suspensão dos constrangimentos da estrutura, o momento da liminaridade permite ao neófito estabelecer relações de communitas (TURNER, 2013) com outros sujeitos que partilham com ele o mesmo ritual. A fase liminar assume importância central dentro da proposição turneriana, uma vez que é justamente neste momento que os interesses e as atitudes dos grupos e indivíduos se encontram em mais clara oposição. Após o período liminar, o indivíduo pode se reinserir novamente na estrutura, mas agora numa posição distinta daquela anterior ao processo ritual.

Tal enfoque em questão – que chamarei de “processualista” pelo aporte teórico fundamental que a análise processual turneriana fornece a essas leituras – permite que as mudanças sociais que reformatam os sujeitos possam ser mais bem percebidas e analisadas. Esta perspectiva tende a assumir o neófito enquanto um ser que, ao transitar pelas aleias da liminaridade, torna-se uma “página em branco”, ou seja, “uma tabula rasa, uma lousa em branco, na qual se inscreve o conhecimento e a sabedoria do grupo” (TURNER, 2013, p. 104). O papel dos rituais seria o de não somente desencarnar a condição anterior dos sujeitos – tornando-os, portanto, seres mais amorfos, carentes de peculiaridades capazes de fornecer a cada um deles certa individualidade – como também prepará-los para outro momento das suas vidas através do forjamento de uma nova identidade. Uma passagem do trabalho seminal de Muniz (1999) sintetiza muito bem como a perspectiva processualista foi incorporada enquanto referencial teórico nos estudos sobre formação policial e identidade profissional dos PMs:

A construção dessa nova identidade, cujo momento zero é ritualizado, por exemplo, no recebimento de um outro nome, o “nome de escala”, se dá no ingresso para as escolas e academias – o primeiro e, sobretudo no caso do oficialato, o principal estágio de introjeção e da aceitação de uma visão de mundo, propositadamente concebida como distinta das contingências, das intempéries e da imprevisibilidade a que estariam expostos os atores sociais para além dos muros seguros dos quartéis. Fazendo uso de um jargão antropológico, o período passado nas escolas constitui-se em um rito de passagem estendido e reencenado em cada etapa do percurso profissional: na aquisição de uma graduação mais elevada, no alcance de uma posição de comando, no rodízio entre as atividades de policiamento, etc. Assim como nas experiências de afastamentos vivenciados por certas trajetórias religiosas, a carreira policial militar parece reforçar a necessidade de uma marcada descontinuidade com o chamado mundo civil. (MUNIZ, 1999, p. 100-101, grifos meus).

No âmbito da academia brasileira, outros autores procuraram aderir, de maneira mais ou menos intensa, a essa mesma perspectiva nas últimas décadas. Pioneiramente, o trabalho de Brito e Pereira (1996) analisou a socialização organizacional de soldados PMs a partir dos rituais que iniciam os recrutas na cultura militar. Já os artigos de Albuquerque e Machado (2001; 2003) mostraram como o “trote” e as dinâmicas de “imersão” em instruções militares ritualizam a passagem do mundo civil para o mundo militar entre aspirantes na PM baiana. Ainda no âmbito do oficialato, Sá (2002) e Silva (2011) descreveram, respectivamente no âmbito das PMs cearense e fluminense, a ritualização do cotidiano na academia e seu papel na conformação da identidade policial dos oficiais. No trabalho de Storani (2006), o “Curso de Operações Especiais” (COE) é também percebido através dos rituais que criam e reafirmam a identidade dos policiais do “Batalhão de Operações Especiais” (BOPE) no Rio de Janeiro. Mais recentemente, França e Gomes (2015) ressaltaram a “pedagogia do sofrimento” presente em diferentes rituais forjadores da identidade policial militar, assim como Pires e Albernaz (2019) descreveram as dimensões rituais das formas escolarizadas e não escolarizadas de saber para oficiais e praças da PMERJ.

Diante de todos esses trabalhos, é inegável a importância que a perspectiva processualista assumiu nos estudos sobre formação e identidade policial no Brasil. Todavia, longe de negar ou mesmo se opor a todos os diagnósticos feitos até aqui, meu trabalho procura trazer um olhar que complementa tal problemática ao iluminar outras dimensões da conformação do “ser policial”. Parto, neste sentido, de uma perspectiva semelhante àquela inscrita em Guedes (1997), no tocante ao deslocamento do papel dos rituais no processo de conformação da identidade profissional dos sujeitos. Em seu trabalho, a autora procurou se distanciar de situações “rigorosamente marcadas pelo grupo em que [os rituais] ocorrem com abundância de símbolos e uma padronização bastante fechada do comportamento” (GUEDES, 1997, p. 36). Seguindo esta pista, meu interesse foi perceber como alguns símbolos importantes ligados ao universo da PMERJ podem ser consumidos a partir das interações cotidianas entre esses sujeitos fora daquilo que se considera estritamente como “a polícia”. Se pensado dentro da seara dos estudos sobre formação policial supracitados, meu trabalho procura, assim, contribuir com essa literatura ao apontar possíveis limites quanto ao lócus tradicionalmente apontado como de criação e operacionalização do “ser policial”.

A convivência prolongada com meus interlocutores me permitiu pensar esses jovens não enquanto sujeitos meramente liminares que “por si mesmos são barro ou pó, simples matéria, cuja forma lhes é impressa pela sociedade” (TURNER, 2013 p. 104). De maneira distinta, meus interlocutores são encarados enquanto agentes no sentido empregado por Ortner (2007, p. 46), ou seja, “atores culturalmente variáveis (e não universais) e subjetivamente complexos (e não predominantemente racionalistas e interessados em si mesmos)”. Eles são dotados, portanto, de toda uma subjetividade prévia à entrada na polícia, que é capaz de fomentar ações de adesão e/ou resistência aos constrangimentos e/ou desembaraços impostos pelas estruturas sociais que sustentam a corporação. Falo não somente do aspecto da transmissão de conhecimentos formais nas escolas de formação, como também da futura socialização dos policiais nas diferentes funções compreendidas pelo policiamento ostensivo das ruas de uma cidade como o Rio de Janeiro.

Para demonstrar empiricamente meu argumento, sugiro recortar analiticamente parte desse universo a partir de uma história, compartilhada num grupo de Whatsapp dos candidatos, sobre um policial solitário que, perdido dentro de uma favela no subúrbio carioca, enfrenta dezenas de criminosos contando apenas, segundo ele, “como sua arma e a ajuda de Deus”. Naquele espaço virtual, criado pelos candidatos fundamentalmente para a troca de informações sobre o concurso, algumas vezes eram compartilhados também outros conteúdos, como fotos, vídeos e áudios produzidos por PMs no exercício da sua atividade cotidiana. Em sua grande maioria, esses materiais versavam acerca das mortes, prisões, perseguições e apreensões de drogas e armas efetuadas pelas diferentes guarnições, companhias e batalhões que conformam a PMERJ. Eles chegavam ao grupo por parte considerável dos candidatos ser parente, amigo(a), namorado(a), vizinho(a) ou ao menos “conhecido(a)” de PMs, e por isso mesmo compartilhar certo nível de proximidade com eles, a ponto de acessar, mesmo com alguns limites, conteúdos mais restritos ao universo policial. Quando isso acontecia, o grupo, por vezes, se transformava numa espécie de espaço de trocas simbólicas entre os candidatos sobre suas representações e expectativas acerca da carreira policial. O grupo iniciava ou complementava muitas das conversas ocorridas nos intervalos das aulas semanais no “cursinho”, bem como em outros espaços onde convivi com os candidatos6. Sendo assim, vejamos como se desenrolou a referida história e como se deu a interação dos candidatos com ela.

A HISTÓRIA DO SARGENTO PEIXOTO: ALGUMAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS ACERCA DO “SER POLICIAL” NO SUBÚRBIO CARIOCA

Num sábado qualquer de 2020, durante a pandemia da COVID-19, o sargento Peixoto deveria pegar uma importante via expressa para chegar ao trabalho no centro da cidade do Rio de Janeiro. Homem negro, de origem muito humilde, ele nasceu na Paraíba, mas foi militar do Exército até 2007 na capital fluminense, quando conseguiu passar no concurso da PMERJ e realizar seu sonho de “ser polícia”. Há 13 anos ele é praça da corporação, tendo iniciado sua carreira quando estava próximo dos 30 anos de idade. Ao longo de todo esse tempo, o sargento fora um ilustre desconhecido do grande público e dos próprios candidatos matriculados no “cursinho” com os quais convivi. Aquela manhã, todavia, marcaria uma mudança definitiva na sua vida. Ele não sabia que aquelas últimas horas da sua folga o levariam ao encontro de um episódio que, em pouco tempo, transformaria Peixoto numa celebridade momentânea dentro do universo policial militar carioca.

Logo cedo, o sargento saiu para comprar uma nova placa eletrônica para o computador de um dos filhos. Peixoto saiu de casa naquela manhã à paisana, com a farda dobrada no porta-malas do carro. Sua cédula de identidade funcional da PMERJ estava guardada na carteira, enquanto a pistola .40 ficava embaixo do banco, onde ela sempre repousava quando o proprietário da arma precisava se deslocar de carro. Ele tinha a indicação de uma assistência técnica não tão distante da sua casa, e seu plano era ir de lá direto para o serviço, uma vez que sua apresentação estava marcada para antes da hora do almoço. Embora tenha conseguido chegar ao local indicado sem maiores problemas, ele não conhecia muito bem o caminho dali para o centro. Como qualquer outra pessoa, Peixoto ligou um “aplicativo” de navegação no celular e seguiu as orientações da rota para acessar a via expressa que o levaria ao trabalho em menos de meia hora. O sargento percorreu várias ruas e estradas daquela parte do subúrbio, tangenciando “pracinhas” e atravessando passagens subterrâneas que levavam ao lado de lá daqueles bairros cortados pela linha do trem. Em pouco tempo ele acreditava poder estar chegando ao seu destino.

Para acessar a via expressa que levaria Peixoto até o centro, o aplicativo indicou uma manobra final à direita, que desembocava numa avenida comprida, de pistas estreitas, construída a partir da canalização de um rio. Cada margem comportava uma única pista simples – espremida entre o leito fluvial assoreado e as casas – que não permitia a passagem de mais de um carro por vez. Peixoto logo percebeu algumas “barricadas” improvisadas ao longo da pista que dificultavam ainda mais a circulação de veículos. Este era um sinal perigoso, muito comum em territórios de grupos armados ligados ao tráfico varejista de drogas no Rio de Janeiro. A suspeita logo se confirmou quando o policial avistou um grupo de quatro traficantes armados de fuzil não mais do que a vinte metros de distância. Percebendo a aproximação do veículo, os homens ordenaram que ele parasse. O sargento diminuiu a velocidade enquanto conduzia o volante com apenas uma das mãos. A outra empunhava sua pistola, já destravada, numa posição fora do ângulo de visão de quem estivesse fora do carro. Peixoto sabia que se não agisse de antemão, com a iniciativa do primeiro tiro, seria morto. O problema não era apenas morrer, mas “morrer na covardia” como, volta e meia, acontecia com policiais capturados em circunstâncias semelhantes. Naquela situação, não haveria maneira possível para poupar sua vida. “Se é pra cair, vou cair atirando” – ele pensou.

O policial então abriu fogo contra os quatro homens, derrubando um deles mortalmente, enquanto era alvejado pelos outros três com tiros de fuzil e pistola. Uma fuga espetacular iniciou-se pelas ruas e vielas daquela favela onde ele entrara por engano. Desesperado, ele logo se viu cercado por dezenas de traficantes numa casa onde conseguira abrigo após abandonar seu carro. Por quase uma hora, ele resistiu tendo em mãos apenas sua pistola e o fuzil subtraído de outro traficante que ele matara quando o homem tentou invadir a casa. Seu resgate, acionado através de mensagens enviadas para colegas por Whatsapp, mobilizou quase uma centena de policiais lotados em diferentes batalhões do subúrbio – além do “Batalhão de Choque” (BPCHq) e do “Batalhão de Policiamento de Vias Expressas” (BPVE). Por conta da “operação” levada a cabo pela polícia, as vias de acesso à região ficaram fechadas por mais de uma hora. Somente com a chegada de veículos blindados os policiais conseguiram chegar até o sargento. Embora exausto, Peixoto saiu ileso do confronto rumo ao repentino estrelato, dada a repercussão do caso nas redes sociais e na grande imprensa nos dias seguintes.  

A história de Peixoto foi escolhida por sintetizar uma série de representações sociais dos candidatos acerca da carreira policial. Logo após o áudio com sua história ser compartilhado, diversas mensagens e arquivos de áudio, vídeo e imagens inundaram o grupo. Os candidatos rapidamente passaram a comentar o ocorrido, sendo que, em alguns casos, as mídias compartilhadas retratavam a própria história sob outros ângulos: não só a partir das fotos tiradas pelos PMs que foram ao auxílio do sargento, como também por vídeos gravados pelos motoristas e transeuntes que testemunharam toda a ação das ruas próximas ao local. Isto era um indicativo de que a história havia chegado ao conhecimento dos candidatos por diferentes caminhos, provavelmente pela sua inserção em outros grupos de Whatsapp e por seus contatos pessoais. Grosso modo, a maior parte do conteúdo era composta de pequenos vídeos da movimentação tática e do tiroteio envolvendo os policiais e, principalmente, das fotos dos corpos dos dois criminosos mortos por Peixoto. A admiração pela saga do sargento era unânime: “mano do céu, esse maluco merece uma medalha do governador!”; ou ainda: “o cara sozinho enfrentou um exército de vagabundos… Isso é polícia pra caralho!”. Já outros candidatos falavam que Peixoto era o “sargento Rambo” ou ainda o “John Wick” da PMERJ – referências diretas a personagens de filmes e séries de ação. Na leitura dos meus interlocutores, não só a performance destemida do policial perante o perigo, como também o enfrentamento direto ao inimigo encarnado na figura dos varejistas de drogas, faziam do episódio a representação superlativa do que seria o “ser policial” para eles.

Como argumenta Oliveira (1999, p. 191), falar de representações sociais é falar da maneira como os diversos atores assimilam, elaboram e difundem conhecimentos sobre determinada realidade em comum. A função fundamental das representações sociais, para Moscovici (1988), é o desenvolvimento de formas compartilhadas de compreensão do mundo. Elas objetivam tornar o não-familiar em familiar ou mesmo explicar o funcionamento de algo que ainda não é tão claro. Elas dizem respeito a um repertório comum de interpretações, explicações e procedimentos construídos socialmente que orientam os sujeitos em suas vidas cotidianas (MOSCOVICI, 2003, p. 210). Nessa mesma direção, Abric (1993, p. 75-77) sugere compreender analiticamente as representações sociais a partir da articulação de dois sistemas: um central e outro periférico. Segundo o autor, o sistema central é delimitado pelos valores sociais coletivos responsáveis pela sustentação de uma dada representação. Ele possui caráter fortemente normativo, que age não só sobre o estabelecimento de consensos entre membros de um determinado grupo, como também na capacidade de reprodução e continuidade desta mesma representação. Por outro lado, de maneira complementar, o sistema periférico possui um caráter mais funcional, que objetiva dar concretude ao sistema central num determinado contexto. Sendo muito mais flexível e mutável, ele exerce a função de imprimir certa modulação individual à representação, permitindo, com efeito, que os valores que compõem seu “núcleo-duro” sejam conjugados com os valores pessoais de cada sujeito.

Na história em questão, a bravura – considerada valor lapidar na construção identitária das polícias brasileiras (MUNIZ, 1999; KANT DE LIMA, 2003; PONCIONI, 2004; SOARES, 2019; entre outros) e em outras partes do mundo (BITTNER, 2003; REINER, 2004; MONET, 2006; FAULL, 2018; entre outros) – apareceu também enquanto valor fundamental do sistema central das representações dos candidatos. Para eles, somente sujeitos que não têm medo dos riscos envolvidos nas atividades ligadas ao cotidiano policial podem ser PMs. Todas as mensagens e mídias compartilhadas no grupo evidenciavam o posicionamento central deste elemento – muito embora ele tenha sido expresso pelos meus interlocutores de maneira diferente em outros contextos. Por conta dos limites do artigo, chamo atenção para um tema relevante ao longo do meu trabalho de campo e que revela a articulação sistêmica “centro-periferia” no tocante às representações sociais sintetizadas pela história de Peixoto. Falo sobre a relação entre as representações de bravura através do uso de armas de fogo pelos possíveis futuros policiais, em especial nos seus momentos de folga.

É lugar comum entre eles a afirmação de que, quando forem PMs, andar armado é a única forma de proteger a sua própria vida e a da sua família. Na leitura nativa, pela atividade policial ser uma atividade fundamentalmente operativa, isto é, que compreende atividades como perseguições a criminosos, tiroteios, prisões, apreensões, entre outras coisas, o policial acaba tendo enorme visibilidade pública ao patrulhar ruas e favelas. Por conta disto, ele está sujeito a sofrer toda sorte de violência – em especial quando está fora de serviço, longe da proteção oferecida pela própria corporação. De modo geral, meus interlocutores, mesmo antes da entrada na polícia, tendem a reproduzir o discurso do “faro policial” (ALBERNAZ, 2015) na conformação das suas suspeições na futura maneira de praticar o policiamento ostensivo cotidiano. Se, para eles, a prática nas ruas ajuda no desenvolvimento de técnicas para identificar possíveis criminosos, eles acreditam também que esses mesmos criminosos possuem outro “faro” capaz de revelar sua identidade enquanto policiais. Como me confessou uma vez um candidato: “Vagabundo sente cheiro de polícia de longe. É o tipo de cabelo, o cordão de ouro, o ‘relojão’ da Invicta (marca de relógios), o jeito de andar, de falar… Não tem jeito, não tem como esconder que tu é PM de vagabundo”.

Diante desse cenário de ameaça potencial permanente, é compreensível que os candidatos se identifiquem com repertórios de ação como aquele mobilizado por Peixoto. Em certa ocasião, pude testemunhar três jovens debaterem qual seria o melhor local para guardar sua futura pistola no automóvel quando estivessem fora do horário de serviço. O único consenso entre eles era sobre a necessidade de tê-la sempre em mãos a ponto de garantirem suas próprias seguranças. Entre deixá-la sob o banco, entre as pernas ou em algum compartimento do painel do carro, um dos candidatos chegou a afirmar, em tom jocoso, que iria investir na compra de um automóvel com câmbio automático para conseguir dirigir “apenas com uma mão”, uma vez que, assim, poderia dirigir e atirar ao mesmo tempo.

Outra vez, ao conversar com outros dois candidatos sobre o caso de um PM morto durante uma abordagem a suspeitos (G1, 2019), um deles avaliou medidas para minimizar os riscos envolvidos na profissão. O candidato – então um cabo do Exército desejoso de entrar para a PMERJ – havia participado de algumas manobras militares no contexto da “intervenção federal” na segurança pública fluminense em 2018. Na maior parte das vezes, sua função fora tanto dar apoio tático ao “cerco” de favelas para a incursão da polícia como também participar de blitz para averiguar veículos suspeitos nas ruas. Após essas experiências, percebendo de perto o quão perigoso é o cotidiano policial carioca em sua opinião, ele estava ainda mais convencido de que “PM no Rio de Janeiro não pode andar desarmado”, sendo a compra de uma arma a primeira coisa a se fazer quando alguém entra para a polícia. Sua visão foi mais bem explicada através da elaboração periférica de outra representação também sintetizada pela história de Peixoto. Enquanto possível futuro policial, seu maior medo era ser reconhecido, estar desarmado e ser levado para algum morro para morrer “na covardia”. Na visão do candidato, “na dúvida, melhor morrer rápido, de maneira digna, matando uns três comigo”.

Além dessas representações, no mesmo dia do compartilhamento do áudio, apenas algumas horas depois do cerco ao sargento, um desdobramento da história de Peixoto reforçou o referido vínculo entre a bravura e a defesa precoce do porte de armas por parte dos candidatos. Por conta da resolução de uma questão de Língua Portuguesa, o assunto se encaminhou para a necessidade dos candidatos em manterem o foco nos estudos mesmo num sábado à noite. Dois deles compartilharam fotos de sua mesa de estudos naquele momento, sendo que, uma das imagens chamou a atenção de todos no grupo, por conta da conjugação cuidadosa de objetos que, ao menos para mim, pareciam até então incompatíveis:

Imagem 1 – Quando a caneta vira arma: a mesa de estudos de um candidato à carreira policial7

Fonte: Arquivo do autor.

De maneira muito clara, a foto reforça a presença das armas como elemento importante para os candidatos até mesmo nas representações sociais construídas acerca do seu ambiente de estudos. Embora não seja policial nem sequer recruta, o candidato em questão é um simples jovem que usou parte de suas economias no financiamento de uma pistola calibre 9 milímetros para uso pessoal. Ao lado da arma, encontram-se dois carregadores e uma caixa de munições, bem como outros artefatos que marcam uma possível continuidade simbólica entre os elementos constituintes da imagem. Eles estão dispostos em conjunto com seu caderno, sua caneta, seu notebook e a apostila preparatória que identifica o concurso de soldado da PMERJ. O nó que entrelaça simbolicamente todos os objetos torna-se ainda mais evidente pela mensagem enviada logo abaixo da foto postada: “só falta a funcional” – em referência direta à carteira de identificação funcional que todo PM possui.

Num tom de descontração e admiração, os outros jovens obrigaram o dono da pistola a compartilhar a foto do registro da arma “só pro povo não achar que é fria”, afinal, trata-se de possíveis futuros agentes da lei. Ademais, o desenrolar da conversa nada teve a ver com dúvidas acerca dos conteúdos de Língua Portuguesa, mas sim com a troca de informações sobre onde comprar legalmente uma arma de fogo, os limites da compra de munição, a burocracia para conseguir a posse e, claro, como tudo isso mudou após as medidas de flexibilização da legislação armamentista brasileira adotada pelo governo Jair Bolsonaro. O dono da arma foi enfático sobre isto: “mano, só deu pra comprar isso aí por causa do Bolsonaro. Temos que agradecer ao nosso presidente!”.

Retornando a Moscovici (2003, p. 208), este pequeno exercício nos mostra como as representações sociais não devem ser encaradas apenas enquanto réplicas ou mesmo reflexos do mundo. Elas são formadas através de influências específicas e negociações no curso de conversações orientadas para modelos simbólicos, imagens e valores compartilhados socialmente. Neste processo, as pessoas adquirem um repertório comum de interpretações, explicações, regras e procedimentos que articulam dimensões normativas e funcionais das representações sociais (ABRIC, 2003). O caso dos meus interlocutores não é diferente. Se considerarmos que tal repertório pode ser aplicado também à vida cotidiana, suas representações funcionam enquanto mecanismo prévio de navegação social dentro de uma possível carreira na polícia militar fluminense.

No entanto, aquilo que os candidatos “assimilam, elaboram e difundem” sobre tal universo não esgota sua totalidade. Do ponto de vista nativo, quando certas narrativas sobre o trabalho da polícia são destacadas em detrimento de outras, essas representações evocam igualmente o que está ausente desse mundo (MOSCOVICI, 2003, p. 212). O fato delas geralmente orbitarem em torno das funções mais operativas das polícias não é algo banal. Nos termos tratados por Abric (2003), esta tendência acaba por fazer da bravura um valor fundamental do sistema central destas representações, sendo ela modulada individualmente e distintivamente de acordo com cada contexto social vivido. Dito de maneira um pouco mais clara, as modulações da bravura pelo sistema periférico das representações dos candidatos podem ser percebidas quando eles falam em dirigir com apenas uma das mãos para empunhar a pistola com a outra, pela certeza em andarem armados para protegerem suas próprias vidas, ou ainda em comprarem uma arma antes de sequer realizarem o concurso da Polícia Militar. Logo, tudo isso não parece encontrar explicação plausível se insistirmos em considerar tais sujeitos enquanto criaturas liminares cuja identidade policial é moldada, apenas, pelas escolas de formação e pelo saber prático adquirido nas ruas.

Como vimos, a perspectiva turneriana compreende o neófito enquanto ser que, ao atingir seu estado liminar, torna-se uma “página em branco” pronta para receber o conhecimento e a sabedoria de um determinado grupo (TURNER, 2013). A perda da sua individualidade e a possibilidade de inscrever em seus “corações e mentes” uma nova identidade social seria tributária de processos que encontram nos altares do saber prático e teórico das polícias os seus principais espaços de ritualização. Contudo, a análise das representações sociais dos candidatos mostra que uma série de elementos identitários presentes nesses jovens já faz alusão, em grande medida, a algumas idiossincrasias do universo simbólico das polícias no Brasil e, particularmente, do Rio de Janeiro. Trata-se de gramáticas morais que lhes permitem compreender o mundo de maneira semelhante, e que são embasadas, por sua vez, em valores comuns aceca de temas como “política”, “família”, “religião”, “direitos humanos”, “armas”, “sexualidade”, etc. Essas visões, é importante dizer, não se encontram tão distantes assim das visões hegemônicas de mundo afeitas ao universo policial, como demonstram diferentes trabalhos sobre as polícias no Brasil e em outras partes do mundo (MUNIZ, 1999; PONCIONI, 2004; SOARES, 2019; BITTNER, 2003; MONET, 2006; FAULL, 2018; entre tantos outros).

No caso do meu trabalho, a proximidade cotidiana prolongada com dezenas de candidatos permite afirmar que esses elementos começam a ser construídos pelas representações mais gerais acerca da polícia presentes na grande mídia, em filmes, novelas, seriados, jogos eletrônicos, etc. Mas essas representações fazem igualmente alusão, sobretudo, às narrativas que emergem do contato prévio que esses sujeitos têm com familiares, amigos, (ex)colegas de trabalho, conhecidos e vizinhos que já são PMs atuantes no Rio de Janeiro em diferentes funções do policiamento. Nos termos trabalhados por Kant de Lima (2019, p. 123), a PMERJ já está relativamente enredada nas malhas pessoais e profissionais de boa parte dos candidatos, que na minha pesquisa encontram-se territorializadas localmente nas ruas, esquinas e favelas do subúrbio carioca.

Essa proximidade foi inclusive ressaltada na fala da grande maioria dos professores do “cursinho” onde realizei parte do meu campo. Um desses interlocutores – um professor que trabalha com candidatos ao concurso da PMERJ desde 2008 – sintetiza bem a percepção presente na leitura geral dos docentes: “o cara que vai tentar a prova pra PM já é, de certa forma, PM. Ele já tem jeito de PM, a ‘mente’ de PM. Só falta pra ele a farda e a arma”. Mesmo tratando-se de uma fala talvez exagerada, dada a importância do papel institucional da corporação na conformação da identidade policial, o fato deste diagnóstico aparecer na fala de diferentes profissionais que há muitos anos lidam com esse perfil de jovens não pode ser tomado como algo gratuito. A escolha pela carreira policial, neste sentido, não é algo absolutamente aleatório.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo objetivou empreender um exercício compreensivo do processo de construção do “ser policial” a partir de um olhar diferente sobre o problema. Minha abordagem não partiu do estudo institucional/organizacional das polícias quanto ao seu papel considerado lapidar na conformação da identidade profissional dos agentes, mas sim a partir dos indivíduos que se propõem a ingressar na carreira antes de qualquer contato formal com a corporação. Apoiado em dados etnográficos construídos junto a diferentes candidatos, procurei demonstrar parcialmente como estes sujeitos são dotados de toda uma subjetividade prévia à entrada na PMERJ, que não permite compreendê-los, portanto, enquanto sujeitos meramente liminares. Ressalto o caráter parcial dos resultados uma vez que, pelos limites do artigo, só pude explorar, nas páginas anteriores, pequena parte dos dados produzidos através da análise dos sistemas central e periférico de algumas representações sociais dos meus interlocutores na relação entre bravura e uso das armas de fogo.

Tomado em conjunto com outros resultados preliminares da minha tese (RODRIGUES, 2020; 2021a; 2022), minhas conclusões reforçam o argumento de que muito mais do que criar novas identidades, os espaços de formação e prática talvez atuem no sentido de reorganizar ou complexificar modelos simbólicos, imagens e valores que, de certa forma, já estão presentes nos possíveis futuros policiais. A entrada na Polícia Militar marcaria, com efeito, muito mais uma continuidade do que uma ruptura com a vida civil prévia dos candidatos, muito embora os rituais presentes durante todo o percurso formativo e profissional dos futuros policiais também atuem na conformação da sua identidade.

Todavia, é importante ressaltar que minha pesquisa traz igualmente uma série de limites, uma vez que ela se inscreve num recorte empírico muito específico. Além de trabalhar com candidatos interessados em ingressar particularmente na PMERJ, meus interlocutores são, em sua grande maioria, pessoas cujo cotidiano se desenvolve na região suburbana da capital fluminense, sendo inclusive o subúrbio carioca o lugar onde eles almejam preferencialmente trabalhar enquanto possíveis policiais (RODRIGUES, 2021a). A abordagem original do trabalho carece, portanto, de estudos complementares que utilizem outras metodologias voltadas para a compreensão desta dimensão da construção da identidade policial. Da mesma forma, é necessário também investir em análises e problemáticas de pesquisa em outros recortes empíricos, isto é, que se desenvolvam não somente junto a candidatos inscritos em outras partes do Rio de Janeiro, como também, e principalmente, em outros estados da Federação – dada a heterogeneidade das corporações PMs pelo Brasil8.

Não obstante, além de um olhar complementar aos trabalhos já realizados sobre a identidade profissional dos PMs, este artigo talvez contribua com outras duas questões correlatas sobre a formação policial. Em primeiro lugar, a leitura das representações sociais dos candidatos relativiza as críticas sintetizadas pelo trabalho de Waddington (1999), no tocante ao potencial heurístico da chamada “cultura cantineira”. Segundo o autor, a “cultura cantineira” é um mecanismo importante de reprodução da “cultura policial” em geral. Ela diz respeito à cultura oral que os policiais produzem sobre o seu próprio trabalho, muitas vezes através de narrativas que consagram imagéticas pautadas pelo senso de missão policial, pelo desejo por ação e aventura, pelo enfrentamento ao perigo, pelo uso da violência, entre outras coisas. Pela “cultura cantineira” não ter muita relação com o que os policiais geralmente fazem nas ruas, o autor questiona uma suposta relação causal entre ela e as práticas dos agentes, ressaltando muito mais o papel situacional da rotina de trabalho do que a “cultura policial” na explicação das suas práticas (WADDINGTON, 1999, p. 302).

Apesar da crítica à causalidade ser certeira (dada, inclusive, como mostra o autor, pela impossibilidade de homogeneização da “cultura policial”), a “cultura cantineira” – considerada enquanto um conjunto de representações sociais – oferece pistas importantes na compreensão das visões de mundo dos policiais e na conformação de possíveis repertórios da ação policial que estão intimamente ligados à escolha profissional dos meus interlocutores. Não me parece fazer muito sentido, assim, tratar tais representações enquanto uma ideia “equivocada”, “falsa” ou mesmo “ideológica” sobre o que seria o “verdadeiro trabalho da polícia”. Os valores que animam tais representações não só constituem o universo simbólico dos policiais e, até certo ponto, dos próprios candidatos à carreira policial, como também são elementos que podem orientar (e não determinar, de maneira causal) a agência desses mesmos sujeitos. Como lembra novamente Moscovici (1988, p. 217, tradução minha): “a sociedade está constantemente produzindo novas representações que motivam a ação e dão sentido às interações humanas que florescem dos problemas do cotidiano”. Pouco importa, neste sentido, o estatuto de verdade ou não das representações sociais.

Em segundo lugar, ao procurar relativizar o enfoque processualista sobre a formação e a construção da identidade profissional dos PMs, penso nos limites que boa parte das propostas de “reformas das polícias” trazem consigo, ao minimizarem não só a capacidade de agência (e resistência) dos policiais a este processo como também, em sentido mais amplo, a adesão ativa do conjunto da maior parte da sociedade a ele. Em concordância com as críticas de Kant de Lima (2003) e Machado da Silva (2010), a defesa de uma espécie de domesticação da atividade policial através de intervenções de natureza técnico-administrativa ou jurídica, por um lado, como também pela punição dos agentes responsáveis por desvio de conduta, por outro, não enxerga que os próprios policiais são fruto de uma perspectiva coletivamente construída sobre o que seria desejável em termos de manutenção da ordem e da própria concepção da segurança pública. Com efeito, elementos tão criticados no que se convencionou chamar “cultura policial” (SHEARING, 1981; REUSS-IANNI; IANNI, 1983; MUNIZ, 1999; BITTNER, 2003; REINER, 2004; PONCIONI, 2004; entre outros) não me parecem inscritos apenas nas próprias polícias e nos seus respectivos espaços de formação e prática nos quartéis e nas ruas.

Como demonstra o trabalho de Zacharias (1995, p. 20), a escolha pela polícia parece atrair sujeitos de determinados tipos psicológicos que enxergam a carreira policial como forma de expressão de certos valores simbólicos e visões de mundo. Tal escolha deriva, em parte, da imagem profissional que a própria polícia tem perante a comunidade onde está inserida. Em grande medida, os candidatos à carreira policial são oriundos de periferias pobres e favelas, isto é, espaços onde a polícia tende a agir com muito mais truculência, violência e arbitrariedade. O campo fértil deixado por estas práticas para a construção das representações sociais sobre a polícia é muito relevante, e me parece evidente que elas impactam também nas motivações desses sujeitos em quererem se tornar policiais.

No caso específico da PMERJ, os elementos da sua cultura institucional que mais se buscam “reformar”, como a brutalização, a corrupção, o militarismo, a impunidade, a falta de controle interno e externo sobre o trabalho dos policiais, entre outros, parecem ser precisamente aqueles que atraem uma parcela considerável dos jovens para ingressarem nas fileiras da corporação a cada novo concurso. Com efeito, este artigo reforça o alerta feito por Lopes, Ribeiro e Tordoro (2016) sobre a necessidade de se pensar não apenas na suposta eficácia dos cursos e treinamentos voltados para a formação policial, mas, igualmente, nos processos de recrutamento e seleção dos candidatos, uma vez que, num futuro próximo e aparentemente distante, serão esses jovens os policiais a patrulharem o cotidiano das ruas por todo o Brasil. Se pudesse sintetizar minhas conclusões em breves palavras, poderia organizá-las nos seguintes termos: para a grande maioria dos meus interlocutores, as polícias militares brasileiras não lhes parecem, de forma alguma, viver qualquer tipo de crise.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRIC, J. C. Central System, Peripheral System: their Functions and Roles in the Dynamics of Social Representations. Papers on Social Representations – Textes sur Représentations Sociales, (1021-5573), v. 2, n. 2, 1993, p. 75-78.

ALBERNAZ, E. “Deus e o Diabo na terra do sol”: visões de espaço público, ética profissional e moral religiosa entre policiais militares evangélicos do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

ALBERNAZ, E. Na fronteira entre o bem e o mal: ética profissional e moral religiosa entre policiais militares evangélicos cariocas. Caderno CRH, v. 23, n. 60, 2010, p. 525-539.

ALBERNAZ, E. Sobre legitimidade, produtividade e imprevisibilidade: seletividade policial e a reprodução da ordem social no plano de uma certa “política do cotidiano”. Confluências: Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito, v.17, 2015, p. 109-122.

ALBUQUERQUE, C. L.; MACHADO, E. P. Sob o signo de Marte: modernização, ensino e ritos da instituição policial militar. Sociologias, ano 3, no 5, 2001, p.214-237.

ALBUQUERQUE, C. L.; MACHADO, E. P. O batizado dos recrutas: trote, socialização acadêmica e resistência ao novo ensino policial brasileiro. Capítulo Criminológico, v. 31, n. 2, 2003, p. 101-127.

BARBOSA, A. R. Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Niterói: UFF, 1998.

BATISTA, N. A violência do estado e os aparelhos policiais. Discursos Sediciosos (Rio de Janeiro), v. 4, 1997, p. 145-154.

BITTNER, E. Aspectos do Trabalho Policial. São Paulo: Edusp, 2003.

BRETAS, M. Ordem na Cidade. O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. 1 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

BRITO, M. J.; PEREIRA, V. G. Socialização organizacional: a iniciação na cultura militar. Revista de Administração Pública, v. 30, n. 4, 1996, p. 138-165.

CARUSO, H.; PATRÍCIO, L.; PINTO, N. M. Da escola de formação à prática profissional: um estudo comparativo sobre a formação de praças e oficiais da PMERJ. In: SENAP, ANPOCS. Segurança, justiça e cidadania: pesquisas aplicadas em segurança pública. Brasília/DF: Senasp; Anpocs, ano II, n. 4, p. 101-118, 2010.

CASTRO, Celso. O espírito militar: um antropólogo na caserna. 2ª ed. revista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. 

CORTES, V. A.; MAZZURANA, L. Atualização curricular do CFSd: contribuições para a gestão educacional na área da segurança pública. Cadernos de Segurança Pública, ano 7, n. 6. Rio de Janeiro: Instituto de Segurança Pública, 2015.

COSTA, C. E. O. Direitos Humanos: uma avaliação da disciplina no Curso de Formação dos Oficiais da PMERJ. Cadernos de Segurança Pública, ano 7, n. 6. Rio de Janeiro: Instituto de Segurança Pública, 2015.

FAULL, A. Police Work and Identity: A South African Ethnography. Abingdon: Routledge, 2018.

FBSP – FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2016. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/storage/10_anuario_site_18-11-2016-retificado.pdf. Acesso em 28/12/2021.

FBSP – FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/02/anuario-2020-final-100221.pdf. Acesso em 28/12/2021.

FILHO, W. A. Ordem Pública ou Ordem Unida? Uma análise do curso de formação de soldados da Polícia Militar em composição com a política de segurança pública do governo do Estado do Rio de Janeiro: Possíveis dissonâncias. Niterói: EDUFF, 2003.

FOLHA DIRIGIDA. ‘Todo ano faremos concurso para 2 mil policiais’, diz Witzel sobre PM. Folha Dirigida, Rio de Janeiro, 7 jan. 2019. Disponível em: https://folhadirigida.com.br/concursos/noticias/pm-rj/todo-ano-faremos-concurso-para-dois-mil-policiais-diz-witzel. Acesso em: 28 dez. 2020.

FRANÇA, Fábio Gomes e GOMES, Janaína Letícia de Farias. “Se não aguentar, corra!”: Um estudo sobre a pedagogia do sofrimento em um curso policial militar. Rev. bras. segur. pública. São Paulo v. 9, n. 2, 205, p. 142-159.

G1. PM é morto ao tentar prender assaltantes em Benfica, Zona Norte do Rio; é o 44º este ano. G1, Rio de Janeiro, 21 set. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/09/21/pm-e-morto-quando-tentava-prender-assaltantes-em-benfica-zona-norte-do-rio.ghtml. Acesso em 06/08/2021.

GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1987.

GRILLO, C. C. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

GUEDES, Simoni Lahud. Jogo de Corpo: um estudo de construção social de trabalhadores. Niterói: Ed. UFF, 1997.

GUIMARÃES, R. S.; DAVIES, F. A. Alegorias e deslocamentos do “subúrbio carioca” nos estudos das Ciências Sociais (1970-2010). Sociologia & Antropologia, v. 8, n. 2, 2018, p. 457-482.

HOLLOWAY, T. H. Polícia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

KANT DE LIMA, R. Direitos Civis, Estado de Direito e ‘Cultura Policial’: A Formação Policial em Questão. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 11, n. 41, 2003, p. 241-256.

KANT DE LIMA, R. A polícia na cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. 3 ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

LEITÃO, D. K.; GOMES, L. G. Etnografia em ambientes digitais: perambulações, acompanhamentos e imersões. Revista Antropolítica, n 42, 2017, p. 41-65.

LOPES, C. S.; RIBEIRO, E. A.; TORDORO, M. A. Direitos Humanos e Cultura Policial na Polícia Militar do Estado do Paraná. Sociologias, ano 18, n. 41, 2016, p. 320-353.

MACHADO DA SILVA, L. A. Violência urbana, segurança pública e favelas – o caso do Rio de Janeiro atual. Caderno CRH, v. 23, p. 283-300, 2010.

MAIA, B. Sujeitos de estado: Aprendizado e tradição de conhecimento na preparação de concursos públicos da burocracia fiscal. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.

MARCUS, G. E. Ethnography in/of the World System. The emergence of multi-sited ethnography. Annual Review of Anthropology, n. 24, 1995, p. 95-117.

MINAYO, M. C. S.; SOUZA, E. R.; CONSTANTINO, P. (Orgs.). Missão prevenir e proteger: condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008.

MISSE, Michel; GRILLO, Carolina Cristoph; TEXEIRA, Celso Pinheiro; NERI, Natasha Elbas. Quando a polícia mata: homicídios por “autos de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: NECVU, BOOKLINK, 2013.

MONET, J. C. Polícias e Sociedades na Europa. São Paulo: Edusp, 2006.

MOSCOVICI, S. Notes towards a description of Social Representations. European Journal of Social Psychology, v. 18, 1988, p. 211-250.

MOSCOVICI, S. A história e a atualidade das representações sociais. In: MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 167-214.

MUNIZ, J. O. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro, 1999.

OLIVEIRA, M. Representação social e simbolismo: os novos rumos da imaginação na sociologia brasileira. Revista de ciências humanas. Curitiba: Editora da UFPR, n.7/8, 1999, p.173-193.

ORTNER, S. Poder e projetos: reflexões sobre a agência. In: ORTNER, S. Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas. 25ª Reunião Brasileira de Antropologia, Goiânia, 2006. Blumenau: Nova Letra, 2007, p. 45-80.

PINHEIRO, P. S. Autoritarismo e transição. Revista USP, n. 9, 1991, p. 45-56.

PIRES, L.; ALBERNAZ, E. A teoria na prática é outra coisa: formas escolarizadas e não escolarizadas na construção da identidade policial. Mimeo, 2019.

PONCIONI, P. Tornar-se Policial: a construção da identidade profissional policial no estado do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

PONCIONI, P. O modelo policial profissional e a formação profissional do futuro policial nas academias de polícia do Estado do Rio de Janeiro. Sociedade e Estado, v. 20, n. 3, 2005, p. 585-610.

PONCIONI, P. Políticas Públicas para a educação policial no Brasil: propostas e realizações. Estudos Sociológicos, v.17, n. 33, p. 315-331, 2012.

RADCLIFFE-BROWN, A. R. Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Vozes, 1973.

RAMOS, S. Violência e polícia: três décadas de políticas de segurança no Rio de Janeiro. Boletim Segurança e Cidadania, n. 21, mar. 2016.

REINER, R. A Política da Polícia. São Paulo: Edusp, 2004.

REUSS-IANNI, E.; IANNI, F. Street Cops and Management Cops: The two Cultures of Policing. In: PUNCH, M. (Org.). Control in the police organization. Cambridge: MIT Press, 1983, p. 251-274.

RICCIO, Vicente; BASILIO, Marcio Pereira. As diretrizes curriculares da secretaria nacional de segurança pública (SENASP) para a formação policial: a polícia militar do Rio de Janeiro e a sua adequação às ações federais. Guatemala. XI congreso internacional del CLAD sobre la reforma del Estado y de la administración pública, 2006.

RODRIGUES, E. O. Necropolítica: uma pequena ressalva crítica à luz das lógicas do “arrego”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v.14, n.1, 2021, p.189-218.

RODRIGUES, E. O. O problema da escala: diálogos entre antropologia e geografia no Subúrbio Carioca. Anais do VIII Seminário Internacional do Ineac. 7-18 jun. 2021a [remoto], (no prelo).

RODRIGUES, E. O. Feitiços da rua: os diferentes tempos dos ilegalismos e seus usos a partir da descrição de um “esquema” de transporte complementar no subúrbio carioca. Revista Antropolítica, n. 53, 2021b.

Rodrigues, E. O. “E o fuzil, tu vende pra quem?”: Os diferentes significados da corrupção entre candidatos à carreira de policial militar no Rio de Janeiro. Revista De Antropologia, 65(3), 2022.

SÁ, L. D. Os Filhos do Estado. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

SANSONE, L. Fugindo para a Força: Cultura Corporativista e “Cor” na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Estudos Afro-Asiáticos, ano 24, n. 3, 2002, p. 513-532.

SHEARING, C. Subterranean Processes in the Maintenance of Power: An Examination of the Mechanisms Coordinating Police Action. Canadian Review of Sociology, v. 18, n. 3, 1981, p. 283-298.

SILVA, G. B. “Quantos ainda vão morrer eu não sei”: o regime do arbítrio, curtição, morte e a vida em um lugar chamado de favela. Tese (Doutorado em Ciências Sociais e Jurídicas) – Faculdade de Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.

SILVA, J. Controle da Criminalidade e Segurança Pública na Nova Ordem Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1990.

SILVA, R. R. Entre a caserna e a rua: o dilema do “Pato”. Uma análise antropológica da instituição policial militar a partir da Academia de Polícia Militar D. João VI. Niterói: Editora da UFF, 2011.

SOARES, L. E. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo, 2019.

SOARES, L. E.; SENTO-SÉ, J. T. Estado e segurança pública no Rio de Janeiro: dilemas de um aprendizado difícil. In: MUSUMECI, L. (Coord.). Segurança Pública no Rio de Janeiro: Políticas, instituições e inovações. Relatório final do projeto “Reforma do Estado e proteção social: Os setores de saúde e segurança no Rio de Janeiro”, subprojeto Segurança pública. Rio de Janeiro: Instituto de Economia da UFRJ, jan. 2000, p. 1-30. Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/uploads/2011/06/01-Estado-e-seguran%C3%A7a-p%C3%Bablica-no-Rio-de-Janeiro.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.

SOARES, M. B.; MUSUMECI, L. Mulheres policiais: presença feminina na Polícia Militar do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

STORANI, P. Vitória sobre a morte: a glória prometida. O “rito de passagem” na construção da identidade dos operações especiais do BOPE/PMERJ. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2006.

STRATHERN, M. O conceito de sociedade está teoricamente obsoleto?. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios. Coleção Argonautas. São Paulo: Ubu Editora, 2017, p. 191-200.

TURNER, V. Dramas sociais e metáforas rituais. TURNER, V. In: Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana. Tradução de Fabiano de Morais. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 19-54.

TURNER, V. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 2013.

VAN GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.

WADDINGTON, P. A. J. Police (Canteen) sub-culture: an appreciation. The British Journal of Criminology, v. 39, n. 2, 1999, p. 287-309.

WEBER, M. Economia e Sociedade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000.

ZACHARIAS, J. J. M. Tipos psicológicos Junguianos e escolha profissional: uma investigação com policiais militares da Cidade de São Paulo. São Paulo: Vetor, 1995.

ZAVERUCHA, J. A Constituição brasileira de 1988 e seu legado autoritário: formalizando a democracia, mas retirando sua essência. In: ZAVERUCHA, J. Democracia e instituições políticas brasileiras no final do século XX. Recife: Bagaço, 1998, p. 113-147.


  1. A secretaria de segurança pública fluminense só divulga os dados agregados de “mortes por intervenção policial”, não sendo possível, portanto, mensurar separadamente a letalidade de cada força no estado. No entanto, sendo as polícias militares responsáveis pelo policiamento ostensivo, é de supor que, assim como em outras Unidades da Federação (UFs), a grande maioria das “mortes por intervenção policial” no Rio de Janeiro seja de responsabilidade da Polícia Militar. Em todo caso, mesmo não sendo possível a desagregação dos dados, a análise dos números nos permite inferir como a PMERJ é, ao mesmo tempo, a força policial que mais mata e mais morre no Brasil. Só para o ano de 2019, aproximadamente 30% (o maior número do país) de todas as “mortes violentas intencionais” no Rio de Janeiro foram causadas pelas polícias (FBSP, 2020, p. 84). A taxa de letalidade policial no estado é a segunda maior entre todas as UFs, com um índice superior a três vezes a média nacional (FBSP, 2020, p. 88). Por outro lado, no tocante à vitimização policial, não obstante a queda de aproximadamente 51% observada durante o período entre 2015-2019 (FBSP, 2016; 2020), a PMERJ continua a ter, de longe, o maior número absoluto de PMs mortos entre todas as polícias militares brasileiras. Novamente entre 2015-2019, 354 agentes foram mortos no Rio de Janeiro (29,9% do total brasileiro), sendo que, deste valor, 111 foram mortos em serviço (36,5% dos números totais no país).↩︎

  2. Nos últimos dois concursos para “soldado” (2010 e 2014), a PMERJ exigiu dos candidatos conhecimentos nas seguintes disciplinas: língua portuguesa instrumental, redação, história, geografia, sociologia, legislação de trânsito, direitos humanos e informática. Meu lugar de fala enquanto professor me permitiu, até certo ponto, construir algumas pontes iniciais de contato com meus interlocutores – muito embora eu não tenha assumido este papel formal diante da turma, uma vez que a direção do “cursinho” onde realizei meu trabalho me permitiu, apenas, assistir as aulas. Todas as atividades pedagógicas que realizei junto aos candidatos foram realizadas fora dos horários das disciplinas regulares.↩︎

  3. Tomo o subúrbio carioca na sua acepção mais consensual: um conjunto de bairros pobres, localizado nas regiões periféricas do Rio de Janeiro, atravessados pelas linhas de trem e simbolicamente distantes do que seria o “centro” da capital fluminense. Para uma revisão bibliográfica sobre a polissemia de significados da região suburbana carioca, ver Guimarães e Davies (2018).↩︎

  4. “Raiz” e “Nutella” são adjetivos de uso comum que se popularizaram a partir de memes de internet. Os adjetivos servem para designar, respectivamente, pessoas que fazem coisas de um jeito “antigo”, “tradicional” e “rústico”, em contraposição ao jeito “moderno”, “delicado” e “sofisticado” de agir. Na fala do meu interlocutor, um “candidato raiz” é alguém mais ligado aos valores tradicionais das representações sobre o universo policial, enquanto um “candidato nutella” seria um sujeito mais afastado dessas mesmas representações. Neste diapasão, um “policial raiz” seria o policial “operativo” que evoca as representações da polícia enquanto instituição “em guerra contra o crime”. Já o “policial nutella”, pelo contrário, seria um agente responsável, a título de exemplo, pelo “policiamento comunitário” de um determinado bairro residencial da cidade. Para outros exemplos de memes que evocam as duas categorias, ver: https://www.dicionariopopular.com/raiz-x-nutella/. Acesso em: 9 jun. 2021.↩︎

  5. Trata-se do estigma comumente reproduzido entre militares sobre a figura do “paisano”, visto enquanto sujeito “impuro” que se insere estruturalmente em contraposição aos valores positivos do universo do militarismo. Para uma síntese de valores derivados da contraposição paisano X militar, ver a tabela elaborada por Castro (2004, p. 44).↩︎

  6. A partir de março de 2020, a pandemia da COVID-19 me obrigou a pensar um tipo diferente de observação. Já tendo estabelecido minhas redes de contato através da interação presencial com os candidatos, o restante do campo foi todo feito de maneira remota, pela observação das redes sociais nativas. Eventualmente, tirei algumas dúvidas sobre os conteúdos das disciplinas ao longo da pandemia, quando aproveitava a oportunidade para me atualizar sobre o que meus interlocutores estavam a fazer da vida. Mas na maior parte do tempo, procurei realizar, nos moldes metodológicos sugeridos por Leitão e Gomes (2017), o acompanhamento dos grupos de Whatsapp onde eu estava inserido. Neste processo, tomei notas daquilo que julgava pertinente para a problemática do trabalho através do salvamento de arquivos audiovisuais que eram do meu interesse, bem como de prints de conversas entre os candidatos. Como ficará claro ao longo do texto, todos os dados produzidos a partir deste material preservaram a identidade desses jovens. Os seis meses de observação virtual permitiram amadurecer melhor algumas questões da pesquisa, que no âmbito do presente artigo se remetem às representações sociais que os candidatos fazem sobre a carreira policial militar.↩︎

  7. Imagem compartilhada em grupo de Whatsapp em 17 out. 2020.↩︎

  8. Ainda dentro de uma perspectiva multissituada (MARCUS, 1995), outra ideia que surgiu ao longo da tese foi “seguir os candidatos” após sua possível entrada na corporação e perceber os impactos da formação policial sobre suas visões de mundo. Todavia, o período de realização do campo não compreendeu a abertura de um novo concurso para a PMERJ, principalmente pela conjugação de fatores como a crise fiscal em que se encontra o estado fluminense, a pandemia da COVID-19 e o impeachment do ex-governador Wilson Witzel. Enquanto governador, ele inclusive prometera abrir anualmente concursos para a corporação a partir de 2019 (FOLHA DIRIGIDA, 2019). Mas todos esses “imponderáveis da vida real” de que fala Malinowski talvez não impeçam, com efeito, que esse ainda seja um possível desdobramento da pesquisa em um futuro próximo.↩︎