A INTERNAÇÃO PROVISÓRIA DE ADOLESCENTES E O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO: UMA ABORDAGEM CRIMINOLÓGICA DAS DECISÕES PUBLICADAS DURANTE A PANDEMIA
Patrícia Silveira da Silva
Mestranda em Direito na Universidade Federal do Paraná (PPGD/UFPR), com bolsa CAPES/PROEX (2021/2022). Graduada em Direito pela Faculdade Meridional - IMED, com bolsa integral PROUNI. Pesquisadora na área da Criminologia Crítica, relações raciais, gênero, e juventude. Advogada.
País: Brasil Estado: Paraná Cidade: Curitiba
Email: patricia.silveira@ufpr.br Orcid: https://orcid.org/ 0000-0002-4042-329X
Katie Silene Cáceres Arguello
Doutora pelo Departamento de Antrhropologie et Sociologie du Politique - Université Paris 8 - Vincennes-Saint-Denis. Professora da Graduação e da Pós-graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Criminologia e Política Criminal (PPGD/UFPR) e do Grupo de Estudos em Criminologia Crítica (CNPq).
País: Brasil Estado: Paraná Cidade: Curitiba
Email: arguellokatie@gmail.com Orcid: https://orcid.org/ 0000-0001-9360-293X
Contribuições dos autores: Patrícia ficou responsável por fazer a busca das decisões, fazer a análise de conteúdo e redigir a revisão de literatura. Katie orientou o trabalho e ficou responsável por escrever a segunda parte de revisão de literatura e considerações finais.
Resumo
O trabalho tem como objetivo geral analisar o conteúdo das decisões publicadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a internação provisória de adolescentes em conflito com a lei, a partir de uma abordagem criminológica crítica. Assim, este trabalho pretende responder o seguinte problema de pesquisa: como o TJ/SP decidiu sobre a internação provisória de adolescentes em conflito com a lei durante a pandemia? Optou-se pela análise de conteúdo dos acórdãos publicados no mês de agosto de 2020, por ter sido o mês com o maior número de decisões publicadas sobre o tema. O método de exploração de literatura e de análise de conteúdo foram utilizados para a construção da pesquisa. A conclusão aponta que o TJ/SP, apesar da pandemia, contrariou a legislação e as recomendações sobre o tema, reproduziu discursos paternalistas, subverteu a excepcionalidade da internação em regra, e mitigou a saúde e a liberdade de adolescentes ao, majoritariamente, estender o prazo da internação provisória.
Palavras-chave: adolescentes; criminologia crítica; decisões; internação provisória; Tribunal de Justiça de São Paulo.
THE TEMPORARY INTERNATION OF THE TEENAGERS AND THE COURT OF JUSTICE OF SÃO PAULO: A CRIMINOLOGICAL APPROACH TO DECISIONS PUBLISHED DURING THE PANDEMIC
Abstract
The work has as general objective to analyze the content of the decisions published by the Court of Justice of São Paulo on the provisional detention of adolescents in conflict with the law, from a critical criminological approach. Thus, this work intends to answer the following research problem: how did the TJ/SP decide on the provisional internation of adolescents in conflict with the law during the pandemic? It was chosen analyze the content of judgments published in August, as it was the month with the highest number of decisions published on the theme.The method of literature exploration and content analysis were used for the construction of the research. The conclusion shows that the TJ/SP, despite the pandemic, contradicted the legislation and recommendations on the theme, reproduced paternalistic discourses, subverted the exceptionality of hospitalization as a rule, and mitigated the health and freedom of adolescents and, for the most part, extended the term of provisional internation.
Keywords: teenagers; critical criminology; decisions; provisional internation; Court of Justice of São Paulo.
Data de Recebimento: 01/12/2021 – Data de Aprovação: 21/04/2022
DOI: 10.31060/rbsp.2022.v.16.n3.1653
INTRODUÇÃO
Em março de 2020 houve o reconhecimento pela Organização Mundial da Saúde (OMS) da COVID-19 como pandemia, doença causada pela contaminação pelo novo coronavírus Sars-Cov-2. Devido a essa situação, embora o Governo Federal tenha propagado discurso negacionista, emergiu uma preocupação por grande parte da sociedade e de seus representantes regionais para promover medidas de contenção da proliferação do vírus. Medidas de isolamento social foram decretadas para a população em geral e a recomendação do uso de máscaras e álcool em gel para aqueles e aquelas que precisassem se ausentar das suas residências. No âmbito do sistema prisional e socioeducativo, locais em que por suas condições de superlotação é praticamente impossível manter o isolamento social, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou as Recomendações Nº 62/2020 e Nº 91/2021, orientando que o Poder Judiciário adotasse medidas de desencarceramento para minimizar o contágio dentro das prisões e das unidades de internação.
Diante da existência dessas recomendações do Conselho Nacional de Justiça, torna-se necessário verificar de que maneira o Poder Judiciário atuou para reduzir a contaminação dentro dos espaços de privação de liberdade no âmbito socioeducativo, com destaque para a internação provisória. A Recomendação Nº 62, em seu art. 2º, determinou a revisão de decisões que tratassem sobre a internação provisória de adolescentes, e que fossem priorizadas as medidas em meio aberto, com o intuito de reduzir o contágio dentro das unidades. Nesse sentido, a internação provisória está prevista no art. 108 do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), e consiste na internação do(a) adolescente pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias, antes de proferida a sentença, desde que presentes os indícios de autoria e materialidade e demonstrada a necessidade da medida.
Contudo, algumas pesquisas indicam que esse prazo estava sendo prorrogado por alguns tribunais (SILVA, 2020), mesmo durante a pandemia, ainda que em desacordo com a determinação legal, e contrário às recomendações do Conselho Nacional de Justiça acerca da preferência de medidas desencarceradoras. Assim, esta pesquisa pretende responder à seguinte questão: como o Tribunal de Justiça do estado de São Paulo decidiu sobre a internação provisória de adolescentes em conflito com a lei durante a pandemia?
O estado de São Paulo foi escolhido para ser analisado, pois é o estado com mais adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação provisória, segundo informações do último Levantamento Anual do Sinase (BRASIL, 2019) e do Boletim publicado pela própria Fundação Casa (2021b). Além disso, é o estado com o maior número de mortes ocasionadas pela COVID-19 dentro do sistema prisional, incluindo pessoas presas e agentes penitenciários(as), e no sistema socioeducativo entre os(as) agentes socioeducadores(as) (BRASIL, 2021; CNJ, 2021).
Para responder ao problema da pesquisa será feita uma análise dos acórdãos publicados sobre o tema, com a procura do termo “prorrogação da internação provisória” no campo de busca jurisprudencial no site do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. A consulta no site do Tribunal de Justiça resultou em cinquenta e sete acórdãos sobre o tema, durante o período de um ano, de março de 2020, início da pandemia, até março de 2021. Deste modo, como a presente pesquisa pretende fazer uma análise qualitativa do teor dos acórdãos, optou-se pela análise de conteúdo dos acórdãos publicados no mês de agosto, por ter sido o mês com a maior publicação de decisões, no total de dez. No entanto, o artigo pretende também expor os dados quantitativos da pesquisa de jurisprudência.
A metodologia aplicada é predominantemente indutiva, e a coleta de dados foi a partir da técnica de pesquisa documental, e os dados obtidos foram analisados a partir do método da análise de conteúdo (BARDIN, 2011). O marco teórico foi trabalhado pelo método de exploração da literatura, para a construção de uma análise a partir da criminologia crítica. O trabalho está estruturado em duas partes. Na primeira parte serão analisados os acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo, momento em que inicialmente será exposto o contexto do sistema socioeducativo em São Paulo, os dados quantitativos da pesquisa e, por fim, o resultado da análise de conteúdo dos acórdãos publicados no mês de agosto de 2020. Na segunda parte, será desenvolvida a relação entre os dados coletados e o marco teórico da criminologia crítica.
O CONTEXTO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO EM SÃO PAULO
Inicialmente, antes de realizar a análise de conteúdo dos acórdãos, torna-se necessário contextualizar o sistema socioeducativo no estado de São Paulo. Até o dia 22 de outubro de 2021 eram 4.994 adolescentes cumprindo medida de internação, desses, 758 estavam em internação provisória, de acordo com o Boletim Estatístico Diário da Fundação Casa (2021b). Referente ao contágio pela COVID-19 no sistema socioeducativo de São Paulo, segundo o Boletim COVID Diário na Fundação Casa, publicado pela Fundação Casa (2021a), os dados dão conta que eram, até 25 de outubro de 2021, 1.045 adolescentes confirmados com a doença, 926 curados e nenhum óbito. Entre os(as) servidores(as) foram confirmados 2.066 casos, 2.058 curados(as) e 34 óbitos.
Os aspectos raciais, sociais e de gênero das unidades em meio fechado do estado sob análise também são necessários para o desenvolvimento da pesquisa. O Boletim Estatístico Diário da Fundação Casa indica que de 4.994 adolescentes institucionalizados(as), 95,70% eram do sexo biológico masculino, e 4,30% do sexo biológico feminino. O que evidencia a reprodução do caráter sexista do sistema penal no sistema socioeducativo.
Além disso, 71,85% foram considerados(as) negros(as)1, 27,47% brancos(as), 0,38% amarelos(as), e 0,30% indígenas. Isso demonstra que a seletividade do sistema penal também aparece no sistema socioeducativo, visto que são os adolescentes negros os mais suscetíveis a serem selecionados pelo sistema.
Quanto ao nível de escolaridade, a maioria, 2.775 adolescentes, encontrava-se cursando o Ensino Fundamental Ciclo II, com destaque para 41 adolescentes com o Ensino Médio completo, e 19 cursando o Ensino Superior. Essa seletividade é importante para a análise que será desenvolvida adiante, pois evidencia o quanto o sistema socioeducativo prioriza o controle social de adolescentes com nível baixo de escolaridade, para manutenção da estratificação da sociedade.
Sobre o aspecto de gênero, de acordo com o Levantamento Anual do Sinase (SECRETARIA NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2019), com dados correspondentes ao ano de 2017, o estado de São Paulo não divulgou dados acerca do gênero dos(as) adolescentes em cumprimento de medida, o que indica que continua atrelando a identidade de gênero ao sexo biológico, por isso que não é possível dimensionar o critério de gênero dentro das instituições. A orientação sexual dos(as) adolescentes em cumprimento da medida também não foi informada.
Além dos dados demográficos da medida de internação no estado de São Paulo, para melhor compreensão do objeto desta pesquisa, é necessário contextualizar a internação provisória na seara da infância e da juventude. A medida socioeducativa de internação está prevista do art. 121 até o art. 125 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, embora seja uma medida de privação de liberdade, é amparada pelos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (BRASIL, 1990). Esses princípios também norteiam a internação provisória, que está prevista no art. 108 do ECA, e determina que o(a) adolescente poderá ser internado(a) antes da conclusão do processo, pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias, desde que comprovado indícios de autoria e materialidade e a imprescindibilidade da medida.
Assim, destaca-se que a legislação, ao mencionar que a conclusão do processo de adolescente internado(a) provisoriamente deve ocorrer dentro do prazo máximo de quarenta e cinco dias, determina que o prazo é improrrogável. No entanto, existem pesquisas sobre o tema que indicam que alguns Tribunais de Justiça prorrogam a internação (DIAS; SILVA, 2020; SILVA, 2020). Desse modo, contextualizado o sistema socioeducativo no estado de São Paulo, e como dispõe a legislação sobre a medida socioeducativa da internação provisória, passa-se à análise dos dados de forma quantitativa, e posteriormente de forma qualitativa.
A gestão da internação provisória pelo Tribunal de Justiça de São Paulo: exploração dos dados quantitativos
Embora a pesquisa esteja voltada para a análise de conteúdo dos acórdãos publicados no mês de agosto de 2020, a metodologia empregada no trabalho permite que os dados quantitativos sejam explorados, pois serão úteis na fase de verificação das hipóteses (BARDIN, 2011, p. 115). Nesse sentido, torna-se importante destacar que durante o primeiro ano de pandemia, março de 2020 a março de 2021, foram publicados cinquenta e sete acórdãos pelo Tribunal de Justiça do estado de São Paulo sobre o tema da internação provisória. Os dados quantitativos da busca realizada no site do Tribunal podem ser mais bem visualizados com o gráfico a seguir.
Gráfico 1: Número de acórdãos publicados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a prorrogação da internação provisória durante o primeiro ano de pandemia
Fonte: Elaboração própria a partir da análise das decisões no site do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Entre os cinquenta e sete acórdãos publicados no período de análise, trinta e dois acórdãos prorrogaram a internação provisória de adolescentes, ao passo que vinte e cinco acórdãos não autorizaram a prorrogação do prazo. Durante o período, duas adolescentes do sexo feminino tiveram a sua internação provisória prorrogada ilegalmente, e todos os outros casos trataram-se de adolescentes do sexo biológico masculino. Saliente-se, ainda, que em quatro oportunidades o pedido de liberdade foi promovido por defesa particular, sendo que em três casos o adolescente foi assistido por advogadas do sexo biológico feminino. De forma inesperada, em um caso o Ministério Público impetrou Habeas Corpus, em face da decisão de primeiro grau que prorrogou a internação provisória de adolescente institucionalizado, ocasião em que a liberdade foi concedida. Em todos os demais casos, os(as) adolescentes foram assistidos pela Defensoria Pública.
Os atos infracionais encontrados nos acórdãos não variam, e foram identificados atos infracionais equiparados ao crime de tráfico, roubo majorado e tentativa de homicídio. Esses dados vão ao encontro daqueles publicados pelo Levantamento Anual do Sinase (2019), e do Boletim elaborado pela Fundação Casa (2021b), uma vez que se tratam dos atos infracionais que mais passam pelo processo de criminalização. Não foi possível identificar a raça/cor/etnia dos(as) adolescentes, uma vez que este dado não aparece nas decisões.
Um dado quantitativo que merece destaque é o de que nos acórdãos em que foram analisados o conteúdo foi identificado que o termo “excepcional” ou “excepcionalidade” apareceu noventa e nove vezes para justificar a prorrogação da internação provisória. O termo foi utilizado para fundamentar o pedido pelo Ministério Público e para fundamentar a prorrogação pelo voto divergente nas decisões que não autorizaram a prorrogação. No entanto, esse dado será abordado detalhadamente quando os acórdãos forem analisados pelo seu conteúdo.
A análise quantitativa dos acórdãos publicados durante o primeiro ano de pandemia dá conta que o Tribunal de Justiça do estado de São Paulo majoritariamente prorrogou a internação provisória dos(as) adolescentes, violando o disposto no art. 108 do ECA (BRASIL, 1990). Além disso, também de forma majoritária, não observou a Recomendação Nº 62 publicada pelo CNJ, no sentido de evitar a privação de liberdade de adolescentes, colocando em risco eles(as) e os(as) próprios(as) agentes estatais responsáveis pela execução da medida.
No próximo tópico, será realizada a análise de conteúdo dos acórdãos publicados no mês de agosto de 2020, ocasião em houve a publicação de mais decisões sobre o tema da prorrogação da internação provisória.
Os acórdãos publicados em agosto no Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a internação provisória de adolescentes: uma análise de conteúdo
O método de análise de conteúdo, conforme destaca Bardin (2011), é um método que utiliza técnicas de análise das comunicações, sendo que a construção de inferências, de conhecimentos de conteúdo e de produção são, via de regra, qualitativos, podendo ou não ser quantitativos. A metodologia desenvolvida pela autora possui três principais características: (i) pré-análise; (ii) exploração do material; e (iii) tratamento dos resultados, inferência e interpretação (BARDIN, 2011, p. 95).
A primeira fase desse método consiste na leitura de todo material objeto da pesquisa, bem como na criação de hipóteses e objetivos, elaboração de indicadores, exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência (BARDIN, 2011, p. 95-100). A segunda fase, de exploração do material, “consiste na construção das operações de codificação, considerando-se os recortes dos textos em unidades de registros, a definição de regras de contagem e a classificação e agregação das informações em categorias simbólicas ou temática” (SILVA; FOSSÁ, 2015, p. 4). Nessa segunda fase, significa que os dados coletados serão analisados e classificados dentro de categorias, de acordo com temas semelhantes, de modo a responderem a problemática apresentada, sendo que o resultado servirá para a construção de inferências. Na terceira e última fase desse método, será realizado o tratamento dos resultados, por meio da comparação entre as categorias, sejam elas semelhantes ou diferentes (BARDIN, 2011). Explicado de forma sintetizada o método adotado, parte-se para a demonstração dos resultados obtidos a partir da análise realizada.
A primeira semelhança identificada nos acórdãos publicados no mês de agosto é que todos foram provenientes de Agravo de Instrumento promovidos pelo Ministério Público em face de decisão interlocutória de primeiro grau que determinou a liberação do(a) adolescente internado(a) provisoriamente após o transcurso do prazo de quarenta e cinco dias. Isso significa que no mês em análise há um protagonismo do Ministério Público como autor do pedido de prorrogação do referido prazo, mesmo sendo contrário à lei, e ainda que em desacordo com a Recomendação Nº 62, do CNJ, que determinou a revisão de todas as internações provisórias.
Outra semelhança constatada é que das dez decisões proferidas no mês de agosto pelo TJ/SP, nove rejeitaram o recurso do Ministério Público, ou seja, não autorizaram a prorrogação da internação provisória. Saliente-se que todas as decisões que não autorizaram a prorrogação não foram unânimes, sempre havia um desembargador com voto contrário que autorizava a prorrogação. Além disso, em todos os recursos o parecer da Procuradoria Geral de Justiça foi pela prorrogação da internação provisória.
Ao analisar o acórdão que prorrogou a internação provisória, e todos os votos divergentes que se posicionaram favoráveis à prorrogação, observou-se que o contexto da pandemia foi utilizado como pretexto para a mitigação de direitos dos(as) adolescentes. A justificativa da prorrogação foi de que ela seria em prol de um bem maior ou em prol de interesse comum. Embora esse argumento não tenha sido associado a uma explicação de qual seria o bem maior que estava sendo privilegiado, é possível compreender em leitura das decisões que este bem maior mencionado seria a ordem pública e a tranquilidade social, pois há menção que a situação excepcional da pandemia permitiria a prorrogação do prazo.
Outro fundamento utilizado para a prorrogação da internação provisória foi a suspensão das audiências pelo Provimento TJ/SP Nº 2545/2020 e pela Recomendação Nº 62 do CNJ. O Ministério Público e o desembargador (que se manifestou favorável à prorrogação nos votos divergentes) mencionaram que a pandemia ocasionada pelo novo coronavírus levou à morosidade na conclusão do processo e por isso a prorrogação seria possível, diante da situação excepcional. O Ministério Público também baseou o pedido de prorrogação da internação provisória na Resolução Nº 313/2020, publicada pelo Conselho Nacional de Justiça, que determinou a suspensão dos prazos processuais e das audiências, por conta da pandemia ocasionada pela COVID-19. Assim, essa suspensão também se estenderia ao prazo da internação provisória, ou seja, o prazo de quarenta e cinco dias também estava suspenso.
Isso indica que a Recomendação Nº 62 do CNJ e as demais recomendações normativas publicadas que determinavam a revisão das internações provisórias e suspendiam a realização de audiências foram, na realidade, utilizadas para prorrogação do prazo, e não com o intuito original de desinternação. No entanto, é possível afirmar que a Recomendação Nº 62 do CNJ foi utilizada de forma ambígua. Isso porque ela apareceu para fundamentar a improrrogabilidade do prazo, pois nos votos dos(as) desembargadores(as) que não autorizaram a prorrogação do prazo, a Recomendação foi utilizada para justificar que os prazos de suspensão não se estendiam à internação provisória, que possui prazo peremptório e improrrogável.
Essas recomendações publicadas pelo TJ/SP e pelo próprio CNJ também apareceram no pedido do Ministério Público e nos votos divergentes para informar que as audiências tanto de apresentação quanto a de instrução estavam autorizadas a acontecerem de forma virtual. Assim, a fundamentação de que o(a) adolescente em liberdade colocaria óbice à realização da audiência virtual também foi utilizada para manutenção da internação provisória além do prazo previsto. No entanto, esse posicionamento não considera que não era o(a) adolescente que obstaculizaria a realização da audiência virtual, mas sim a sua condição de miserabilidade, e a consequente ausência de internet. A pesquisa realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação aponta que cerca de 4,8 milhões de crianças e adolescentes viveram sem internet no Brasil em 2020 (NIC.br, 2020). Logo, essa fundamentação apresentada pelos órgãos de controle social é completamente desconexa com a realidade, sobretudo com as características do sistema socioeducativo, que tem como alvo os(as) adolescentes de baixa renda e provenientes de locais periféricos.
A gravidade do ato infracional criminalizado e a reincidência do(a) adolescente também apareceram como fundamentação para a prorrogação da internação provisória. O discurso paternalista de que a privação de liberdade seria benéfica ao(à) adolescente também apareceu nos acórdãos, sobretudo no voto divergente, e foi relacionado com a reincidência, a evasão escolar e a ausência de imposição de limites. Isso foi identificado ao ter sido mencionado nas decisões que, ao ter a internação provisória prorrogada, o(a) adolescente estaria seguro(a), e a sua ressocialização seria possível por meio da internação. Ao revés do que prevê o ECA, pois este tem como princípio norteador a excepcionalidade e a brevidade da medida de internação.
A única decisão que por unanimidade prorrogou a internação provisória seguiu a fundamentação já utilizada nos votos divergentes, principalmente ao destacar que a prorrogação do prazo por mais trinta dias seria necessária para ressocialização do adolescente e garantia da ordem pública. Além disso, a fundamentação de que as audiências seriam realizadas por videoconferência também apareceu nesta decisão de prorrogação do prazo.
As nove decisões publicadas no mês de agosto, que por maioria não autorizaram a prorrogação, foram baseadas no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que possui o entendimento de ser improrrogável a internação provisória. A Jurisprudência do próprio TJ/SP também apareceu como fundamento, sobretudo o entendimento do desembargador que estava proferindo os votos divergentes, pois em outra oportunidade ele já havia se manifestado de forma contrária à prorrogação. Os dispositivos da lei, como os art. 108 e art. 183, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), foram utilizados para fundamentar que o prazo de quarenta e cinco dias é improrrogável, mesmo que os atos infracionais supostamente cometidos tenham sido graves.
Os dados qualitativos da pesquisa expõem que o Tribunal de São Paulo majoritariamente prorrogou a internação provisória de forma contrária à lei, contudo, no mês em análise a maioria dos acórdãos não autorizou a prorrogação. A saúde dos(as) adolescentes e dos(as) agentes socioeducadores(as) não foi levada em consideração para as decisões que não autorizaram a prorrogação, de modo que se pode concluir pelo descaso do Poder Judiciário com essas vidas. Em recente reportagem publicada pela Ponte Jornalismo (MENDONÇA 2021), há informações de familiares de que os casos de COVID-19 na Fundação Casa ainda existem, com adolescentes tendo crises de falta de ar, de modo que os cuidados com os(as) adolescentes devem permanecer, embora não haja morte entre eles(as), até porque os efeitos colaterais da doença ainda estão sendo estudados. Além disso, evitar a internação provisória ilegal de adolescente deve ser priorizada para evitar o contágio entre os(as) servidores(as), uma vez que há um número de mortes considerável, devendo o direito à vida e à dignidade humana dessas pessoas ser preservado.
Sendo assim, no próximo tópico serão explorados os dados qualitativos da pesquisa, por meio do marco teórico da criminologia crítica, a fim de visualizar como o sistema de justiça atua como um reprodutor de desigualdades, por estar atrelado ao controle social formal, criado justamente para manter essa estrutura de desigualdades.
O CONTROLE SOCIAL FORMAL EXERCIDO SOBRE OS(AS) ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI: QUANDO A EXCEPCIONALIDADE VIRA REGRA
A criminologia crítica com viés marxista teve seu início por volta da década de setenta, e trouxe para o campo criminológico aprimoramentos à teoria do labelling approach ou teoria do etiquetamento. Para a criminologia crítica, o sistema de justiça criminal atua de forma seletiva ao direcionar o seu controle somente em alguns casos em prol de outros, de modo que o desvio, enquanto algo criado pelos próprios agentes de controle, vai ser direcionado para os estratos mais baixos da sociedade, ou seja, àqueles e àquelas que não interessam ao sistema capitalista de produção. No âmbito da América Latina, alguns autores e autoras tiveram o protagonismo na contextualização da criminologia para uma compreensão desde a margem, como Juarez Cirino dos Santos (1981), Eugenio Raúl Zaffaroni (1991), Rosa Del Olmo (2004) e Lola Aniyar de Castro (2005).
No campo criminológico, a criminologia crítica também passou por aprimoramento, após críticas dos movimentos feministas e negros, sobretudo pelas ausências de inclusão de aspectos raciais e de gênero em sua teoria (BARATTA, 1999; FLAUZINA, 2008; ANDRADE, 2012; MENDES, 2014; GÓES, 2016; DUARTE, 2017; BATISTA, 2003). Essas contribuições à criminologia crítica vão acrescentar no debate brasileiro sobre o tema, principalmente para compreensão de que os aspectos racial e de gênero também são importantes para a análise da estrutura do sistema penal, principalmente para deslegitimar esse sistema que atua de forma seletiva (ZAFFARONI, 1991).
Ao incluir no debate da criminologia crítica questões raciais e de gênero, torna-se importante visualizar de que modo o sistema de justiça criminal e infracional atua para a manutenção do status quo de desigualdades, que majoritariamente encarcera e interna jovens negros e periféricos. No sistema socioeducativo, esse recorte interseccional também é necessário, sobretudo pelo sistema socioeducativo de São Paulo, ora sob análise, ser composto majoritariamente por adolescentes negros e negras, de modo que as decisões de prorrogação da internação provisória vão interferir diretamente na vida desses(as) adolescentes.
Sobre o tema da criminalização seletiva de adolescentes e jovens, o criminólogo Alessandro Baratta (2011) aduz que o ambiente escolar vai ser o primeiro ambiente de estigmatização e marginalização da sociedade. Para o autor existe uma complementação entre as funções do sistema escolar e do sistema penal, sendo que ambas vão servir para conservar a realidade social de desigualdade, sobretudo na distribuição de recursos e benefícios, intrínseca do sistema capitalista (BARATTA, 2011, p. 171). A exclusão perpetuada pelo sistema escolar e complementada pelo sistema penal tem a função não declarada de estratificar a sociedade, além de criar processos de marginalização. Aquele(a) que não concluir o ensino formal de educação se torna alvo do processo de criminalização; não à toa que a maioria dos(as) adolescentes internados(as) na Fundação Casa possui nível de escolaridade baixa.
Essa complementação entre os sistemas como conceituada por Baratta apareceu na análise dos acórdãos. Observa-se que nos votos divergentes analisados, que autorizaram a prorrogação da internação provisória, a evasão escolar apareceu como fundamento para a sua prorrogação. A fundamentação de prorrogação da internação provisória foi baseada na tese de que ela seria benéfica ao adolescente por afastá-lo do ambiente infracional e promover sua ressocialização. No entanto, isso faz parte desse processo de exclusão e de estigma que a criminologia aponta iniciar desde o ambiente escolar. Esse discurso paternalista encontrado nas decisões de que a privação de liberdade dos adolescentes seria benéfica é típica da teoria da Situação Irregular, vigente durante o período do Código de Menores (1927 e 1979), e possui relação intrínseca com a criminologia positivista ao associar pobreza com criminalidade.
O autor Juarez Cirino (2002) sustenta a teoria de que a infração não é a função do adolescente infrator, mas sim a sua condição normal.
O conhecimento de que atos infracionais próprios da fase da adolescência aparece como um fenômeno normal do desenvolvimento psicossocial se completa com a noção de sua ubiquidade: pesquisas mostram que todo jovem comete pelo menos 1 ato infracional, e que a maioria comete várias infrações – explicando-se a ausência de uma criminalização em massa da juventude exclusivamente pela variação das malhas da rede de controles de acordo com a posição social do adolescente, o que coloca em linha de discussão o problema da cifra oculta da criminalidade juvenil. (CIRINO DOS SANTOS, 2002, p. 92).
Desse modo, adolescentes praticarem atos contrários à lei passa a ser algo esperado, e a sua internação vai ser possível por meio da seletividade do sistema, que vai direcionar para o encarceramento excessivo de adolescentes, sobretudo pobres e negros. Encarceramento esse que possui o aval de todos os órgãos do sistema infracional, iniciando pela polícia, depois pelo Ministério Público e por fim pelo Poder Judiciário.
Nesse sentido, a criminologia crítica, a partir de um viés minimalista, e a doutrina da Proteção Integral, que teve início ainda que teoricamente com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, vão se entrecruzar a partir da perspectiva de que a privação da liberdade deve ser aplicada de maneira excepcional, para preservar a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento dos(as) adolescentes. Contudo, embora a previsão de que a internação deva ocorrer de modo excepcional, esse fundamento foi utilizado de modo extremamente descontextualizado nos votos divergentes, a fim de manter a segregação ilegal de adolescentes. Isso aconteceu na oportunidade em que os termos “excepcional” e “excepcionalidade” apareceram noventa e nove vezes nas decisões, apontando uma subversão ao que verdadeiramente é excepcional, a privação de liberdade.
Isso ocorreu por dois motivos. Primeiro, porque há uma conivência do Poder Judiciário na internação excessiva de adolescentes, atuando enquanto reprodutor de desigualdades (CARVALHO, 2015). Segundo, porque – conforme amplamente alertado por García Méndez (2006) – há uma crise de implementação e de interpretação dessa inovadora legislação. “Em todo caso, se a primeira remete ao reiterado déficit de financiamento nas políticas sociais básicas, a segunda é de natureza político-cultural” (GARCÍA, 2006, p. 3)2.
No caso da presente pesquisa, esta crise de interpretação foi identificada no momento em que a excepcionalidade passou a ser a regra nos votos divergentes, na decisão que autorizou a prorrogação e no pedido de prorrogação formulado pelo Ministério Público. A análise qualitativa dos acórdãos apontou que, além do discurso paternalista ter preponderado nos votos divergentes e no posicionamento do Ministério Público, a própria legislação foi interpretada de forma ambígua, de modo a relativizar os direitos dos(as) adolescentes sob a custódia estatal, o que agrava a crise de interpretação.
Assim, como o sistema de justiça e o próprio Direito estão estruturalmente ligados ao capital, eles não se propõem a efetivamente garantir uma sociedade menos desigual e garantidora de direitos. Ao esperar que o Poder Judiciário atue em conformidade com a legislação para evitar que a internação provisória seja estendida além do prazo determinado, não é condizente à sua função não declarada enquanto legitimador de violação de direitos. Soares (2019) corrobora com este pensamento, sobretudo ao afirmar que as polícias e o sistema de justiça criminal (inclui-se aqui o sistema de justiça infracional) são promotoras de desigualdades.
O modo impreciso e autoritário com que o sistema judicial assimila o resultado do trabalho policial e o valida, enquanto lastro probatório de suas decisões, representa o mais grave problema de violação de direitos constitucionais e de erosão do sentido democrático do modelo de polícia, segurança pública e justiça criminal. (FREITAS, 2021, p. 53).
De modo geral, pesquisas sobre como o Poder Judiciário decidiu sobre os pedidos de liberdade ou prisão domiciliar dão conta que a pandemia não foi o suficiente para eles serem concedidos, corroborando com essa perspectiva de legitimador de violações, sobretudo violação à liberdade e ao direito à saúde, ambos previstos constitucionalmente. Os dados coletados pela Defensoria Pública de São Paulo apontam que somente 3% dos pedidos de liberdade com base na Recomendação Nº 62 do CNJ foram deferidos (DEFENSORIA PÚBLICA, 2020). Outro estudo publicado sobre o tema pelas pesquisadoras Natalia Vasconcelos e Maíra Machado e pelo pesquisador Daniel Wang (2020) indica que 88,63% dos Habeas Corpus impetrados no Tribunal de Justiça de São Paulo foram decididos desfavoravelmente aos(às) pacientes. Embora essa pesquisa tenha tido como objeto o Tribunal de São Paulo, não há menção na pesquisa sobre os dados de HCs impetrados por adolescentes. Isso indica que a Recomendação Nº 62 do CNJ teve pouca ou quase nenhuma aplicabilidade pelo Tribunal de São Paulo, tanto na seara penal como na seara infracional.
No caso desta pesquisa, torna-se importante observar que a seletividade do sistema socioeducativo é operacionalizada por todas as esferas do controle social formal, desde a apreensão em flagrante, perpassando pela autuação do Ministério Público, e consolidada pelo Poder Judiciário. A análise quantitativa apresentada aponta que majoritariamente o Tribunal de Justiça de São Paulo prorrogou a internação provisória, e nos momentos em que não autorizou a prorrogação, houve voto divergente proferido por integrante da Câmara Recursal.
Em momento algum foi mencionado nas decisões as condições de superlotação e/ou déficit de vagas dos centros de internação de São Paulo, e sequer foi ponderado o risco dos(as) adolescentes e servidores(as) com a contaminação da doença ocasionada pela COVID-19, que já havia vitimado muitas pessoas. O conteúdo encontrado nos acórdãos vai ao encontro do constatado pelas pesquisadoras e pelo pesquisador que analisaram acórdãos do TJ/SP referente aos Habeas Corpus impetrados:
Ademais, a concepção equivocada sobre os riscos relativos dentro e fora das prisões é potencializada pela ponderação em que se afirma entre segurança pública e saúde pública realizada por alguns juízes e juízas – que é mais importante manter o restante da sociedade mais segura que proteger a vida e a saúde de pessoas presas, mesmo aquelas acusadas de crimes que não envolvem violência ou grave ameaça. (VASCONCELOS; MACHADO; WANG, 2020, p. 1481-1482).
Verificou-se que a fundamentação da necessidade da preservação da ordem pública e de um interesse comum foram priorizados em face dos direitos individuais dos(as) adolescentes que tiveram a sua internação provisória prorrogada. Essas constatações evidenciam que a saúde e a liberdade de adultos e adolescentes foram violadas pelo Poder Judiciário na análise das decisões.
Seguindo essa crítica criminológica tecida ao Poder Judiciário, Carvalho (2015) trabalha com a teoria de que o Poder Judiciário tem se eximido da responsabilidade da seletividade do sistema socioeducativo. Isso foi possível concluir através da sua pesquisa, oportunidade em que foi constatado que os atores e as atrizes do campo jurídico não dissertam sobre violência e racismo institucional, e têm direcionado as críticas ao campo legislativo.
Portanto, além de o Poder Judiciário ser responsável pela seletividade do sistema penal, no caso deste trabalho foi evidenciada a atuação do Ministério Público na reprodução dessa seletividade. O seu protagonismo foi decisivo para a violação da determinação contida na legislação, mesmo que a Constituição Federal de 1988 lhe confira o papel de guardião da constituição e dos direitos e das garantias individuais.
Os dados coletados nesta pesquisa direcionam para a conclusão de que a pandemia não foi o suficiente para que mudanças estruturais – ou até mesmo pontuais, como a prioridade de concessão de medidas em meio aberto –, na seara da internação provisória, fossem possíveis. Pelo contrário, enquanto deveriam ser evitadas, o Poder Judiciário de forma majoritária acabou prorrogando o prazo de internação, atuando de forma ativa na reprodução de desigualdade e violação da legislação e das recomendações publicadas. Essa constatação vai ao encontro do trabalho realizado por Maíra Machado e Natália Vasconcelos (2021) sobre como a pandemia pode ser considerada uma chance perdida para reforma no sistema penal, o que se estende aqui para o sistema socioeducativo. Mesmo com a recomendação para que todas as internações provisórias e prisões preventivas fossem reanalisadas pelo Poder Judiciário, o fato é que devido à racionalidade penal moderna – em que há uma prioridade dos meios de controle pela segregação e violação de direitos – isso não foi possível.
Dessa maneira, durante a pandemia, o Poder Judiciário, representado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, de forma majoritária, não revisou as prisões no âmbito do sistema penal, e não concedeu os pedidos de liberdade formulados, e essa posição foi reproduzida na seara do sistema socioeducativo. Identificou-se que houve violação à legislação e às Recomendações publicadas pelo Conselho Nacional de Justiça, além de não ter sido preservada a vida e a saúde dos(as) adolescentes, e sobretudo dos(as) agentes socioeducadores(as). O caráter paternalista e a seletividade do sistema infracional apareceram de forma preponderante, consolidando o Tribunal de Justiça de São Paulo, o Ministério Público e a Procuradoria Geral de Justiça como promotores(as) de desigualdades sociais, raciais e de gênero, ao colocarem em risco a saúde de adolescentes e servidores(as) com a prorrogação ilegal do prazo da internação provisória.
CONCLUSÃO
O presente trabalho se propôs a responder como o Tribunal de Justiça do estado de São Paulo decidiu sobre a internação provisória de adolescentes em conflito com a lei durante a pandemia. A busca resultou em cinquenta e sete acórdãos sobre o tema, durante o primeiro ano de pandemia, março de 2020 até março de 2021. A análise de conteúdo foi direcionada para os acórdãos publicados no mês de agosto, por ter sido o mês com o maior número de decisões publicadas sobre o tema, no total de dez.
Os dados quantitativos da pesquisa mostram que o Tribunal de Justiça de São Paulo, majoritariamente, prorrogou ilegalmente a internação provisória de adolescentes, em desacordo com os art. 108 e art. 183, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente, e da própria Recomendação Nº 62 do Conselho Nacional de Justiça, que determinou a revisão das internações provisórias durante a pandemia. A pesquisa também apontou para um protagonismo do Ministério Público, que foi o autor de todos os recursos objeto das decisões que originaram a análise de conteúdo.
Embora no mês de agosto somente uma das dez decisões analisadas tenha autorizado a prorrogação da internação provisória, todas contaram com votos divergentes, que se manifestaram favoráveis à prorrogação do prazo. O caráter paternalista e seletivo do sistema de justiça também foi preponderante, sobretudo pela prorrogação do prazo por fundamentos como a evasão escolar dos(as) adolescentes, além de que a internação seria benéfica aos(às) adolescentes. O contexto da pandemia apenas serviu para justificar a não realização das audiências, consequentemente com a impossibilidade de conclusão dos processos no prazo previsto em lei, e não foi atrelada a necessidade de preservação da saúde dos(as) adolescentes e agentes do sistema.
A pandemia que gerou a morte de aproximadamente trinta e quatro agentes socioeducadores(as) no estado não foi o suficiente para que medidas de desinternação fossem priorizadas. Conclui-se, portanto, que existe uma conivência do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Procuradoria-Geral de Justiça enquanto agentes do controle social formal, com as práticas violadoras de direitos dos(as) adolescentes institucionalizados. Além disso, atuaram como agravantes na propagação das desigualdades raciais, sociais e de gênero, por terem mitigado a saúde e a liberdade dessa parcela da população que possui prioridade absoluta conferida pela Constituição, ao, majoritariamente, prorrogarem de forma ilegal as internações provisórias de adolescentes em conflito com a lei durante a pandemia.
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