EDIÇÃO ESPECIAL - VOLUME 16

QUALIFICAÇÃO E POLÍTICA PENITENCIÁRIA: O CURRÍCULO A SERVIÇO DA ORDEM E DA DISCIPLINA NO CÁRCERE

Stephane Silva de Araujo

Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas. Atua no Ministério da Justiça e Segurança Pública como Especialista Federal em Assistência à Execução Penal - Pedagoga, desde 2009. Atualmente é gestora da Escola Nacional de Serviços Penais.

País: Brasil Estado: Distrito Federal Cidade: Brasília

E-mail: stephaneslv@gmail.com ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0730-7139

Maria Cecilia Lorea Leite

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-Doutorado na Universidade Paris 8. Professora da Faculdade de Educação - Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Coordenadora do Laboratório Imagens da Justiça (UFPel).

País: Brasil Estado: Rio Grande do Sul Cidade: Pelotas

E-mail: mclleite@gmail.com ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9197-2299

Contribuição de cada autora: Stephane Silva de Araujo contribuiu com concepção, pesquisa, debate e escrita. Maria Cecilia Lorea Leite contribuiu com orientação, debate, escrita e revisão.

RESUMO

As produções científicas sobre o sistema penitenciário apresentam-se em quantidade suficiente para problematizar suas contradições. Não obstante, pouco se discute sobre os servidores que lá atuam e sobre a qualificação profissional que acessam. Assim sendo, este artigo lança luz a um prisma ainda sombrio. Pretende-se, por meio de um estudo de caso, demonstrar que os processos formativos dos servidores que atuam em um sistema penitenciário mais repressivo tendem a privilegiar uma concepção curricular voltada à manutenção da ordem e da disciplina. Dessa maneira, ao observar os cursos realizados pela Escola Nacional de Serviços Penais, entre 2013 e 2019, evidencia-se que há predominância do eixo de formação “Segurança e Disciplina”. Considera-se, desse modo, que, a despeito da política curricular vigente, as ações educacionais desenvolvidas privilegiam a manutenção de protocolos que primam pela neutralização dos apenados, em convergência com a política de controle criminal instituída na sociedade.

Palavras-chave: Escola Nacional de Serviços Penais. Servidores das Carreiras Penais. Sistema Penitenciário Federal. Currículo.

ABSTRACT

QUALIFICATION AND PENITENTIARY POLICY: THE CURRICULUM AT THE SERVICE OF ORDER AND DISCIPLINE IN PRISON

Scientific productions about the prison system are presented in sufficient quantity to problematize their imbroglios. Nevertheless, little is discussed about the employees who work there and about the professional qualification they access. Thus, this article sheds light on a still gloomy prism. Through a case study, it is intended to demonstrate that the training processes of civil servants who work in a more repressive prison system tend to privilege a curricular conception aimed at maintaining order and discipline. Therefore, when observing the courses taken by the National School of Criminal Services, between 2013 and 2019, it is evident that there is a predominance of the “Safety and Discipline” training axis. In this way, it is considered that, in spite of the current curricular policy, the educational actions developed privilege the maintenance of protocols that stand out for the neutralization of the inmates, in convergence with the criminal control policy instituted in the society.

Keywords: National School of Criminal Services. Criminal Career Servers. Federal Penitentiary System. Curriculum.

Data de recebimento: 30/04/2021 - Data de aprovação: 06/09/2021

DOI: 10.31060/rbsp.2022.v16.n0.1514

INTRODUÇÃO

A formação dos servidores que atuam no sistema prisional, de acordo com Miotto (1992), é preocupação constante do Ministério da Justiça e Segurança Pública, desde meados da década de 1970, quando eventos para discutir práticas de gestão penitenciária eram realizados em Brasília, Distrito Federal. Ademais, no pacote de medidas que se apresentavam, como a Política Penitenciária Nacional, é possível visualizar, segundo Miotto (1992), a edição de referenciais de identidade para os servidores, de qualificação para os guardas de presídio, bem como a instituição de importantes órgãos que tratariam do tema posteriormente, como o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e o Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

A despeito do retardamento do Poder Executivo Federal nessa seara, os entes da federação já contavam, a certa altura, com escolas especializadas na formação de seus servidores e propunham referenciais curriculares próprios (MELO, 2018). Além disso, quando possível, acessavam recursos oriundos do Governo Federal, sem maior direcionamento político, para a execução de cursos de qualificação inicial e continuada, fato que carece de produção científica para clarificar a natureza e os detalhes de tais repasses financeiros.

Contudo, com a edição da Lei de Execução Penal N° 7.210, de 11 de julho de 1984 (BRASIL, 1984), tornou-se real a necessidade de aprimoramento profissional do pessoal penitenciário, sobretudo no que concerne à capacitação para ingresso nessa carreira. Mesmo assim, no âmbito do Poder Executivo Federal, são visualizadas ações efetivas que versam sobre a formação dos servidores da execução penal apenas a partir do ano 2000. Em especial, após 2005, a Coordenação de Educação do Depen passou a discutir, conceber e fortalecer ações que ensejaram a emergência da Política Nacional de Educação em Serviços Penais – PNESP (DEPEN, 2005).

Em 2005, por meio da Portaria Depen Nº 39, de 15 de julho de 2005 (BRASIL, 2005), foram instituídos os fundamentos de política e as diretrizes de financiamento para o campo da formação de servidores da execução penal. Com base nessa inovação, 100% dos estados brasileiros passaram a contar com escolas ou núcleos de formação estruturados a partir do aparelhamento de suas sedes pelo Governo Federal (ARAUJO, 2020a). Nesse contexto, emergem também diretrizes curriculares e um guia de gestão para as escolas. Os argumentos que justificassem a necessidade de estruturação de uma escola nacional que articulasse os processos formativos dos servidores do recém-inaugurado Sistema Penitenciário Federal (SPF) ainda eram tímidos.

Considerando desavenças, entraves e desencontros políticos internos que já se arrastavam por quase 30 anos, a concepção da Escola Nacional de Serviços Penais (Espen), segundo Araujo (2020b), toma fôlego nesse novo contexto, sendo instituída em 2012, por meio da Portaria Nº 3.123, de 3 de dezembro de 2012 (BRASIL, 2012). Cumpre salientarmos que, entre a inauguração do SPF e da Espen, os processos formativos dos servidores que atuavam nos presídios federais foram desenvolvidos por instituições externas ao Depen, tal como a Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal.

Em outros termos, é essa mudança de rota, no que se refere à natureza da qualificação dos servidores do SPF, que nos interessa neste artigo. Inicialmente, tais servidores, capacitados por instituições externas, tendiam a participar de capacitações voltadas ao campo policial, desconsiderando a atuação no sistema prisional. Posteriormente, ao contarem com uma instituição educacional própria, objetivava-se o atendimento integral das competências necessárias à atuação no cárcere federal.

Não obstante, ao considerarmos que o sistema penitenciário brasileiro é regido por uma legislação garantidora dos direitos fundamentais da pessoa privada de liberdade, a criação de um sistema penal de exceção ou, como afirma Nunes (2020, p. 101), de um “[...] microssistema de execução penal” inauguraria um desafio para a qualificação de servidores. A Espen, unidade administrativa do Depen, teria que, ao mesmo tempo, atentar aos referenciais curriculares vigentes e atender às necessidades no novel sistema, claramente mais coercitivo.

Estudos já desenvolvidos sobre o tema indicam a existência de um hiato entre os normativos da área e a atuação da referida escola (ARAUJO, 2020a). Este artigo, porém, tem como objetivo demonstrar que os processos formativos dos servidores que atuam em um sistema penitenciário mais repressivo tendem a privilegiar uma concepção curricular voltada à manutenção da ordem e da disciplina no cárcere. Nesse sentido, o artigo aponta, em um primeiro momento, as principais características do SPF, sua finalidade e sua concepção de execução penal. Na sequência, propomos uma compreensão quanto à forma como são desenvolvidas, no seio da administração pública federal, a qualificação e o aperfeiçoamento de seus servidores. Para isso, de forma breve, focalizaremos os elementos de caracterização da Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoal (PNDP), regulamentada pelo Decreto Nº 9.991, de 28 de agosto de 2019 (BRASIL, 2019a) e atualizada pelo Decreto Nº 10.506, de 2 de outubro de 2020 (BRASIL, 2020).

Delimitado esse pano de fundo, centraremos nossa problematização na concepção curricular que emerge de uma Escola de Governo destinada a atender às demandas que um microssistema de execução penal apresenta. A análise do portfólio de cursos desenvolvidos pela Espen possibilita-nos inferir que, em detrimento da Matriz Curricular Nacional instituída pelo Depen, seu currículo se volta à fabricação de identidades profissionais fundamentadas na atuação laboral, a qual está orientada por questões de ordem e de disciplina, elevando o primado da segurança prisional ao primeiro, e talvez único, patamar.

Assim, este artigo ocupa-se do currículo que emerge do contexto de trabalho e que, em certa medida, influencia os processos formativos e rechaça os ditames da PNESP vigente. Consideramos esse cenário ao observarmos que a PNESP e seus textos complementares primam por humanização do ambiente carcerário, por reforço aos direitos da pessoa presa, por práticas que propiciem o desencarceramento e não se apresentem a partir de ações formativas pautadas pelo militarismo, caracterizando-se como policialescas, embora se destinem, em pouco tempo, à recentemente criada Polícia Penal.

O SISTEMA PENITENCIÁRIO FEDERAL OU O MICROSSISTEMA DE EXECUÇÃO PENAL BRASILEIRO

Sobre o SPF, inaugurado em 2006, pouco se fala no âmbito acadêmico (ARAUJO; LEITE, 2013; NUNES, 2020; SANTOS, 2016), o que pode ser justificado pela sua recente criação e pela hermeticidade1 (BRAGA, 2014) que se atribui ao cárcere. As práticas que sistematicamente envolvem o sigilo no ambiente prisional parecem ser ainda mais recorrentes em um sistema considerado de exceção ou, como nos indica Nunes (2020, p. 101), um “[...] microssistema de execução penal”. As diferenças essenciais que levam o autor a caracterizar o SPF de tal modo estão relacionadas às qualificadoras dos apenados, as quais custodiam a necessidade de isolá-los completamente. Isso acarreta o monitoramento ininterrupto por áudio e vídeo, bem como a definição quanto ao prazo de permanência específico, o que o torna um sistema no qual não se deve cumprir a totalidade da pena estipulada.

Em síntese, trata-se de um novo sistema penitenciário, gerido pela União, de segurança supermáxima, baseado no rigor, na restrição de direitos e no isolamento de presos. Inspirado nas supermaxes americanas, esse modelo foi concebido para desarticular organizações criminosas que atuavam dentro dos presídios estaduais brasileiros. (SANTOS, 2016, p. 309).

O microssistema a que nos referimos é composto por cinco unidades “[...] equipadas com aparato de segurança moderno, profissionais capacitados pelos melhores especialistas da área e contando com instalações à prova de motins” (ARAUJO; LEITE, 2013, p. 398), as quais, em linhas gerais, objetivam o isolamento das principais lideranças de grupos criminosos organizados. Nunes (2020, p. 110), porém, vai além ao afirmar que os presídios federais não só foram criados para isolar, mas também para “[...] não permitir que os presos do SPF criem facções, fortaleçam as existentes ou utilizem o presídio federal como home office, tal qual fazem com os estabelecimentos estaduais”. Isso assemelha-se, segundo nosso entendimento e de acordo com Santos (2016), com a concepção de neutralização imposta pelo sistema.

A rotina nas unidades federais é diferenciada, pois até mesmo a arquitetura das penitenciárias contribui para maior austeridade e complexidade dos procedimentos adotados, tendo em vista, sobretudo, a individualização dos espaços.

[...] os presos são mantidos em celas individuais, sob maior controle, com eficiente monitoramento de vídeo de áreas comuns do cárcere, excetuando-se, portanto, as celas, com redução de seu contato com o mundo exterior e, por conseguinte, diminuição da possibilidade da continuidade de atividade criminosa, especialmente o exercício do poder de liderança. (NUNES, 2020, p. 118).

Santos (2016), por sua vez, ao narrar a rotina nesses estabelecimentos, afirma o quanto ela é pautada pela rigidez, pelo rigor dos protocolos de trabalho e pela forma diferenciada de lidar com a pessoa presa.

A rotina no interior dos presídios federais é baseada em normas de extremo rigor. Quando não estão envolvidos em nenhuma atividade externa (aulas, trabalho ou visita), situação extremamente comum para vários internos, os presos permanecem por vinte duas horas dentro da cela, somente saindo para as duas horas de banho de sol. Até mesmo as refeições são feitas dentro da cela.

[...]

Os internos precisam ser algemados para sair da cela, e qualquer movimentação exige a escolta de pelo menos dois agentes penitenciários, devendo o recluso manter a cabeça abaixada durante a movimentação, sendo proibido que olhe para os agentes que o conduzem. (SANTOS, 2016, p. 315).

Outrossim, Nunes (2020) afirma a constância dos direitos fundamentais nesse sistema e admite a possível flexibilização destes em prol de maior segurança e efetividade total do SPF. Essa situação é visualizada, por exemplo, com a flexibilização da inviolabilidade da intimidade dos presos, dos visitantes e dos advogados desde 2007, quando visitas íntimas e sociais em pátio de visita foram proibidas, e as entrevistas com os procuradores passaram a ser monitoradas por áudio e vídeo. Nesse caso, de acordo com Nunes (2020, p. 121), determinados direitos fundamentais não absolutos são flexibilizados, “[...] a fim de que seja cumprida a finalidade do encarceramento, prevalecendo, no caso, a segurança pública, que é, na perspectiva objetiva igualmente um direito fundamental, oriundo do dever de proteção eficiente do Estado”. Todavia, segundo a ótica de Santos (2016), estaríamos frente a uma verdadeira violação dos direitos individuais dos presos, o que caracterizaria a materialização de uma face bastante moderna para a teoria do direito penal do inimigo.

Nesse contexto de verdadeira guerra contra o crime organizado e suas lideranças, um diferencial consistente são os servidores que compõem o quadro funcional desse sistema. Todos os qualificados para ingressar e permanecer nas carreiras atuam de modo profissional, respeitando rígidos protocolos de trabalho (SANTOS, 2016). Não obstante, a natureza de sua atuação e a classificação (jurídica e social) dos apenados que auxiliam a custodiar impõem a necessidade de uma formação especializada para tais profissionais.

Equipes multidisciplinares lotadas em cada unidade prisional observam e executam as prescrições das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos – Regras de Mandela (BRASIL, 2016) e da Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984), no que tange à gestão dos estabelecimentos e de todas as suas nuances. Logo, a rigidez do SPF requer um trabalho diferenciado com relação à adaptação das práticas profissionais costumeiras de pedagogos, assistentes sociais, enfermeiros, odontólogos, terapeutas ocupacionais, entre outros. Na retaguarda desses servidores, e na linha de frente da custódia prisional, os Agentes Federais de Execução Penal, futuros Policiais Penais Federais, também se situam diante do desafio de executar a pena segundo seus ditames legais, incluindo os assistenciais.

Por isso, compreendemos que os conhecimentos da área de Segurança e Disciplina são necessários. Todavia, reforçamos o entendimento das matrizes curriculares, já instituídas pelo Depen, sobre a necessidade de ponderá-los, equilibrá-los, equalizá-los com os demais conhecimentos oriundos do cárcere – necessários à execução digna da pena. Uma unidade prisional não “roda”, como se diz popularmente, apenas com a retórica oriunda da manutenção da ordem e da disciplina. A “cadeia cai” sem a prestação de assistências e a efetivação de direitos.

Observar o cárcere sob esse prisma, incluindo o SPF, reforça o nosso entendimento de que ambos os sistemas, federal e estadual, são regidos pela Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984), pela Constituição Federal (BRASIL, 1988) e por convenções internacionais com as quais o país se comprometeu. É primordial termos em vista esse cenário para que, posteriormente, os dados evidenciados por este artigo sejam problematizados.

A POLÍTICA FEDERAL DE DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL

Embora o objeto deste artigo não cuide de uma perspectiva administrativa voltada ao aperfeiçoamento profissional de servidores, precisamos pontuar que os processos formativos dos servidores das carreiras penais da União são regidos, atualmente, pela PNDP, instituída pelo Decreto Nº 9.991/2019 (BRASIL, 2019a) e atualizada pelo Decreto Nº 10.506/2020 (BRASIL, 2020).

A administração pública federal pauta-se por princípios vinculados à gestão de pessoas por competências, o que acarreta o desenvolvimento profissional dos servidores com base em conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias à realização de cada atividade laboral. Logo, torna-se indispensável a vinculação entre as ações de capacitação e as demandas dos órgãos da administração, a fim de reduzir os gaps de competências que o funcionário público federal demonstra no exercício da função.

Nessa perspectiva, ganham destaque as Escolas de Governo, que passaram a assumir a centralidade na oferta de processos formativos dos servidores federais. O documento normativo federal anterior (Decreto Nº 5.707, de 23 de fevereiro de 2006), em seu art. 4º, disciplinou que essas escolas são “[...] as instituições destinadas, precipuamente, à formação e ao desenvolvimento de servidores públicos, incluídas na estrutura da administração pública federal direta, autárquica e fundacional” (BRASIL, 2006). Em sua estrutura, geralmente, não contam com um corpo docente fixo, mas com servidores que eventualmente lecionam para os colegas de trabalho. Apesar desta análise voltar-se a uma situação contemporânea, não se trata de algo criado recentemente. O Guia de Referência para a Gestão da Educação em Serviços Penais já apontava situação semelhante no contexto penal em 2006, ao indicar que:

No tópico recursos humanos, o ponto mais sensível e delicado a ser enfrentado se refere ao corpo docente das Escolas Penitenciárias. Este, via de regra, é recrutado entre servidores do próprio quadro dos sistemas penitenciários – técnicos e agentes –, os quais atuam, portanto, apenas eventualmente na condição de docentes. A prática se justifica tanto pelo fato da perspectiva de que são recursos humanos qualificados nas especificidades da questão penitenciária – num contexto nacional no qual não existe um saber científico e de formação profissional solidamente orientado para tal dimensão –, como pelo sistema de regularidade e frequência do oferecimento dos cursos, o qual não favorece a constituição de corpos docentes permanentes. Em determinadas ações pontuais ainda se verifica recrutamento de especialistas oriundos de outras instituições. (DEPEN, 2006a, p. 11).

Compreendida a peculiaridade do corpo docente das escolas de serviços penais, podemos observar que as escolas de governo, no âmbito da União, se traduzem em espaços de formação que especializam os servidores em suas respectivas áreas de atuação. Isso porque, tais instituições, performam a partir de temáticas bastante particulares, reduzem custos ao financiarem a hora-aula com valor diminuto e mantêm maior controle sobre o currículo executado, pois este é produzido a partir da influência direta da administração. Desse modo, as Escolas de Governo materializam a PNDP.

Verificamos, por esse prisma, que, particularmente, após a edição do Decreto Nº 9.991/2019 (BRASIL, 2019a), a lógica da PNDP tornou a assumir uma faceta econômica ao ser centralizada e gerenciada no/pelo Ministério da Economia. Atualmente, as Escolas de Governo devem mapear as necessidades de desenvolvimento institucional anualmente, encaminhando-as ao referido Ministério que as aprova ou não, definindo, de tal modo, as ações de capacitação que poderão ser realizadas.

Produz-se, assim, um contexto no qual o servidor tem avaliado desde o seu desempenho no exercício da sua função até a sua participação em ações de capacitação que devem, essencialmente, desenvolver competências que se projetem como comportamentos positivos observáveis no contexto de trabalho. Nesse sentido, instrumentos de gestão são produzidos para inaugurar uma lógica diferenciada na administração pública, renovando-a de acordo com os ditames que emergem da concepção político-econômica neoliberal. Segundo Ball (2010, p. 485), estaríamos diante do “[...] currículo neoliberal de reforma do setor público”, que consiste no exercício de aprender a ser diferente, a se apresentar como o setor privado. Há uma aprendizagem quanto à reorientação do que é público; há a sua reforma, em última medida. Ainda de acordo com o autor, “[...] trata-se da incorporação de novas sensibilidades e valores e novas formas de relações sociais. O setor privado é o modelo a ser emulado e o setor público deve ser ‘empreendedorizado’ à sua imagem!” (BALL, 2010, p. 486).

Consideramos que, a partir da necessidade de requalificar os servidores diante das mudanças sociais, o ambiente carcerário também é impactado com tais alterações. Todavia, uma vez que se trata de um campo ainda fechado e resistente à participação externa, ele acaba não se reestruturando positivamente. Pelo contrário, enfrenta, assim, as mudanças do último quartil do século XX, conforme pontua Garland (2017). Dessa forma, o sistema prisional passa a recrudescer sua lógica considerando o incremento das práticas violentas e criminosas na sociedade atual.

Por esse viés, as identidades produzidas, a partir das intersecções que o cárcere propicia, podem culminar na manutenção de vícios e de uma cultura violenta e segregacionista, historicamente atribuída ao contexto prisional. Posto isso, não se vislumbra ruptura quanto à cultura posta! Tendo em vista a lógica de que nas Escolas de Governo prioritariamente atuam/lecionam os servidores que se destacam no cotidiano de trabalho, percebemos a possibilidade de manutenção das condições laborais.

No que se refere ao sistema prisional, há considerável carência de produções teóricas sobre as disciplinas operacionais vinculadas à rotina de trabalho no cárcere. Logo, identificamos que a transmissão de conhecimentos se dá a partir de uma retórica sedimentada em larga medida pela prática, o que nos leva à afirmativa de Lemgruber:

[...] na transmissão oral entre as gerações de agentes de segurança, reproduzem-se os diferentes “vícios” da cultura prisional. A repetição das ações ao longo do tempo, sem nenhum resultado teórico-metodológico face à ausência de sistematização teórica, propicia a cristalização das “verdades” inquestionáveis diante de qualquer pergunta de um estranho à área. (LEMGRUBER, 2004, p. 329).

Desse modo, reforça-se a autoridade do servidor que é bem avaliado pela administração. Ao ser indicado à função de formador dos novos colegas, o servidor-docente-eventual passa a influenciar o conteúdo, a dinâmica e a qualidade das ações de capacitação ofertadas. Não obstante, vale resgatarmos o entendimento de Lopes (2002), pois, para a autora, a concessão de tal autoridade refletiria nos cursos de formação inicial que, em vez de se pautarem em problematizações e questionamentos quanto às rotinas do cárcere, acabam por se traduzirem em cursos de “informação”, nos quais apenas são repassadas narrativas de situações pretéritas. Essa prática educativa, de acordo com Araujo (2020a, p. 122), “[...] alimenta um sistema viciado e composto por condutas orientadas pela ordem social vigente no estabelecimento penal, não necessariamente condizente com a adequada formação para o futuro trabalho”.

Compreendido o cenário no qual se dá a qualificação e o aperfeiçoamento de servidores federais, e depois de apresentados certos detalhes referentes aos processos formativos de servidores das carreiras penais, torna-se primordial focalizarmos na Escola de Governo, que serve como lócus de análise ao estudo de caso ora empreendido. Assim sendo, abordamos, na seção seguinte, a Espen que atende aos servidores do SPF, observando, em especial, o currículo que emerge das fissuras discursivas e da conotação repressiva de tal sistema.

A CONCEPÇÃO CURRICULAR EMERGENTE EM UMA ESCOLA DE FORMAÇÃO EM SERVIÇOS PENAIS INSTITUÍDA PELO PODER EXECUTIVO FEDERAL

A Espen atende aos preceitos deferidos pela legislação vigente, como apresentamos anteriormente. Entretanto, tendo em vista a realidade na qual se insere, ela assume uma face bastante peculiar assim como o currículo que materializa e as identidades diferenciadas que projeta a partir dele. Dessa maneira, é relevante observarmos essa realidade do ponto de vista curricular, pois, conforme Silva,

O currículo é o espaço onde se concentram e se desdobram as lutas em torno dos diferentes significados sobre o social e sobre o político. É por meio do currículo, concebido como elemento discursivo da política educacional, que os diferentes grupos sociais, especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto social, sua “verdade”. [...] as políticas curriculares, como texto, como discurso são, no mínimo, um importante elemento simbólico do projeto social dos grupos no poder. (SILVA, 2001, p. 11).

Assim, compreendermos a natureza dos processos formativos desenvolvidos pela escola em questão diz bastante sobre o projeto social assumido pelo Governo Federal em torno das identidades profissionais necessárias ao microssistema de execução penal que a Espen se vincula. Ademais, a legislação que rege as carreiras da execução penal, no âmbito do Poder Executivo Federal, impõe que um programa permanente de capacitação, de treinamento e de desenvolvimento seja instituído pelo Depen. Não há, todavia, definição quanto ao tema central desse programa, nem sequer notícias quanto à sua institucionalização2. Diante de sua inexistência até o momento, consideramos que as ações realizadas pela Espen materializam o que se espera dos servidores do SPF, em termos de competências funcionais. Por isso, a natureza dos cursos que essa escola ofertou, entre 2013 e 2019, configura o objeto de análise deste artigo.

Nosso objetivo é demonstrar que os processos formativos dos servidores que atuam em um sistema penitenciário mais repressivo tendem a privilegiar uma concepção curricular voltada à manutenção da ordem e da disciplina no cárcere. Devido a isso, evidenciamos a predominância de ações educacionais com cunho alusivo à segurança penitenciária, em claro atendimento à natureza diferenciada do SPF. Esse indicativo encontra ressonância na fala de Araujo (2020a, p. 241), que afirma haver relação entre essa dominância e os “[...] regimes de verdade culturalmente estabelecidos” no campo prisional. Adicionalmente, a autora aponta que

[...] torna-se clara a incidência de conhecimentos oriundos do sistema prisional nas ações educacionais pela terminologia adotada nesses. Há evidência quanto a forte presença de um caráter técnico às ações. No entanto, não é possível perceber a presença de referenciais consistentes que o fundamentem, pelo menos até 2017. Esse indicativo reforça o entendimento no sentido de carência de produção científica sobre os temas desse campo. A formação profissional para ao sistema penitenciário é pouco estudada e, sobre as competências do servidor, menos ainda se produz no Brasil. Talvez emerja daí a dificuldade e, por vezes, o silenciamento no que concerne às referências bibliográficas mobilizadas para a produção dos materiais didáticos e pedagógicos dessa Escola. (ARAUJO, 2020a, p. 241).

Essa assertiva, somada às concepções de Garland (2017), Lemgruber (2004) e Lopes (2002) e aos dados produzidos neste estudo, evidencia que a cultura constituída no cárcere tende a recrudescer a execução da pena. A política de neutralização dos indivíduos, orientada pelos índices elevados de criminalidade, ultrapassa os muros da prisão e incide diretamente nas ações educacionais voltadas à qualificação inicial e permanente dos servidores. Particularmente, na escola focalizada, observamos que a cultura do SPF é reforçada por meio das ações que visam ao aperfeiçoamento de Agentes, Especialistas e Técnicos que atuam nas penitenciárias federais.

Não obstante, alguns cursos ofertados aos entes da Federação também podem evidenciar o controle sobre o conteúdo do que é difundido, a manutenção de determinadas práticas de trabalho, o recrudescimento da execução penal no país, os sentidos atribuídos às identidades profissionais e à política penitenciária privilegiada pelo Depen, órgão ao qual a Espen está submetida. Nesse sentido, segundo Araujo,

[...] a política de formação definida pelo Departamento Penitenciário Nacional procura localizar/direcionar/produzir esse sujeito servidor penitenciário dentro do campo em que deverá atuar, a partir da normatização de processos de formação que se relacionem com o exercício prático da função. (ARAUJO, 2020a, p. 251).

Assim, compreendemos que a cultura existente no cárcere, e reforçada pelo Depen, reverbera e incide na qualificação de servidores, uma vez que assenta significações em torno das suas identidades, da caracterização dos presos, da concepção da rotina e da relevância das atividades laborais desenvolvidas no cárcere. Os sujeitos que acessam à prisão são atravessados por essa cultura peculiar e, ao lecionarem eventualmente disciplinas que apresentam relação com sua “melhor” atuação profissional, reiteram o nosso entendimento de que o que eles fazem é adequado; logo, deve ser replicado.

Essa questão torna-se mais evidente ao desenvolvermos um estudo que tangencia o SPF, pois, de acordo com Barcelos, Duque e Penteado Junior (2021, p. 1), “[...] o sistema federal é entendido como um artefato cultural, portanto, uma instituição arquitetônica-legislativa, com um certo currículo e pedagogia cultural”. Isso nos faz lembrar que os servidores das carreiras penais que eventualmente lecionam, e que nem sempre se despem dos caracteres que os conformam naquele espaço, podem recontextualizar o discurso carcerário em sala de aula para além do que ditam as políticas ou os referenciais curriculares oficiais.

Dessa forma, é fundamental analisarmos os processos formativos, pois, conforme Meyer (2012, p. 50), a partir deles, “[...] os indivíduos são transformados ou se transformam em sujeitos de uma cultura”. No caso particular do sistema penitenciário, a Política de Educação em Serviços Penais, projetada em prol da alteração do status quo carcerário, apresenta-se em clara contraposição, pelo menos no que se refere ao currículo da Espen, uma vez que reitera o primado da segurança prisional em detrimento dos demais saberes que emergem da prisão.

Focalizando cerca de 250 cursos de curta e média duração realizados3 pela Espen, entre 2013 e 2019, observamos clara predominância do eixo voltado à “Segurança e Disciplina”, conforme já havíamos apontado anteriormente. Registramos que a categorização dos cursos foi desenvolvida, nesta análise, a partir dos eixos definidos pela Matriz Curricular Nacional para Educação em Serviços Penais (DEPEN, 2006b). Naquele documento seminal, sobre a qualificação dos servidores das carreiras penais, propunha-se que houvesse a articulação entre quatro eixos formativos, de modo a atender à complexidade da atuação profissional no cárcere. Assim, indicava-se que a capacitação dos servidores deveria ser organizada em torno de temas correlatos a: Administração Penitenciária; Saúde e Qualidade de Vida; Segurança e Disciplina; e Relações Humanas e Reinserção Social.

Embora a referida Matriz Curricular Nacional tenha sido revisada em 2017, os eixos de formação prioritários, instituídos pelo referencial de 2006, parecem-nos mais adequados a uma qualificação uniforme e complementar do servidor, ao considerar as finalidades da pena de retribuir o crime cometido, evitar o cometimento de outro e recuperar o apenado (BOSCHI, 2006). Ao rol de eixos definidos na Matriz de 2006, adicionamos o eixo “Espen”, que abrigou cursos com ênfase pedagógica ou voltada à gestão da referida escola, como mostra o Gráfico 1 a seguir.

Gráfico 1 – Cursos de curta e média duração realizados pela Espen por eixo de formação

[CHART]

Fonte: Elaboração própria com base em Araujo (2020a).

A partir do Gráfico 1, é possível observarmos o quanto o eixo “Segurança e Disciplina” é ratificado no decorrer dos anos. Todavia, devemos advertir que, em alguns períodos, tal como em 2017, a temática fortemente abordada em seu interior relacionava-se à “Inteligência Penitenciária”, área em evidente ascensão. É relevante indicarmos que, a partir de 2015, a Espen passa a profissionalizar suas ações, ao ofertar alinhamentos pedagógicos e qualificação aos servidores que acompanham seus cursos na qualidade de gestores; por conta disso, inserimos um eixo voltado a tais práticas educacionais.

Além disso, pontuamos o evidente descaso com temáticas referentes aos eixos “Saúde e Qualidade de Vida” e “Relações Humanas e Reinserção Social”, o que denota a existência do clássico embate entre segurança e reintegração, dualidade presente no cotidiano do cárcere e reiterada no âmbito da capacitação de servidores. Dessarte, sinalizamos que o eixo “Administração Penitenciária” tem gradações diferenciadas conforme o sistema prisional brasileiro se apresente, pois, diante de rebeliões, chacinas ou outros fatos que evidenciam a carência de procedimentos nas prisões, a Espen passa a ser convocada a ofertar cursos de gestão prisional aos estados, como feito entre os anos de 2015 e 2016 e em 2018.

Assim, notamos que a demanda interna do SPF direciona os processos formativos da Espen e que há uma forte tendência ao atendimento às demandas externas. Isso posto, os dados corroboram a concepção de Garland (2017) quanto à emergência de uma cultura mais evidente de controle e repressão à criminalidade nos últimos anos. Um exemplo disso pode ser visualizado no pico de cursos da área de “Segurança e Disciplina”, ofertados entre 2017 e 2018, visto que coincidem com a divulgação do Plano de Segurança Pública do Governo de Michel Temer e, por conseguinte, com um Grupo de Trabalho instituído no âmbito das forças de segurança da União, com foco na oferta de qualificação aos entes da Federação.

Novamente, o eixo “Segurança e Disciplina” é privilegiado, ao considerarmos, sobretudo, a expertise da Espen e o preparo de seus servidores-docentes-eventuais oriundos do SPF. Já os anos com quedas acentuadas nessa temática coincidem com a oferta de cursos de formação profissional para a investidura nas carreiras de Agentes, Especialistas ou Técnicos que, em regra, mobilizam relevante aparato no âmbito da escola analisada, como veremos adiante. Todavia, nesses anos com quedas acentuadas também estaremos diante da dominância de temas alusivos ao eixo “Segurança e Disciplina”.

Em se tratando da discussão histórica que paira sobre a categorização dos serviços penais como um campo integrante ou não da segurança pública (MELO, 2018), os órgãos da execução penal foram reconhecidos como tal em 2018, por meio da Lei Nº 13.675, de 11 de junho de 2018 (BRASIL, 2018), que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).

Ademais, como desfecho para a referida celeuma, há o recente reconhecimento constitucional das polícias penais federal, estaduais e distrital. Entretanto, no que se refere ao SPF, o Poder Executivo ainda não regulamentou a Polícia Penal Federal. Logo, os processos formativos de seus servidores não sofreram alterações após a publicação da Emenda Constitucional Nº 104, de 4 de dezembro de 2019 (BRASIL, 2019b). Mesmo diante do imbróglio referente ao atual regime jurídico dos servidores do SPF, os dados evidenciados neste artigo apontam para uma qualificação profissional voltada prioritariamente à segurança prisional, inclusive antes da edição da referida Emenda Constitucional, conforme depreendemos da análise quanto aos eixos de formação privilegiados nos cursos de formação inicial dos Agentes Federais de Execução Penal (Gráfico 2, a seguir) e dos Especialistas e Técnicos (Gráfico 3).

Gráfico 2 – Disciplinas ofertadas em cursos de formação inicial para Agentes Federais de Execução Penal por eixo de formação

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Fonte: Elaboração própria com base em Araujo (2020a).

Cumpre salientarmos que, a cada novo concurso para o cargo de Agente Federal de Execução Penal, uma nova proposta de matriz curricular é produzida. Diante dos dados gerados, verificamos que, desde a primeira qualificação ofertada aos Agentes, o reforço foi dado à identidade do promotor da segurança pública, servidor que se coloca em claro embate com a criminalidade organizada, o que demanda uma capacitação fortemente concentrada no eixo “Segurança e Disciplina”. No que concerne aos demais eixos, chama-nos atenção que o SPF não possui carreira administrativa; logo, os próprios Agentes necessitam de conhecimentos na área. Em paralelo, tem-se certo cuidado com as questões atinentes às relações interpessoais entre os servidores. As disciplinas vinculadas à “Saúde e Qualidade de Vida” tendem a ser menos evidenciadas, uma vez que as penitenciárias federais possuem equipes próprias para o tratamento dos apenados. Não obstante, a qualificação dessas equipes, no decorrer dos anos, também tem sofrido uma acentuada tendência ao reforço de questões de “Segurança e Disciplina”. A seguir, apresentamos o Gráfico 3, o qual mostra as disciplinas ofertadas em cursos de formação inicial para Especialistas e Técnicos por eixo de formação.

Gráfico 3 – Disciplinas ofertadas em cursos de formação inicial para Especialistas e Técnicos por eixo de formação

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Fonte: Elaboração própria com base em Araujo (2020a).

No que se refere à qualificação inicial de Especialistas Federais em Assistência à Execução Penal e Técnicos Federais de Apoio à Execução Penal, observamos maior equilíbrio entre os eixos. As discrepâncias relacionam-se mais ao aumento das disciplinas voltadas ao eixo “Relações Humanas e Reinserção Social” e à queda bastante acentuada em determinados momentos com relação ao eixo “Saúde e Qualidade de Vida”. Outrossim, os dois índices apresentam relação direta com a qualificação desses servidores, visto que, ao possuírem Ensino Superior, tendem a especializarem suas práticas laborais nesses cursos iniciais. Compreendemos, assim, sua futura atuação no cárcere. Os profissionais de saúde, por exemplo, não acessam conhecimentos básicos da profissão, mas passam a compreender como irão executar os procedimentos comuns em um ambiente de confinamento. Assim, conhecimentos sobre o trabalho em equipe, as rotinas da unidade penitenciária, entre outros, tornam-se mais relevantes.

Dessa maneira, evidenciamos que é a conotação do ambiente prisional que conduzirá a natureza dos processos formativos e, em grande medida, a fabricação das identidades profissionais irá compor o campo da prisão federal ao considerar as peculiaridades desse tipo de estabelecimento. Estudos similares (ARAUJO, 2020a; CUNHA; LEITE, 1996) demonstram que as decisões pedagógicas tomadas a partir de currículos profissionalizantes, via de regra, são intencionais.

Observada a execução de um currículo fortemente pautado na perspectiva da segurança Penitenciária onde os demais eixos de formação são secundarizados, potencializa-se a produção de identidades orientadas fundamentalmente na previsão de neutralização do apenado. Ainda, a conotação voltada à Inteligência Penitenciária postula a criação de um caráter profissional diligente, criando uma nova cultura de sistematização e acompanhamento de informações precisas sobre o cárcere. (ARAUJO, 2020a, p. 267).

Diante do exposto, sinalizamos que a face assumida pelas Escolas de Governo, para além dos ditames expressos pela alta gestão, estará vinculada aos objetivos da instituição para a qual os servidores serão formados. Em especial, no caso da Espen, são os objetivos da política penitenciária nacional, e mais particularmente, a rotina e os preceitos defendidos pelo microssistema de execução penal do SPF que definirão as tessituras dos processos formativos ofertados aos servidores das carreiras penais.

CONSIDERAÇÕES

O sistema penitenciário brasileiro é tema recorrente de discussões acadêmicas profícuas; sobre o SPF, porém, ainda pouco se produz. A face diferenciada deste estudo, que o eleva à condição de sistema de exceção, pode ser uma das justificativas para a pouca produção científica sobre o tema. Tratar dos seus servidores e dos processos formativos a que são submetidos torna-se, então, assunto igualmente ignorado no contexto acadêmico.

Supõe-se que a natureza diferenciada do SPF demande um quadro de servidores altamente qualificado, principalmente no que diz respeito aos conhecimentos oriundos do campo da segurança prisional, uma vez que o SPF se apresenta como um sistema de excelência no enfrentamento à criminalidade organizada. Todavia, raros são os trabalhos que se dedicam a essa temática. Assim, este artigo, ao abordar os processos formativos dos servidores das carreiras penais, a partir do currículo desenvolvido pela Espen, lança luz a um assunto ainda nebuloso no campo científico.

Observarmos que os servidores das carreiras penais federais devem adequar suas demandas de qualificação aos ditames da política nacional vigente, no âmbito do Poder Executivo Federal; isso demonstra que interesses de diversos escalões incidem em tal definição. Mais do que um servidor capacitado, vemos, na atualidade, a partir do estudo dos processos formativos ofertados aos funcionários públicos, a necessidade de reforma e transformação do serviço público a partir de parâmetros do setor privado. Nesse sentido, agem os interesses político-econômicos neoliberais que, em alguma medida, também interferem e ditam a política de segurança pública e prisional brasileira.

Ao voltarmos às nossas inquietações, especificamente para o sistema prisional, em particular o federal, observamos que a qualificação de seus servidores está diretamente relacionada não à política curricular da área, mas, sim, aos objetivos institucionais do órgão que recepciona os servidores das carreiras penais. Nesse viés, evidenciamos, por meio da análise dos cursos desenvolvidos, entre 2013 e 2019, que o contexto educacional e as políticas curriculares projetadas para o campo dos serviços penais não foram impulsionadas na prática como se esperava. Não visualizamos propostas de melhoria das condições do cárcere por meio da qualificação dos seus servidores. Contudo, ficamos diante de propostas de uniformização de procedimentos e parâmetros de trabalho que reforçam a longa manus do Estado.

Assim sendo, reiterar o primado da segurança prisional em cursos de formação inicial e continuada, para Agentes, Especialistas e/ou Técnicos, é reforçar a concepção de que o objetivo único da execução penal é punir. Relega-se, assim, a outros planos, bem inferiores, quiçá subterrâneos, a possibilidade de fortalecer os demais eixos da formação de servidores. Desse modo, todos nós perdemos a oportunidade de fazer emergir um sistema penitenciário mais humano e coeso, e menos coercitivo e degradante.

Por fim, consideramos que, a despeito da política curricular vigente para o campo prisional, as ações educacionais desenvolvidas na área privilegiam a manutenção de protocolos de trabalho que primam pela neutralização dos apenados, em clara convergência com a política de controle criminal instituída nos últimos anos em nossa sociedade.

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  1. Conforme Braga (2014, p. 53), “[...] uma característica intrínseca à instituição prisional é seu hermetismo. O fechamento em relação ao entorno social subsiste em todas as prisões e se manifesta como um mecanismo de defesa contra a incursão de práticas e pessoas que tensionem a instituição”.↩︎

  2. A Lei N° 11.907, de 2 de fevereiro de 2009 (BRASIL, 2009), no art. 141, indica que ele deveria ser implantado em 18 meses a partir 29 de agosto de 2008.↩︎

  3. A lista completa dos cursos está disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/espen/cursos-presenciais/cursos-presenciais. Acesso em: 22 jul. 2021.↩︎