EDIÇÃO ESPECIAL - VOLUME 16
GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA NA ADMINISTRAÇÃO PRISIONAL: OS DESAFIOS DA FORMAÇÃO DOS POLICIAIS PENAIS NO SISTEMA PRISIONAL GOIANO
Deborah Ferreira Cordeiro Gomes
Mestra pelo Programa de Direito e Políticas Públicas – Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas – Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Constitucional. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Pesquisadora com foco no campo da Segurança Pública, Políticas Públicas e Efetividade Constitucional.
País: Brasil Estado: Goiás Cidade: Goiânia
E-mail: dfcg.jus@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4390-657X
Soraia Pereira Silva
Especialista em Segurança Pública. Bacharel em Direito. Policial Penal com experiência na área operacional, administrativa e cartorária em diversas Unidades Prisionais Regionais da Diretoria Geral de Administração Prisional/GO.
País: Brasil Estado: Goiás Cidade: Goiânia
E-mail: soraia.adv@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3312-5531
Contribuição de cada autora: Deborah Ferreira Cordeiro Gomes é autora principal do artigo, sendo responsável pela tabulação, redação e referenciação dos dados e informações apresentadas no artigo. Soraia Pereira Silva é coautora do artigo, sendo responsável pela coleta e revisão dos dados da pesquisa.
RESUMO
O presente artigo apresenta uma avaliação acerca dos processos formativos dentro do curso de formação dos policiais penais em Goiás a partir de pesquisa empírica qualitativa. Partindo de uma abordagem socioinstitucional da Administração Penitenciária, a partir dos dados coletados por intermédio de entrevistas com professores e gestores prisionais, em análise dialética, objetiva-se evidenciar a capacidade dos servidores em formação para lidar com os problemas penitenciários, perquirindo-se os impactos dos processos de formação destes profissionais na concretização do direito fundamental à segurança pública como pressuposto da efetiva redemocratização brasileira. Como resultados, propõe-se diretrizes para construção de uma política com foco na responsividade dos atores do Sistema Prisional em direção à governança democrática como baliza de atuação da Polícia Penal no enfrentamento das crises interseccionais que marcam a realidade prisional brasileira.
Palavras-chave: Segurança Pública. Polícia Penal. Processos formativos. Governança Democrática.
ABSTRACT
DEMOCRATIC GOVERNANCE IN PRISON ADMINISTRATION: THE CHALLENGES OF TRAINING CRIMINAL POLICE IN THE GOIÁS PRISON SYSTEM
This article presents an assessment of the formative process of the criminal police training course in Goiás based on qualitative empirical research. Starting from a socio-institutional approach of the Penitentiary Administration, based on the data collected through interviews with teachers and prison managers, in a dialectical analysis, the objective is to highlight the capacity of civil servants in training to deal with penitentiary problems, investigating the impacts of the training processes of these professionals for the realization of the fundamental right to public security as a precondition for the effective re-democratization of Brazil. As a result, guidelines are proposed for the construction of a policy focused on the responsiveness of actors in the prison system towards democratic governance as a guideline for the performance of criminal police officers to face the intersectional crises that mark the Brazilian prison reality.
Keywords: Public Security. Criminal Police. Formative processes. Democratic Governance.
Data de recebimento: 25/04/2021 - Data de aprovação: 11/09/2021
DOI: 10.31060/rbsp.2022.v16.n0.1497
Observa-se, contemporaneamente, um evidente paradoxo dentro do processo de democratização da sociedade brasileira notabilizado pela evidenciação de núcleos sociais em que se procede à afirmação dos direitos humanos, como cláusula geral orientadora da atividade estatal, em contraposição aos setores em que há uma negação tácita ou omissão na promoção destes mesmos direitos. Representativo deste último cenário, aparece o Sistema Prisional marcado pelas condições subumanas e degradantes de aprisionamento (SALLA, 2015) em um cenário complexo e adverso tanto à pessoa presa como aos profissionais ali atuantes.
À vista disto, evidencia-se um cenário antagônico dentro do paradigma do constitucionalismo democrático de efetividade dado que há, por uma via, cotidianamente, a sacralização da pena e dos processos punitivos – acompanhado por um apelo social para que sejam mais severos e rigorosos – ao mesmo tempo em que, fora campo penal-penitenciário, ratifica-se um movimento por efetivação de direitos sociais fundamentais (SERRA; SOUZA; GUSSO, 2016).
Posto isto, seria dizer que, apesar do processo de alteração das vertentes de atuação do Estado brasileiro dadas a partir do advento do projeto social constituído sob a égide da Carta Constitucional de 1988, destaca-se ainda haver setores sociais denotativos de permanências, inconsistências e contradições paradigmáticas, tal como o campo da Segurança Pública no qual ainda se procede com o uso normativo da violência para a resolução de conflitos (OMS, 2002).
Dentro dos desafios estruturais evidenciados pela realidade social brasileira, sobressaem os relativos à questão da segurança pública, ao passo que carece esta inegavelmente de uma abordagem marcada pela integridade política e pelo compromisso com projeto democrático (SULOCKI, 2007, p. 1-10). Por evidente, tais questões ensejam consectários reflexos nas condições laborais e nas exigências de profissionalização dos servidores que atuarão dentro do Sistema Prisional, especialmente considerando o “isolamento institucional na área da segurança pública” (BALLESTEROS, 2012, p. 86).
Neste cenário, a avaliação dos processos formativos, como forma de gerar conhecimentos teórico-práticos de lidar qualificada e criticamente com os problemas penitenciários, torna-se uma necessidade afeta à real, integral e efetiva transição democrática. Nesse viés analítico, o presente artigo busca promover uma localização da temática em torno de reflexões acerca do processo formativo dos servidores prisionais a partir da análise da Política da Polícia Penal, isto é, de ressaltar os dilemas e desafios inerentes à formatação institucional e refletidos nas microrrelações travadas no exercício da funções dos policiais penais.
Em termos práticos, seria dizer que o cenário de insegurança pública dado pela intersecção de crises do Sistema Prisional, incluída com premência a crise institucional, demanda dos órgãos integrantes do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) um intercâmbio de conhecimentos técnicos e científicos que culmine no entabulamento de estratégias para a operacionalização de um modelo de segurança cidadã1 para que, deveras, haja um controle qualificado de infrações penais em alinhamento aos fundamentos do Estado Democrático.
À vista disto, partindo da premissa acerca da necessidade de se “rever os paradigmas conceituais e empíricos aplicados à análise e construção das políticas de segurança pública” (BALLESTEROS, 2012, p. 19), busca-se com este trabalho promover reflexões contextuais sobre a responsabilidade dos profissionais que atuam no Sistema Prisional dentro do desvencilhamento do cenário de violência social e institucional (SOUZA, 2015) para a desvinculação do campo de um eixo de “ações estatais anacrônicas” (ROLIM, 2006, p. 44).
Metodologicamente, busca-se apresentar um estudo de caso com uma abordagem predominantemente qualitativa com fito de engendrar um reforço na produção bibliográfica sobre o tema. Com isso, partindo de uma abordagem socioinstitucional da Administração Penitenciária2, esta referida pesquisa se alinha ao objetivo de promover formas de cooperação interinstitucional na gestão do conhecimento.
Por meio de análise dialética, em síntese, o presente trabalho propõe apresentar dados coletados por intermédio de entrevistas com professores dos cursos de formação e gestores prisionais, seja como um meio de melhor delinear a função social dos policiais penais, seja como forma de propor mecanismos de valorização profissional por intermédio da ideia de governança democrática dentro dos processos formativos, tal como almejado pelo art. 38 da Lei Nº 13.675/2018.
Especialmente no tocante à questão do papel do policial penal dentro do Sistema de Justiça Criminal, busca-se promover uma abordagem que os desvincule dos dois papéis comumente atribuídos e desvirtuados dos profissionais que atuam na custódia dos detentos, seja na posição de heróis ou de vilões. Em especial em relação à figura do policial herói, face ao mantra da guerra contra o crime, destaca-se que
[...] esse mito desvirtua o papel do policial como profissional de segurança pública. Isso porque ele consolida conceitos autoritários, seja, em nível individual, ao estimular a agressividade e a coragem visceral como padrão de ser policial; ou ainda, em nível institucional, ao incentivar prioritariamente estratégias bélicas e violentas como formas eficazes de policiamento. A verdade é que o mito do policial herói é uma farsa de reconhecimento profissional, o qual desconsidera inúmeras discriminações entre cargos e patentes no âmbito das corporações; além das gritantes distorções entre polícias civis e militares em níveis estadual e nacional. Em suma, disfuncionalidades em termos de remunerações, carreiras, organizações, legislações e condições de trabalho, as quais evidenciam que há várias realidades policiais no Brasil, mas todas equivocadamente interpretadas pelo mito do policial herói (ROCHA, 2021, on-line, grifos nossos).
Partindo desta ambientação quanto ao problema de pesquisa, como premissa essencial, evidencia-se a existência de evidentes gargalos e antagonismos nos padrões de atuação policial como um constructo socioinstitucional não questionado, a se ressaltar que
o caminho para a profissionalização da Polícia, assim como a vinculação das políticas de segurança pública aos influxos e demandas por equidade da sociedade brasileira mais ampla, está dividido entre o governo democrático da segurança e a lógica da guerra (SERRA; SOUZA; GUSSO, 2016, p. 171, grifos nossos).
Isto posto, no tocante aos processos de formação dos profissionais que atuam dentro do Sistema de Justiça Criminal, afere-se que a nevrálgica questão-problema está associada a
[...] uma concepção bastante forte de que as polícias escolheram – temos aí um ator que define a noção de ordem – e atribuíram a si o papel de combate ao crime, dentro de uma lógica de guerra. Nessa ideia, insulamento institucional e falta de governança permitem às polícias definirem a si mesmas suas políticas que, por sua vez, dissociam-se dos projetos de cidadania que buscamos construir. [...] Uma das características das corporações profissionais é constituírem barreiras que estabeleçam fronteiras para os de fora. Proteção às suas ideologias, a seus pares, às suas estratégias de afastarem-se de penetrações externas compõem esforços de diferentes corporações. Todavia, isso deixa de ser um problema endógeno para ser um problema público se essas corporações desempenham funções sociais relevantes para o conjunto da sociedade (FERNANDES, 2021, on-line, grifos nossos).
Nesse contexto, a promoção de reflexões sobre a política da Polícia, especialmente com foco no processo formativo dos profissionais que atuarão no Sistema Prisional, detém o importante papel de promover a consolidação dos valores democráticos em todos os nichos sociais. Aparecem, portanto, as políticas públicas de segurança como vertentes de atuação estatal estratégica para a consolidação do modelo democrático de resolução dos conflitos sociais (SULOCKI, 2007, p. 190-192).
Feita, portanto, a localização do problema e partindo dessas premissas analíticas essenciais promover-se-á, nas seções seguintes, uma avaliação contextual do modelo de serviço prisional em Goiás e os correlatos desafios para a gestão de pessoal dentro do marco da segurança cidadã.
O momento de exercício da pretensão executiva da pena é, sem dúvidas, a fase mais crítica de manifestação do poder punitivo ante a ausência de uma infraestrutura institucional e organizacional minimamente adequada para o cumprimento da pena em conformidade com marcos regulatórios. Esse cenário reflete a imposição e a naturalização de penas ilegais, sendo irrefutável reconhecer a concomitância de múltiplas crises dentro do Sistema Prisional abarcando tanto a falta de estrutura arquitetônica, gerencial, orçamentária como a de pessoal.
Partindo, então, desta como a realidade a que adstrita a Administração Prisional e da premissa de que é a atividade policial um serviço público essencial, dentro do recorte temático proposto por esta pesquisa, busca-se nesta seção reavaliar o Modelo de Serviço Prisional a partir da sua gestão de pessoal e, a partir disso, melhor reposicionar a função social do policial penal frente ao estado de coisas inconstitucional do Sistema Prisional.
Assim sendo, ao se avaliar contextualmente o papel dos policiais penais face ao processo de democratização, destaca-se precipuamente a importância dos processos formativos para que tais profissionais possam melhor lidar e dimensionar os problemas penitenciários a partir do rol de ações que integrarão sua práxis profissional. Destarte, observando a coexistência de regimes não integrados, qual seja de um regime jurídico-normativo e outro regime prático-operacional para o gerenciamento de crises dentro das rotinas prisionais, detecta-se como um dos campos prioritários de investigação o relativo ao estabelecimento de estratégias para o gerenciamento integrado das políticas públicas de segurança.
Por essa razão, estabelece-se como hipótese a ideia de que a melhor estratégia para o gerenciamento integrado das políticas públicas de segurança é observá-las como política de Estado (FERREIRA, 2016). Nesse sentido, desbordam as políticas públicas de segurança como instrumentos capazes não apenas de dinamizar o sistema político-administrativo, mas igualmente de melhor localizá-lo frente à realidade local, obstando a concorrência ou inconsistência de ações dentro dos órgãos da segurança pública.
Nesse escopo, consoante à literatura especializada no campo da Sociologia da Punição (ROLIM, 2006; SOARES, 2009; GUINDANI; RESENDE, 2015; SALLA, 2015; SOUZA, 2015), destaca-se que o Modelo de Serviço Prisional implementado no país estampa o desafio estrutural direcionado à ideia de corporificação da juridicidade3 dentro dos procedimentos operacionais cotidianos com o propósito de gerar uma atuação finalística dos órgãos de segurança.
Com isso, destaca-se que a efetivação do modelo de segurança cidadã é um processo que demanda uma profunda reforma interna das instituições policiais, em um processo aproximativo a uma “nova engenharia institucional” (ROLIM , 2006, p. 79), como forma de enfrentamento das problemáticas subjacentes ao dissenso que se vislumbra no campo da Segurança Pública.
Consequentemente, a partir da aprovação da Emenda Constitucional Nº 104/2019, a criação da figura da Polícia Penal somente pode ser compreendida como ação estatal legítima4 sempre e quando for esta inserida como uma diretriz de reformulação da carreira e de aperfeiçoamento institucional oportuno e conveniente dentro da estruturação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Com isto, de forma positiva e propositiva, verifica-se esta como uma abertura fática para se gerar uma janela de oportunidades no sentido de um redirecionamento dos processos de formação, atuação e profissionalização dos atores da Execução Penal no país em consonância com a Teoria das Capacidades Institucionais.
Destarte, dentro do modelo de segurança cidadã, desenhado programaticamente a partir do Susp, deve ser superada a visão do cárcere como instrumento por excelência de dominação institucional no qual a violência é oficializada, produzida, alimentada e incorporada de forma naturalizada, porquanto manifesta como o elemento garantidor das relações de dominação social (SULOCKI, 2007, p. 57- 61).
Em outros termos, sob esses auspícios, seria dizer que se realça o desafio de retirada da instituição carcerária de dentro de um espectro ideológico e procedimental sedimentado em afirmações punitivas inócuas no enfrentamento das mazelas sociais condensadas no e pelo Sistema Prisional (REIS, 2014).
Por esse ângulo, dentro desta pretensa reengenharia institucional, torna-se primordial que se superem práticas dentro da atuação policial lastreadas em uma visão distorcida acerca do direito à segurança pública, isto é, das práticas direcionadas ao combate ao crime/criminoso e à proteção do corpo social contra a ação do delinquente. Tal visão anacrônica, com predominância das ações de prevenção especial negativa, é o que retroalimenta o fenômeno da violência e da criminalidade culminando no aprofundamento da “eficácia invertida do sistema prisional” (ANDRADE, 2003, p. 102).
Por essa razão, um novo modelo de serviço prisional dentro do marco da segurança cidadã, tem como imperativo desafio gerar competências administrativas que possibilitem reconhecer e incorporar o papel de vanguarda das corporações policiais para o fortalecimento da institucionalidade democrática. Tal processo de transição carrega, em seu âmago, a saída dos padrões de atuação dos corpos policiais baseados no “modelo de coerção social” para um direcionamento em torno de um “modelo de coesão social” (SULOCKI, 2007, p. 37-38) .
Nesse sentido, a reversão da crise do sistema prisional, sob a ótica da gestão de pessoal, passa por dois movimentos reestruturantes: 1) a recompreensão do que é o real interesse público tutelado, melhor evidenciado a partir do reconhecimento do direito à segurança pública; e 2) o correlato reposicionamento da função social do policial penal dentro das rotinas prisionais, superando o ainda predominante “modelo reativo de policiamento” (ROLIM, 2006, p. 31-32) que, ao fim e ao cabo, acaba por não responder às reais demandas e expectativas dos cidadãos em relação ao ideal de pacificação social.
Os processos de formação e ambientação dos profissionais que atuam dentro do Sistema Prisional, sob um viés crítico e humanista, é por tudo quanto exposto uma premissa para um real reforço da institucionalidade democrática. Demonstra-se essencial, portanto, postular formas para transposição da cultura de direitos humanos de forma aplicada à gestão prisional no preciso sentido de que “a Educação em Direitos Humanos é uma educação para a mudança capaz de criar uma cultura de respeito à dignidade humana” (SILVA; ASSIS, 2020, p. 271). À vista disto, urgente se faz pensar, de forma concreta, na tutela da dignidade tanto dos custodiados como dos profissionais inseridos na custódia prisional.
Sendo assim, para que se possa efetivar tal movimento de reposicionamento do modelo de serviço prisional dentro do marco da segurança cidadã de forma contextual, forçoso se faz o entabulamento de novas políticas de educação e profissionalização que assimilem o movimento de geração de “cons(ciência) em segurança pública” (GOMES; MIRANDA, 2020), isto é, de uma nova agenda para formulação de políticas a partir do redirecionamento da compreensão das ações no campo da segurança rumo a um serviço público de excelência (consciência em segurança pública), pari passu ao delineamento de políticas públicas de segurança com base em evidências (segurança pública com ciência).
Posto isto, tal como disposto no art. 10, § 5º e no art. 38 da Lei Nº 13.675/2018, buscando formatar o intercâmbio de conhecimentos técnicos e científicos para qualificação dos profissionais da segurança pública, avança-se propondo-se uma análise aplicada dessas premissas dentro das estruturas da Administração Prisional em Goiás, a partir da identificação das características, dos gargalos e potenciais dos cursos de formação dos servidores que atuam no sistema prisional, com o objetivo final de diagnosticar algumas diretrizes corretivas que possibilitem o “fortalecimento do capital social comunitário” (FERNANDES, 2021, on-line).
Dentro dos objetivos estratégicos para a inserção do serviço prisional como serviço público de excelência constata-se ser claramente uma meta prioritária a profissionalização dos servidores de forma a fomentar que estes estejam atualizados e tecnicamente qualificados, acompanhando o desenvolvimento científico e tecnológico dentro do seu campo de atuação.
Disto emerge a necessidade de estudos técnicos que possibilitem prospectar informações baseadas em evidências no sentido de promover uma gestão de conhecimento que possa subsidiar processos de tomada de decisão qualificadas a partir de visão sinérgica sobre o Sistema Prisional, qual seja carece-se de informação estruturada não enviesada que conjugue uma análise conglobante da gestão prisional aliando a visão operacional com a visão estratégica.
Partindo desta asserção, dentro do movimento da busca de efetivação dos marcos normativos e regulatórios dentro da dinâmicas do law enforcement, em análise dialética, busca-se nessa seção promover a apresentação de dados coletados em um estudo de caso que contemple analiticamente as quatro etapas de avaliação de políticas a partir do levantamento de informações (scanning), da apresentação de análise contextualizada (analysis) e da proposição de respostas responsivas para os problemas setoriais (response e assessment).
Neste mister, quanto ao percurso metodológico, ressalta-se que a coleta dos dados foi realizada entre os meses de janeiro a março do presente ano (2021). Para mais, procedeu-se à padronização na forma de apresentação das informações coletadas por meio das entrevistas em um modelo de apresentação objetiva e impessoal dos dados com a correspondente desidentificação dos entrevistados, tanto com objetivo de preservar a identidade dos profissionais envolvidos no estudo como também de evitar a personificação dos resultados apresentados.
Consequentemente, a abordagem será feita a partir da breve apresentação das diretrizes e estratégias de formação dos profissionais, pensada a nível estratégico a partir da matriz nacional de formação, congregada à correlata avaliação dos professores dos cursos de formação sobre a mesma. Busca-se, portanto, expor observações e reivindicações dos atores institucionais face ao modelo de formação nacional em uma análise institucional contextualizada dentro da realidade do Sistema Prisional goiano.
Inicialmente, quanto ao perfil profissiográfico, destaca-se que o estado de Goiás adota como política de gestão de pessoas a contratação temporária de servidores para desempenhar a atividade de custódia prisional e, com isso, tem-se um cenário adverso quanto à formação destes servidores, tanto por estarem sujeitos a cursos de formação express, como por haver grande rotatividade nas equipes no sentido de que, nem sempre, os vigilantes prisionais temporários (VPTs) têm pretensões de verdadeiramente compor a carreira.
Dessas premissas, extraem-se dois importantes eixos de reflexões adjacentes: 1) o papel dos cursos de formação para maximizar a qualificação técnica e ética desses profissionais para compreender e lidar com problemas penitenciários; e 2) paralelamente, para engajá-los a partir dessa experiência a desenvolverem-se como futuros policiais penais. Logo, diante desses objetivos é que se extrairá o significado constitucional de uma boa gestão prisional, vislumbrando que o processo formativo traduz o desafio de ativação da cidadania e de manutenção dessa cidadania ativada durante o cotidiano profissional de forma a engendrar possíveis reformulações e mudanças nos padrões de atuação institucional.
Nesse sentido, partindo de uma análise aplicada da Matriz Curricular Nacional5 como marco teórico-metodológico na orientação das ações formativas (BRASIL, 2014, p. 17), perfaz-se uma análise conjuntural sobre os processos de formação dos servidores penitenciários, contemplando uma avaliação sobre o rol de disciplinas ofertadas, a carga horária, a abordagem dada pelos professores, bem como o interesse e o aproveitamento dos formandos nas disciplinas.
Feitas essas considerações, inicia-se o percurso analítico com uma breve apresentação da estruturação da matriz curricular do Curso de Formação dentro da Administração Prisional em Goiás (Anexo A). No ponto, entre atividades teóricas e práticas, tem-se uma carga horária total correspondente a 436 horas/aula, observando-se a estruturação das disciplinas em dois grandes eixos articuladores:
Eixo I: contemplando temas gerais correlacionados à Administração Prisional, engloba uma visão geral, normativa e administrativa, da Execução Penal e do Sistema de Execução Penal em Goiás, contemplando ainda assuntos gerais relacionados ao ambiente prisional, à política penitenciária, às políticas de reintegração social, à gestão penitenciária, à mediação de conflitos e às relações interpessoais;
Eixo II: contemplando temas relacionados à Segurança e Disciplina Prisional, agrega disciplinas ligadas a todo o rol de atividades física e operacional: procedimentos operacionais, armamento, tiro, defesa pessoal, uso de força, algemação, intervenção em ambiente prisional, rotinas e procedimentos de segurança, dentre outras.
A partir da análise temática dos processos formativos, de início, detectam-se problemas na divisão temática e por carga horária dentro de cada um dos eixos de formação, com evidente predominância dos processos focados na estrita custódia, segurança e vigilância dos presos. Quanto ao ponto, observando que são os servidores prisionais o próprio Estado Penal em ação, evidencia-se o essencial desafio de capacitação dos policiais penais dentro do eixo de formação técnica e humanizada para a suplantação de formas de “sociabilidade violenta” (SERRA; SOUZA; GUSSO, 2016, p. 162).
Nada obstante, em tese, eventuais distorções no tocante à distribuição por carga horária poderiam ser equalizadas de acordo com perfil dos professores-formadores e da abordagem por estes dadas na condução das disciplinas. Por essa razão, buscou-se traçar uma avaliação sobre o perfil dos professores da Escola Superior de Administração Penitenciária que participam ativamente dos cursos de formação, averiguando, paralelamente, sua forma de condução das disciplinas ministradas.
Assim sendo, avaliando-se, por amostragem, o perfil acadêmico e profissional dos professores entrevistados, observa-se haver uma grande variedade de formações de base dos encarregados pela condução dos cursos formativos em Goiás, conforme Gráfico 1 apresentado logo abaixo:
No que diz respeito às espécies de formação complementar dos profissionais, avalia-se ainda alguma variabilidade, mas com um maior grau de especialização temática, havendo primazia das formações em cursos de pós-graduação lato sensu relacionadas à Segurança Pública e Gestão Prisional, conforme Gráfico 2:
Ademais, além da formação teórico-acadêmica, a nível de experiência profissional concreta dentro do Sistema Prisional goiano, denotaram os entrevistados deter ampla rotatividade e variabilidade de cargos/funções dentro das várias pastas, tanto no exercício das funções típicas, como nas atividades de administração e gestão, em todo o estado6. Em uma análise transversal, tal grupo de informações é importante para aferição da capacidade de identificação sistêmica de toda a gama de problemas que abarcam o Sistema Prisional goiano.
Nesse direcionamento analítico, como primeiro quesito de avaliação qualitativa, se propôs aos entrevistados uma avaliação acerca da boa/má distribuição das disciplinas e respectivas cargas horárias para profissionalização suficiente e adequada dos servidores ingressantes. Quanto ao ponto, sintetiza-se a avaliação dos professores entrevistados:
PESQUISADORA: Observando a grade de disciplinas apresentada, você acredita que há uma boa distribuição de disciplinas e da carga horária para a formação tecnicamente adequada e suficiente? Por quê?
ENTREVISTADA 1: Com certeza não. A administração penitenciária goiana exerce uma gama de funções distintas, desde a função primária, que é o trabalho no cárcere propriamente dito, como funções especializadas de alta gestão, por exemplo, os setores de licitações, contratos e convênios. Dessa forma, é preciso criar níveis de aprendizagem, para que o aluno realmente tenha condições de absorver os diferentes níveis de conhecimentos. Sugiro que a atual gestão da Escola Superior da Administração Prisional (ESAP) promova urgentemente as adequações sugeridas pela Escola Penitenciária Federal, que em parceria com a ONU, desenvolveu um excelente trabalho, produzindo uma matriz atual que visa proporcionar uma compreensão global do sistema penitenciário, bem como a capacidade crítica do agente em identificar as causas e efeitos da execução penal na vida dos apenados e consequências sociais positivas e negativas advindas dela. Em resumo, busca-se uma formação de acordo com a função a ser desempenhada (alternativas penais, monitoramento eletrônico e cárcere) e ainda divide essa formação em três etapas: primeiro, proporcionar a compreensão do que foi passado ao aluno; segundo, proporcionar a aplicação do que foi passado ao aluno; e terceiro, proporcionar a compreensão global do sistema penitenciário, voltada para gestão e desenvolvimento de políticas públicas.
ENTREVISTADO 2: Considero ser necessária a ampliação da carga horária para algumas disciplinas, haja visto o fato de que estas são fundamentais para a atuação do Policial Penal. Vale citar, a disciplina de uso e manutenção de armamentos, que em suma possui carga horária média de 30 horas; ao meu ver, necessitaria de uma carga horária ao menos duas vezes maior que a atual.
ENTREVISTADA 3: Não. A parte operacional deveria ter uma carga horária maior; para uma melhor orientação, deveríamos ter situações e locais para treinamento específico. Algumas matérias específicas também deveriam ter uma carga horária maior.
ENTREVISTADO 4: Acredito que pode ser melhorado e revisado, com vista ao melhor aproveitamento; o crucial está na escolha do corpo docente, hoje sem critério algum, apenas na indicação pessoal, desmerecendo quem possui conhecimento e didática. Hoje, a distribuição das disciplinas acontece por amizade. Lamentavelmente em uma Escola isso jamais poderia acontecer.
ENTREVISTADO 5: Com certeza, a grade de disciplinas propicia ao instruendo a capacitação necessária para desempenhar seu labor com maestria e segurança.
ENTREVISTADO 6: Acredito que, dentro da atual estrutura, a formação está a contento, sendo possível orientar e instruir os novos servidores para prestar seus labores.
Dentre os entrevistados, predominou a indicação de necessidade de aperfeiçoamento no tocante à grade de disciplinas. Com isso, em complemento, foram apresentadas questões sobre o tipo de abordagem e metodologia adotada pelos professores para que pudessem promover uma melhor articulação entre teoria e prática. No ponto, alguns dos entrevistados trouxeram relatos apontando:
PESQUISADORA: Como você procura ministrar o conteúdo das disciplinas? Seu enfoque está no cumprimento da matriz curricular ou em aspectos mais práticos da lida profissional?
ENTREVISTADA 1: É preciso respeitar a matriz, porém é necessário contextualizar a teoria com a realidade, ou seja, buscar trazer exemplos da aplicação prática do conhecimento.
ENTREVISTADO 2: A atuação deve sempre estar dentro do que dispõe a Matriz Curricular, sendo esta minha forma de atuação. Assim, por meio da metodologia de apresentação verbal, relaciono as ações cotidianas com a teoria através de estudos de caso; tem sido possível alcançar os objetivos preconizados pela matriz, alcançado o melhor nível de aprendizado dos alunos/servidores.
ENTREVISTADO 5: Dentro do Sistema Penitenciário goiano algumas doutrinas não dão para ser aplicadas na íntegra devido o histórico da unidade e estrutura; assim, sempre procuro abordar a disciplina em um todo e com exemplos de como e de que forma fica melhor essa doutrina sendo executada em unidade peculiares.
Em análise contínua, buscando, por outra via, verificar o nível de sucesso desta metodologia contextual, averiguou-se a avaliação dos entrevistados quanto aos níveis de interesse e aproveitamento das disciplinas. Na oportunidade, em geral, os entrevistados destacaram um aparente desinteresse dos formandos pelas matérias teóricas e de cunho humanístico, conforme dados abaixo colacionados:
PESQUISADORA: Pela sua experiência, quais são as disciplinas que os alunos têm mais interesse e melhor aproveitamento? E, ao contrário, quais são aquelas que eles têm menor interesse e menor aproveitamento?
ENTREVISTADA 1: Maior interesse nas disciplinas práticas e melhor desempenho nas teóricas.
ENTREVISTADO 2: As disciplinas relativas à parte operacional, dada a oportunidade de atuação prática. E, ao contrário, as que eles têm menor interesse e menor aproveitamento são as disciplinas teóricas. Isto se dá, na maioria dos casos, pela dificuldade em correlacionar a atividade teórica com a prática.
ENTREVISTADA 3: Pela minha experiência, a maioria está interessada nas aulas práticas. Ministro aulas há 6 anos... Vejo muito interesse também na área de cartório. E, ao contrário, as que eles têm menor interesse e menor aproveitamento são nas de reintegração social, mas pelo fato de desconhecerem.
ENTREVISTADO 4: O maior interesse sempre recai nas disciplinas operacionais e, por consequente, aumenta o aproveitamento. Busco mudar isso, apresentando uma aula com exemplos reais, vídeos, depoimentos e o velho e bom senso de humor. Credibilidade institucional e domínio na matéria também ajudam a atrair a atenção. E, ao contrário, as que têm menor interesse e menor aproveitamento são sempre o conteúdo da matriz curricular [teóricas]. Neste sentido, busco inovar, apresentado exemplos reais, histórias verdadeiras sobre o sistema prisional goiano e brasileiro, evidentemente lincado à disciplina ministrada.
ENTREVISTADO 5: Todas as disciplinas são importantes, mas como o dia a dia de carceragem exige uma praticidade e conhecimento, acaba que as práticas saem à frente. E, ao contrário, as que eles têm menor interesse e menor aproveitamento são as teóricas, principalmente as voltadas ao Direito, pelo motivo que os alunos se vêm sabatinados e exaustos de tanto estudar para o concurso propriamente dito.
ENTREVISTADO 6: Ao meu ver a parte as disciplinas relacionadas à parte operacional chamam mais a atenção dos alunos, uma vez que sonham em ser policiais e desenvolver atividades repreensivas e ostensivas. No entanto, quando passam a conhecer e estrutura orgânica do DGAP – Diretoria Geral de Administração Penitenciária, passam a ter uma nova visão da instituição e despertam interesse também para o potencial das funções de gestão. E, ao contrário, as que eles têm menor interesse e menor aproveitamento são disciplinas relacionadas à parte administrativa e à parte burocrática.
A partir das informações destacadas acima, verifica-se a confirmação da hipótese acerca da necessidade das estratégias que possibilitem aos formandos não apenas correlacionar conteúdos, mas, primordialmente, encontrar aplicabilidade aos conhecimentos teóricos-humanísticos na lida profissional. Com isso, contextualmente, ao avaliar as balizas de profissionalização dos servidores em Góias, destaca-se o desafio de superar o dissenso entre o sistema prisional real em face a um sistema prisional forjado pelos marcos normativos do processo de execução penal.
Fala-se aqui em sistema forjado porquanto lastreado em uma “dissonância entre o seu comportamento normativo e o seu comportamento real” (SILVA; ASSIS, 2020, p. 261), ou seja, apesar de haver um culto à principiologia humanista a nível estratégico, observa-se não haver mecanismos de mobilização e reflexão contextual e aplicada sobre os direitos humanos, inclusive como forma de afirmar a sua essencialidade e aplicabilidade dentro das rotinas prisionais.
Nesse sentido, avançando nas reflexões, propôs-se uma análise em relação à adequação do curso de formação frente ao nível de preparação dos profissionais para manejar os procedimentos e conduzir as rotinas prisionais. Quanto ao nível de suficiência da formação, avaliam os entrevistados, no ponto, que:
PESQUISADORA: Considerando a realidade do Sistema Prisional goiano, você acredita que a grade do curso atende as necessidades de formação dos profissionais para lidar com as rotinas carcerárias? Por quê?
ENTREVISTADA 1: Não, porque a atual grade não traz uma proposta para uma formação crítica e humanitária do servidor. Se levarmos em consideração que a ressocialização, ao lado da segurança, é um dos pilares mais importantes da execução penal, podemos perceber que temas importantes estão sendo deixados de fora, exemplos: alternativas penais, monitoramento eletrônico, racismo estrutural, misoginia, os diferentes segmentos religiosos e culturais, atendimento ao público e ética profissional. Outro apontamento que faço é com relação à disciplina “Gerenciamento de Crises”, pois, também levando em consideração que 90% das alterações no cárcere se dão por pequenos conflitos, e que a capacidade de diálogo do servidor é essencial para que o conflito seja solucionado ou agravado, é necessário incluir a disciplina anterior ao gerenciamento de crises, a saber, “Mediação e Conciliação de Conflitos”, dando-lhe o devido destaque na atuação penitenciária.
ENTREVISTADO 2: É uma grade bastante ampla. Neste sentido, entendo que seria necessário a ampliação da carga horária do curso para, no mínimo, 700 horas-aula. Com isso, seria possível a realização de um acompanhamento mais pormenorizado dos novos servidores em uma etapa de aprendizado prático melhor dirigida. Neste sentido, seria possível ainda buscar a chancela legal para que o curso de formação profissional tivesse caracterização de formação lato sensu.
ENTREVISTADA 3: Não, ainda deixou a desejar. Acredito que deveria constar algumas matérias com procedimentos cartorários, que foi retirada da grade e diluída em outras disciplinas, o que ficou extremamente confuso; e o cartório, na minha opinião, é uma das seções mais importantes dentro de uma Unidade Prisional.
ENTREVISTADO 4: Em parte ela atende, mas devemos profissionalizar e aprimorar o conteúdo pedagógico.
ENTREVISTADO 5: Acompanhando várias formações com feedback pós-formação, noto que estamos investindo bastante na formação, mas a logística e arquitetura de algumas unidades não propiciam a prática dos ensinamentos.
ENTREVISTADO 6: Sim, a troca de experiência e a dedicação dos professores supera algumas mazelas. É válido dizer que sempre que pudermos aprimorar conhecimentos a Polícia Penal ganhará mais. Através dos anos, nota-se de forma bem clara e evidente a evolução do Sistema Penitenciário que implica nas melhores condições de trabalho para o próprio servidor.
Foram ainda apresentadas indagações para aferição da visão dos servidores entrevistados no tocante à sua experiência e visão sobre o processo de ministrar aulas no cursos de formação, sendo ainda questionados sobre a sua responsabilidade pessoal para a implementação de melhorias na gestão prisional. No ponto, destaca-se que:
PESQUISADORA: Como tem sido a sua experiência em participar dos cursos de formação? Como avalia a importância de seu papel para a melhoria da gestão prisional?
ENTREVISTADA 1: Um misto de emoções. Claro que há a gratificação gerada pela experiência da troca de conhecimentos com os discentes, mas há uma frustração em perceber que o processo de formação é prejudicado pela falta de estrutura adequada, material didático adequado, carga horária adequada e docentes preparados adequadamente. [Quanto à importância na melhoria da Administração Prisional] Essencial.
ENTREVISTADO 2: Tem sido uma experiência extremamente importante para meu processo de crescimento e aperfeiçoamento profissional. A atuação enquanto docente proporciona a quem ensina uma ampla possibilidade de aprendizagem, ao passo que se tem, na prática, durante tais instruções uma excelente oportunidade para troca de informações, experiências e conhecimentos. [Quanto à importância na melhoria da Administração Prisional] Extremamente importante. A referência de um bom profissional está naqueles que o formaram, instruíram, prestaram monitoria. Deste modo, meu papel enquanto servidor que produz, administra e instrui é de vital importância para o sucesso da minha instituição.
ENTREVISTADA 3: Como profissional eu me engrandeço participando do curso de formação. É também uma satisfação pessoal passar para aqueles que estão entrando o quão honrosa é a nossa profissão e o quanto ela é importante para a sociedade, e que a visão que a maioria tem do Sistema Prisional não corresponde à verdade. Gosto de passar o meu encantamento, a minha vontade de fazer sempre melhor e, ao mesmo tempo, como profissional, eu aprendo muito mais do que ensino. [Quanto à importância na melhoria da Administração Prisional] Tenho papel fundamental, tendo em vista que sou multiplicadora, tenho influência, exerço e exerci diversas funções dentro do Sistema Prisional. Tenho o dever e a obrigação de contribuir para a melhoria do Sistema; temos que ter responsabilidade quanto ao que estamos influenciando; sei que somos vitrines e tenho muito orgulho de ser Policial Penal. Tento desenvolver o meu trabalho da melhor maneira possível.
ENTREVISTADO 4: Lamentável. Atualmente nossa Escola (ESAP) foi desmontada e sem estrutura mínima para um boa formação prisional. A situação é gravíssima, na medida em que uma boa formação é primordial para a construção de um profissional que consiga desempenhar de forma satisfatória seu trabalho. [Quanto à importância na melhoria da Administração Prisional] Penso ser de vital importância, uma vez que cada Policial Penal, na condição de professor e instrutor, tem sua responsabilidade aumentada em relação ao sistema prisional como um todo. Por ser formador de opinião e quem, em tese, poderá servir de exemplo a todos os demais colegas, bem como na formação de cada servidor.
ENTREVISTADO 5: Procuro sempre inovar e trazer novas doutrinas; ver os frutos desse trabalho é muito gratificante, salientando que as diretrizes agora são voltadas para formação de policiais. [Quanto à importância na melhoria da Administração Prisional] A Academia de Formação/Qualificação é a porta de entrada para novos policiais e para educação continuada para os que já estão há tempos; logo, a responsabilidade de estar sempre formando novos policiais e qualificando os que já estão torna-se uma responsabilidade bem grande.
ENTREVISTADO 6: O Curso de Formação atual, referente ao concurso de 2019, traz consigo algumas inovações, tais como a instrução dos novos Policiais Penais quanto aos procedimentos cartorários e administrativos, e possibilitando aos servidores um entendimento quanto à Gestão do Sistema Penitenciário. É salutar que a carga horária do curso possibilite uma melhor formação, podendo ser repassado mais conhecimentos e acompanhamento nos primeiros passos dos novos Policiais Penais no início de suas atividades. O fato de o curso de formação contar com servidores efetivos da casa traz também a troca de conhecimento e experiências empíricas adquiridas através dos trabalhos prestados pelos professores, tanto na área administrativa, quanto na área operacional. [Quanto à importância na melhoria da Administração Prisional] Trabalhando com seriedade, honestidade, transparência e ética, dando exemplo positivo, mostrando o comprometimento com a administração pública independente da função exercida.
Em sequência, a fim de avaliar, a nível propositivo, os principais desafios para a reestruturação das carreiras dentro do corpo da Polícia Penal, buscou-se coletar propostas dos profissionais entrevistados que apontaram:
PESQUISADORA: A seu ver, quais são os principais desafios para reestruturação e melhoria da carreira dentro dos quadros da Administração Prisional?
ENTREVISTADA 1: A meu ver, o maior desafio para a reestruturação e melhoria da carreira está no próprio modelo da gestão da administração penitenciária goiana, na medida que as funções de comando, culturalmente, vêm sendo desempenhadas por pessoas que ocupam esses cargos, sobretudo, por critérios políticos, causando grandes prejuízos para servidores e população carcerária já que a falta de preparo técnico, somado ao apadrinhamento político, cria um ambiente engessado e ineficiente. A enorme influência política na gestão penitenciária goiana acaba por corromper esta instituição de Estado, dando-lhe características de instituição de Governo. Se observa uma gestão voltada essencialmente para a adoção de ações emergenciais e de curto prazo, visando prioritariamente gerar propagandas positivas para o Governo e, consequentemente, a manutenção dos cargos comissionados, deixando de lado medidas de longo prazo necessárias para um real avanço da carreira, tais como: gestão adequada e eficiente de dados e de pessoas; produção e formalização do conhecimento; pesquisas e avaliações dos resultados – elementos fundamentais para produção de planejamento estratégico nas diversas áreas de atuação da administração penitenciária.
ENTREVISTADO 2: O desafio principal está na melhoria da formação dos novos profissionais, bem como na necessidade de formação continuada dentro da perspectiva construtiva do saber e do aperfeiçoamento profissional. Os estudos da alta gestão devem ser prioridade para os quadros de gestores, melhorando deste modo o processo de gestão e, por conseguinte, toda atividade desenvolvida pela Polícia Penal. No que tange à formação dos novos servidores, entendo ser extremamente necessária a atuação de profissionais como instrutores que tenham passado por um alinhamento pedagógico e didático, para facilitar o processo de aprendizagem e formação dos novos policiais.
ENTREVISTADA 3: Em primeiro lugar, assumirmos a nossa casa, a nossa Instituição de fato e de direito. Temos competência para tal, todas as funções devem ser ocupadas por um Policial Penal de carreira, desde a chefia de equipe, passando por diretores de Unidades, Gerentes, Superintendentes até a Diretoria Geral. Somente após isso, poderemos falar em reestruturação, em melhorias para o Sistema, em remuneração, que ao meu ver está sim defasada, precisamos mostrar a importância da nossa profissão dentro do âmbito da Segurança Pública.
ENTREVISTADO 4: Faz urgente consolidarmos nossa identidade institucional, com a criação da Lei Orgânica da Polícia Penal. Desta forma, teremos claramente nossas atribuições e prerrogativas. Outro importante desafio é a ascensão de um Policial Penal na gestão superior da DGAP. Por fim, devemos ter uma gestão de recursos humanos eficiente que possa aproveitar melhor as habilidades de cada servidor.
ENTREVISTADO 5: O Sistema Penitenciário em um todo passa por um período histórico e de transição com a criação da Polícia Penal; temos profissionais gabaritados para executar uma ótima gestão nessa nova fase, porém temos arestas a serem aparadas para uma melhoria de forma macro no sentido de pessoas.
ENTREVISTADO 6: Valorização do Policial Penal. Lei Orgânica que preveja hierarquia entre os servidores, melhoria salarial.
Por fim, acrescentaram alguns dos entrevistados, de forma complementar, considerações pessoais no que diz respeito ao aprimoramento de conteúdos para melhoria dos processos formativos, especialmente quanto ao acréscimos de disciplinas, indicando:
PESQUISADORA: A seu ver, teria alguma disciplina que deveria ser acrescida ou retirada?
ENTREVISTADO 2: Acredito que deveria ser acrescida a disciplina denominada em grande parte dos cursos de ações táticas como “sobrevivência administrativa”. Esta seria uma disciplina com uma ementa voltada a orientar o Policial Penal a atuar administrativamente em ações táticas do cotidiano do policial, empregando o conhecimento administrativo e do regramento legal e infralegal buscando conduzir as ocorrências com o fito de resolver os problemas e não agravá-los.
ENTREVISTADA 3: Acredito que pode ser melhorado e revisado, com vista ao melhor aproveitamento, mas o crucial está na escolha do corpo docente, hoje sem critério algum, apenas na indicação pessoal, desmerecendo quem possui conhecimento e didática. Hoje a distribuição das disciplinas acontecem por amizade. Lamentavelmente em uma escola isso jamais poderia acontecer.
ENTREVISTADO 4: Deveria aumentar a carga horária da disciplina Lei de Tortura e Regras de Mandela e acrescentar uma disciplina voltada à inteligência emocional.
Um dos motes da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), nos termos do art. 38 da Lei Nº 13.675/2018, dá-se com o estabelecimento de medidas para a capacitação e valorização do profissional em segurança pública por intermédio de diretrizes de educação qualificada, continuada e integrada que abordem transversalmente aspectos gerenciais, técnicos e operacionais como forma de promoção de mudanças nas práticas no campo da segurança pública.
Face aos dados compilados e tomando como premissa a necessidade de revisão dos processos de formação policial a partir de um melhor diagnóstico dos mesmos, obtido a partir da combinação da visão dos profissionais com a literatura especializada no tema, a partir deste momento o presente estudo se concentrará na apresentação de algumas premissas analíticas para a construção de novas políticas de formação dos policiais penais que contemplem diretrizes para a reestruturação da carreira, bem como para a melhoria dos serviços penitenciários dentro dos objetivos traçados pelo Sistema Único de Segurança Pública (Susp).
Sob esses auspícios, falar sobre o processo formativo dos profissionais do Sistema Prisional implica a correlata chamada de responsabilidade política e social sobre o estado de coisas inconstitucional e, por conseguinte, uma nova visão lastreada em uma abordagem em que o direito à segurança pública seja posto com integridade política e compromisso com o projeto humanista e democrático de sociedade (SULOCKI, 2007).
Nesse eixo de considerações, destaca-se o desafio de suplantar o “isomorfismo reformista” (ROLIM, 2006, p. 44) característico das instituições que compõem o Sistema de Justiça Criminal. Com isso, partindo de uma visão constitucionalmente adequada, uma política formativa detém o desafio de conjuntamente estabelecer como meta-alvo a interconexão de objetivos integrando o eixo institucional ao social, de forma a traduzir a partir disto o megadesafio da efetivação de direitos e cidadania por intermédio da concretização do direito à segurança pública.
Partindo do ideário comum de que há um “déficit democrático em matéria de segurança pública” (SULOCKI, 2007, p. 125), observa-se, neste campo, de forma mais premente, a necessidade de arranjos institucionais para o desenvolvimento da capacidade para o enfrentamento de problemas sociais de forma sistêmica e coerente, emergindo, assim, a ideia da governança democrática e participativa aplicada à Segurança Pública como forma de melhor direcionar as políticas de formação dos profissionais.
Para a concreta fruição do direito à segurança, torna-se primordial o desenvolvimento da capacidade de planejamento estratégico alinhado às capacidades executivas, algo que se alinha ao ideal de construção de mecanismos de governança7, notadamente a partir dos instrumentos que possibilitam a experimentação dos mecanismos de accountability democrática. Nesse contexto, a ideia de governança ressalta o delineamento de estratégias para a melhoria da prestação do serviço prisional que gerem aperfeiçoamento da capacidade de resposta estatal a partir de ações dotadas de integridade, confiabilidade e do aprimoramento dos processos regulatórios.
Nesse direcionamento, ressalta-se que para possibilitar a definição de estratégias como o conjunto de diretrizes, objetivos, planos e ações que possam gerar um melhor alinhamento entre as organizações e as partes interessadas, com foco no desempenho de serviços de excelência, parte-se da premissa de que os cursos de formação são as portas de entrada para a construção de arranjos institucionais voltados à construção e à implementação de medidas saneadoras aos problemas penitenciários, denotativos por uma intersecção de crises dadas pela verticalização do cenário de violência e insegurança dentro de um modelo de controle social disfuncionalmente seletivo e dessocializador.
Com isso, se está a reposicionar a formação profissional como uma das ações estratégicas aptas a gerar um bom modelo de polícia, como aquele capaz de suplantar os preconceitos culturais e sociais imbuídos no exercício da função, que conflui para um cenário de ação estatal funcional em prol do atravancamento do processo de erosão democrática. Tal aspecto, contudo, desborda em um secundário desafio a evidenciar que o acúmulo teórico da produção jusfilosófica sobre a educação humanista não adentra no fluxo das rotinas prisionais, de forma contextualizada e aplicada, no sentido de obstar processos formativos desviantes ainda ancorados em racionalidade punitiva e ineficácia estatal.
À vista disto, impõe-se o desafio do estabelecimento de uma nova identidade institucional a partir do delineamento de nova agenda de ações que possibilitem estratégias top-down. Sob esse direcionamento analítico, falar em governança democrática no âmbito do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) implica, em síntese, gerar mecanismos de fortalecimento da cidadania por meio da educação corporativa.
Nesse sentido, é fulcral destacar que uma boa gestão administrativa do problema penal depende da modernização da gestão das instituições de segurança pública a partir da formação e da dotação de recursos humanos em um processo que congregue densidade axiológica e visão crítico-propositiva aos profissionais da segurança pública. Assim sendo,
[...] As discussões acerca da educação corporativa e das políticas públicas para formação dos profissionais de segurança pública deverá estar sempre em processo de ressignificação e articuladas com outras políticas públicas como de saúde, educação e econômica, uma vez que as formações desses profissionais sofrem constantemente influências dos Programas de Governo e dos setores que envolvem a sociedade organizada. Desta forma há uma grande necessidade de avaliar as demandas sociais, a infraestrutura necessária para o desenvolvimento das potencialidades, competências e ir além das estratégias políticas, considerando que a segurança pública é um direito constitucional e deve ser garantido pela administração pública (MELO; CARVALHO, 2019, on-line).
Posto isto, para engendrar medidas que impliquem o engajamento crítico e reflexivo sobre as funções da Polícia Penal, devem os processos formativos ser reposicionados como forma de combate a “sub-ética corporativa” (ROLIM, 2006, p. 38), à medida que engendrem formas de responsabilização institucional no sentido de abarcar um núcleo de ações em direção ao aprimoramento das formas de exercício das atribuições institucionais considerando toda a complexidade do policiamento (RAMSEY, 2020).
Em termos práticos, o referido processo seria uma forma de gerar formas de avaliação crítico-reflexiva sobre a encampação dos discursos punitivos sem a correlata criação de infraestrutura material para o entabulamento da execução da pena e, assim, para o desvencilhamento do atual modelo de desserviço prisional que resulta não apenas no processo de violação de direitos como de evasão democrática.
Assim sendo, a revitalização institucional dentro do paradigma da segurança cidadã direciona-nos a uma ampla revisão dos processos formativos destes agentes públicos, buscando situá-la propriamente como política pública constitucional. Em outros termos, a fixação de novo modelo de políticas públicas de segurança à luz da Teoria das Capacidades Institucionais implica a assunção do poder-dever de otimizar os serviços prisionais a partir da formação de seu corpo de servidores e de, a partir disto, gerar o engajamento para a promoção de transformações sociopolíticas direcionadas à efetivação do direito à segurança.
Nesse mister, devem ser refletidas de forma aplicada e cotidiana todo o núcleo de atividades-base que integram a cosmologia do poder punitivo a fim de se delinear formas de gestão prisional sustentável, isto é, de promover a saída do padrão dualista, incongruente e reativo. Torna-se imprescindível desenhar políticas que possibilitem alçar a administração de conflitos como forma de intervir nas relações conflitivas de modo que caminhem para uma composição na qual todos os atores envolvidos ostentem a qualidade primária de cidadãos (SINHORETTO, 2021, p. 4-6).
Dentro do direcionamento de políticas públicas de segurança8 voltadas aos processos formativos, vistas aqui como prioridades estratégicas dentro de uma abordagem multidisciplinar que alie a dimensão político-administrativa à gestão técnica do conhecimento, é preciso encampar um “modelo de coprodução de segurança pública com legitimidade às balizas de ação comunitária” (ROLIM, 2006, p. 83), encontrando, assim, “espaços de negociação e a construção coletiva dos objetivos a serem perseguidos” (BALLESTEROS, 2012, p. 117).
Dentro desses atributos, vencendo a idiossincrasia dualista de combate ao crime e ao criminoso e, paralelamente, assumindo o núcleo de intangibilidade da educação aos moldes do art. 205 da Carta Constitucional brasileira, a visão do processo educativo-formativo deve ser alargada para contemplar o pleno desenvolvimento da pessoa no sentido de promover, além de sua qualificação para o trabalho, propriamente o seu preparo para o exercício da cidadania ativa.
Assim sendo, dentro do núcleo de reflexões que visam apontar para as transformações do Estado, emerge como imperativo o desenvolvimento de mecanismos de governança participativa para a promoção de uma real gestão democrática dos processos de ensino dos profissionais que atuam no Sistema Prisional.
Considerando a relação dialética entre o ideal de governança para transição democrática e adotando o ideal da governança aplicada à teoria organizacional, propõe-se a introdução de um novo marco teórico-conceitual e processual para orientar os núcleos de ações aplicadas às políticas de formação dos policiais penais no sentido de obstar a sintomática desarticulação de ações no campo – marcado por produção e ações insuficientes e ineficientes – delineando, ao revés, estratégias multissetoriais para gerar intervenções orientadas às pessoas e ao cumprimento de objetivos societais.
Nessa acepção, destaca-se a necessidade de interconexão de projetos e processos no fito de “superar o vazio existente entre o processo de se estabelecer normas sociais e a condução e implementação das decisões tomadas com base nessas normas” (BALLESTEROS, 2012, p. 24).
Destarte, sobrepuja a importância do conceito de Governança Democrática dentro do desenvolvimento institucional, especialmente importante no campo das discussões travadas no sentido da retirada do Estado da posição de agente monolítico para a concretização do direito fundamental à segurança pública. À vista disto, é importante observar que “alcançar os objetivos da governança democrática no sistema de segurança é mais do que a institucionalização de leis e práticas” (BALLESTEROS, 2012, p. 78).
Ao revés, de forma complexa e sistêmica, torna-se essencial incorporar os debates sociológico e criminológico de forma traduzida em ações práticas dentro do ciclo de políticas públicas para o oferecimento de respostas efetivas ao meio social. Por tudo quanto exposto,
A segurança pública seria, a nosso ver, um caso típico de governança de política pública. O Estado, não só por meio de sua polícia, mas de outras estratégias, tanto interorganizacionais quanto intergovernamentais, promove (ou deveria promover) ações que interferem em uma realidade complexa e indeterminada que são o crime e a sensação de insegurança [...] Tratar a polícia como função, dentro da perspectiva de construir-se um novo paradigma para a segurança pública, significa entendê-la como uma entre aquelas ações coletivas que estão sujeitas à influência de outros atores, que por elas se responsabilizam, mas que também sobre elas interferem e decidem [...] Partindo, então, do pressuposto de que a segurança pública – e a ordem que ela enseja – são bens públicos e, portanto, devem ser providos e promovidos pelo Estado, resta-nos perguntar: qual é, pois, o papel do Estado neste novo cenário de múltiplos atores e novas necessidades? [...] Além de democratizar suas próprias formas de policiamento, o Estado deve encarar e enquadrar politicamente as demais formas de prover a segurança, fazendo com que elas se comuniquem entre si e produzam resultados de modo equitativo e efetivo (BALLESTEROS, 2012, p. 64-67, grifo nosso).
Assim sendo, a política de formação dos profissionais que atuam no Sistema Prisional deve funcionar como uma dinâmica operacional para a transição democrática a partir de reformas institucionais de fundo sociocultural e organizacional, promovendo a entrada dos corpos policiais dentro da cultura humanística e democrática por meio da obstaculização da continuidade das políticas com viés autoritário e sua correlata aproximação das políticas sociais de enfrentamento da violência social por meio da inclusão de todos os atores do sistema prisional (RAMALHO, 2002, p. 10-15). Para tanto, torna-se
[...] necessário considerar a necessidade de aprendizado democrático, pois as mudanças no núcleo de direitos decorrem de um processo histórico de apropriação pela sociedade. Assim sendo, a assimilação não é instantânea e demanda práticas diárias tanto do Estado quanto dos cidadãos para que os Direitos Humanos sejam definitivamente difundidos no ordenamento jurídico e na sociedade. Nesse ponto reside a necessidade de engajamento dos cidadãos no controle e ajuste das práticas estatais em todos os três poderes instituídos – trata-se da accountability democrática. [...] A accountability democrática exige o envolvimento dos cidadãos, especialmente em momentos de descrédito estatal (SILVA; ASSIS, 2020, p. 261-264).
Na busca por arranjos e instrumentos de accountability, destaca-se não apenas o necessário dever de consolidar aprendizados democráticos como forma de obstar o insulamento institucional com baixa abertura aos atores sociais e o alto custo da descontinuidade administrativa, mas igualmente o dever de apresentar e fundamentar publicamente os processos de tomada de decisão como forma de controle, discussão, avaliação crítica e exposição pública de fatos e fundamentos como forma de, deveras, se obter decisões verdadeiramente coletivas (RACHED, 2021, p. 198-202).
A nosso ver, uma oportunidade concreta de promoção da efetivação do direito à segurança pública à luz dos princípios da democracia participativa e da vedação ao retrocesso institucional, dentro da janela de oportunidade dada pela estruturação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) para o delineamento de novas políticas de formação policial, dá-se a partir do engajamento e do incentivo à participação social integrada dos múltiplos atores e pesquisadores sobre a execução penal no Sistema Integrado de Educação e Valorização Profissional (Sievap), notadamente por intermédio da construção de redes de discussão e divulgação do conhecimento, como forma de gerar, compartilhar e disseminar experiências no campo da segurança, como por meio da recente previsão dos Laboratório de Inovação9.
Nesse sentido, o estabelecimento de diálogo entre a sociedade civil e os profissionais de segurança pública, a nível estratégico e operacional, detém potencial de estabelecer novos matizes de ação comunitária, bem como uma nova forma de vinculação dos indivíduos com o Estado, garantindo como resultado a accountability sobre os resultados porquanto “a democracia política é a segurança pública” (SERRA; SOUZA; GUSSO, 2016, p. 162).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente artigo, apresentou-se reflexões sobre os desafios para a transição democrática no campo da Segurança Pública, enfatizando-se o âmbito da promoção de mudanças nos processos de formação e na postura dos profissionais que atuam face ao Sistema Prisional para sua inserção em um ambiente regido pelos princípios humanitários e democráticos.
Como forma de se promover a efetivação do direito fundamental à segurança pública, focando na gestão de pessoal, efetuou-se a localização dos principais desafios para a instrumentalização de um modelo de segurança cidadã. Por intermédio da aplicação de entrevistas com gestores prisionais e com professores dos cursos de formação dos policiais penais em Goiás, desenvolveu-se uma análise institucional e conjuntural sobre os cursos de formação abarcando suas características teóricas, metodológicas e os correlatos desafios para a formação de servidores como forma a torná-los aptos a melhor lidarem com problemas penitenciários.
Com isso, partindo da visão da governança aplicada à segurança pública, como forma de conectar a dimensão política e administrativa e melhor direcionar os esforços para formação de uma agenda para construção de políticas públicas de formação dos policiais penais, considerando aspectos estruturais, operacionais e principiológicos, apresentam-se alguns possíveis caminhos de abertura e novos espaços de participação social efetiva como pressuposto sem o qual não se concretizará o almejado modelo de segurança cidadã.
À vista disto, considerando-se as limitações da presente pesquisa, à título de considerações finais, aponta-se a governança democrática dentro dos processos formativos constitucionalmente adequados como um mecanismo para sedimentar novas formas de interação e conexão entre cidadãos e corpos policiais, gerando o necessário engajamento social para a promoção de transformações sociopolíticas no âmbito da janela de oportunidades dada a partir da criação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp).
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SOUZA, R. S. R. Estado, política e justiça: reflexões éticas e epistemológicas sobre Direitos, Responsabilidades e Violência Institucional. In: MAGALHÃES, J. L. Q. de; SALUM, M. J. G.; OLIVEIRA, R. T. (Orgs.). Mitos e verdades sobre a justiça infanto juvenil brasileira: por que somos contrários à redução da maioridade penal?. v. 1. Brasília: Conselho Federal de Psicologia; CONANDA, 2015, p. 78-92.
SULOCKI, V. A. de B. C. G. de. Segurança Pública e Democracia: aspectos constitucionais das políticas públicas de segurança. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
ANEXO A – MATRIZ CURRICULAR DO CURSO DE FORMAÇÃO DENTRO DA ADMINISTRAÇÃO PRISIONAL EM GOIÁS
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Fonte: Diretoria-Geral de Administração Penitenciária do Estado de Goiás, 2021.
Dentro do modelo de segurança cidadã observa-se precipuamente que o desenvolvimento humano sustentável se dá pela promoção de convivência segura por intermédio do fomento a uma cultura de paz pela via do combate de ameaças à vida (enfrentamento da violência e da criminalidade) e da proteção às vulnerabilidades das possíveis vítimas e dos autores (PNUD, 2016).↩︎
Ao se promover uma abordagem socioinstitucional da Administração Penitenciária, almeja-se apresentar as características objetivas de estruturação do órgão com foco nos processos e procedimentos associados à gestão de pessoal. Assim sendo, apresentar-se-á o perfil dos profissionais que a compõe, seus desafios e suas expectativas como forma de evidenciar a importância e o papel dos policiais penais como atores institucionais para democratização do Sistema de Justiça Criminal.↩︎
No tocante ao princípio da juridicidade, destaca-se que a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) estabelece dentro de sua principiologia, condensada no art. 4º da Lei Nº 13.675/2018, o integral respeito ao ordenamento jurídico e aos direitos e às garantias individuais e coletivas; a proteção dos direitos humanos; a promoção da cidadania e da dignidade da pessoa humana e a participação e o controle social.↩︎
Nesse mister, é fulcral que ocorram direcionamentos de rearranjo institucional em direção não apenas à otimização dos recursos materiais, humanos e financeiros das instituições e da proteção, à valorização e ao reconhecimento dos profissionais de segurança pública tal como previsto no art. 4º da Lei Nº 13.675/2018, mas primordial e precipuamente a um comprometimento com o fortalecimento da cultura de direitos humanos como único discurso institucional legítimo.↩︎
Consoante disposto no art. 39 da Lei Nº 13.675/18: “A matriz curricular nacional constitui-se em referencial teórico, metodológico e avaliativo para as ações de educação aos profissionais de segurança pública e defesa social e deverá ser observada nas atividades formativas de ingresso, aperfeiçoamento, atualização, capacitação e especialização na área de segurança pública e defesa social, nas modalidades presencial e a distância, respeitados o regime jurídico e as peculiaridades de cada instituição”. Para mais, nos termos do § 1º do supracitado artigo, destaca-se ainda que “a matriz curricular é pautada nos direitos humanos, nos princípios da andragogia e nas teorias que enfocam o processo de construção do conhecimento”.↩︎
No ponto, os entrevistados relataram passagens em diversos cargos/funções de coordenação, gerência e supervisão de unidades prisionais dentro do estado, indicando uma gama diversificada de experiências profissionais dentro da Administração Penitenciária em Goiás. Há relatos de passagens dentro das seguintes estruturas: Escola Superior de Administração Penitenciária; Gerência de Transportes; Gerência de Planejamento; Ouvidoria; Superintendência de Reintegração Social e Cidadania; Núcleo de Custódia; Grupo de Operações Penitenciárias e, ainda, Superintendência de Segurança Penitenciária. Com isso, considera-se que referidos depoimentos são capazes de, conjuntamente, relatar uma visão global e sistêmica acerca do funcionamento do sistema prisional.↩︎
Neste trabalho, adota-se o conceito normatizado de governança dado pelo Decreto Nº 9.203, de 22 de novembro de 2017, que em seu art. 2º, inciso I, estipula que considera-se governança pública o “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade”, sendo seus princípios essenciais à ideia de instituição de “capacidade de resposta, integridade, confiabilidade, melhoria regulatória e transparência”, nos termos do art. 3º do mesmo instrumento normativo.↩︎
Quanto ao ponto, demonstra-se interessante proceder a diferenciação terminológica das ações em segurança dentro do modelo tradicional e do constitucional-democrático por intermédio da diferenciação terminológica sutil, mas significativa conceitualmente, entre as “políticas de segurança pública” e as “políticas públicas de segurança”. Ressalta-se, assim, que “[...] é preciso ter, de forma nítida, a diferença entre políticas de segurança pública, que representam todo esse agregado de ações estatais vocacionadas a uma visão reducionista sobre violência e criminalidade direcionada às ações combativo-punitivistas pontuais, isoladas e midiáticas. Nesse âmbito, ao largo do tempo, a política de segurança é formulada como estratégia de guerra a ensejar justificação do recrudescimento das estratégias bélicas de controle social como solução definitiva. Por outra via, um novo modelo de se pensar o tema dá-se através das políticas públicas de segurança que, em uma visão ampliativa, sistêmica, aprioristicamente planejada, pensa no direito à segurança de forma maximizada como um direito social-fundamental a ser sistematicamente implementado. Para tanto, é essencial dentro desse viés analítico-compreensivo que as políticas públicas de segurança sejam inseridas dentro da Política Criminal brasileira, que dará de forma ampla e incremental a definição de estratégias de controle de forma constitucionalmente adequada através de um planejamento estratégico no qual se reposicionem formas, níveis de atuação e reformatação de práticas institucionais para readequação da tutela penal, de forma não apenas a obstar a prática e a retroalimentação do crime e da violência social e institucional, mas de gerar políticas de desenvolvimento econômico e humano em zonas periféricas” (GOMES; MIRANDA, 2020, p. 250-251).↩︎
Nos termos da recente Lei Nº 14.129, de 29 de março de 2021, em seu art. 4º, inciso VIII, aparece o Laboratório de Inovação como o “espaço aberto à participação e à colaboração da sociedade para o desenvolvimento de ideias, de ferramentas e de métodos inovadores para a gestão pública, a prestação de serviços públicos e a participação do cidadão para o exercício do controle sobre a administração pública”, estando sua ação pautada, nos termos do art. 45, na colaboração interinstitucional e com a sociedade; no fomento à participação social e à transparência pública; no incentivo à inovação; no apoio às políticas públicas orientadas por dados e com base em evidências, a fim de subsidiar a tomada de decisão e de melhorar a gestão pública; no estímulo à participação de servidores, de estagiários e de colaboradores em suas atividades; e na difusão de conhecimento no âmbito da administração pública.↩︎