PRÁTICA POLICIAL E O NOT BEING-AT-EASE: A IMPORTÂNCIA DO INVESTIMENTO EM SAÚDE MENTAL NA POLÍCIA

Guilherme Bertassoni da Silva 

Psicólogo, Mestre e doutorando em Psicologia pela UFPR. Perito Oficial Criminal na Polícia Científica do Paraná. Professor em cursos de extensão e pós graduação. Pesquisador em Saúde Mental, Perícia Criminal e Psicologia Forense e Criminal.

País: Brasil Estado: Paraná Cidade: Curitiba

Email: silvapsi@hotmail.com ORCID:  https://orcid.org/0000-0002-8207-5043

Raíssa Miranda da Cunha Vargas

Psicóloga pela PUCPR. Mestranda em Psicologia Forense pela Universidade TUIUTI, Curitiba, Paraná.

País: Brasil Estado: Paraná Cidade: Curitiba

Email: raimcv@hotmail.com ORCID:  https://orcid.org/0000-0003-0996-2241

Adriano Furtado Holanda

Doutor em Psicologia, Professor Associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná, vinculado aos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e em Educação na UFPR, Coordenador do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade, LabFeno/UFPR.

País: Brasil Estado: Paraná Cidade: Curitiba

Email: aholanda@yahoo.com ORCID:  https://orcid.org/ 0000-0002-7171-644X

Contribuições dos autores: 

Guilherme Bertassoni da Silva: participou da concepção e delineamento, análise e interpretação dos dados, revisão e aprovação final. Adriano Furtado Holanda: contribuiu com acompanhamento de pesquisa, escrita e revisão de escrita.

RESUMO

A segurança pública é dever do Estado definido na Constituição Federal de 1988. A estrutura da vida policial é rígida, hierarquizada de maneira significativamente anacrônica com o desenvolvimento do mundo do trabalho na atualidade. Ademais, a organização policial é recorrente tema de debates, nos quais, rotineiramente, a população questiona sua credibilidade. Ainda que seja visto desta forma, o policial é geralmente um profissional advindo da classe média baixa ou baixa e que atua muito próximo aos seus locais de moradia e convívio social. A dificuldade dos policiais em separar os aspectos pessoal e profissional tem sido indicada como um foco importante de sofrimento psíquico para este trabalhador. Por meio dessas considerações, pretende-se vincular a prática policial com o conceito not being-at-ease da fenomenologia de Mariana Ortega e apontar para estratégias de prevenção e enfrentamento ao adoecimento psíquico desses profissionais.

Palavras-Chave: Polícia. Saúde mental. Fenomenologia. Not being-at-ease.

ABSTRACT

POLICE PRACTICE AND NOT BEING-AT-EASE: THE IMPORTANCE OF INVESTING IN MENTAL HEALTH IN THE POLICE

Public security is a duty of the State defined in the Federal Constitution of 1988. The structure of police life is rigid, hierarchized anachronistically in comparison with the development of the world of work today. Furthermore, the police organization is a recurrent theme of debates, in which, routinely, the population questions its credibility. Even though they are seen in this way, the police officer is usually a professional from the lower or lower-middle class and who works very close to their places of residence and social circle. The police officers’ difficulty in separating personal and professional life aspects has been indicated as an important source of psychological distress for those in this occupation. Through these considerations, we intend to link police practice with Mariana Ortega's phenomenological not being-at-ease concept to point to prevention and coping strategies for these professionals' psychological illnesses.

Keywords: Police. Mental health. Phenomenology. Not being-at-ease.

Data de Recebimento: 20/12/2021 – Data de Aprovação: 25/01/2023

DOI: 10.31060/rbsp.2023.v17.n2.1683

INTRODUÇÃO

O impacto da vida laboral na saúde mental das pessoas se evidencia como um campo de estudos crescente. O trabalho policial é uma das profissões mais estressantes da atualidade. A prática policial demanda um certo posicionamento pessoal e a abertura para vestir e desvestir dessa investidura. As pessoas que adentram essa profissão não “são” policiais, ainda que a força do hábito – bem como do regramento institucional – obrigue-as a acreditar nisso. Existe um conceito amplamente difundido entre os policiais de que o profissional “é policial o tempo todo”. Através dessas considerações iniciais, pretende-se vincular a prática policial com o conceito not being-at-ease. Este conceito indica a forma de manifestação pessoal em que o indivíduo “não se sente à vontade” nas conformações que ocupa no mundo, conforme os apontamentos de Ortega (2016a; 2016b).

O presente texto tem como objetivo explanar sobre as questões que permeiam a vivência laboral do profissional de segurança pública. Também traz a perspectiva fenomenológica da autora Mariana Ortega (op. cit.) sobre essa vivência e os impactos na saúde mental do profissional de segurança pública que se vê constantemente como a corporação, como sendo a farda, o símbolo que carrega no peito, manifestando uma clara dificuldade de despir-se dessa farda, dessa simbologia. Na comunidade, o policial vivencia a ambiguidade entre pertencer e ser, ao mesmo tempo, inimigo/opressor, causando sensação conflituosa de pertencimento e não pertencimento. Soma-se a isso o enfrentamento, muitas vezes, da desaprovação social de seu trabalho, que constitui parte essencial da sua identidade.

ESTRUTURA POLICIAL

A segurança pública é dever do Estado definido na Constituição Federal de 1988 e de responsabilidade das Unidades da Federação (estados e Distrito Federal). O policiamento é dividido entre ostensivo, investigativo e pericial, definidos no art. 144 da CF.

O policiamento ostensivo é função policial militar, aquele que tem por entendimento jurídico a polícia comunitária, que conhece a região, o território, o comerciante local. Essa polícia seria a mais próxima da população e tem por objetivo ações preventivas, evitando a ocorrência de crimes. O uso progressivo da força policial é esperado nesse momento e ela está presente, enquanto “força”, desde a simples presença da Polícia (com atividades como rondas a pé ou em viaturas) até o desenvolvimento de um enfrentamento, que pode incluir o uso de armas de fogo e a permissão legal – no estrito cumprimento do dever – de efetivar disparos contra outras pessoas em via pública ou realizar prisões e encaminhamentos às delegacias da Polícia Civil (GASPARINI, 2001).

Já a Polícia Civil tem função chamada de polícia judiciária ou investigativa, aquela que será acionada na falha da primeira, no cometimento de crimes, visando a apuração de competências e o relatório para o Poder Judiciário que indique bases legais para a punibilidade dos envolvidos. Cabe a este ente estatal a produção de provas testemunhais e a delegação para o órgão pericial da produção de provas materiais, a partir do que for recolhido por seus agentes em local de crime. O instrumento institucional utilizado é o inquérito policial, peça administrativa pré-processual que em sua conclusão tem elementos para instrução do magistrado, junto com as provas que podem ser produzidas pelo Ministério Público (SOUZA et al., 2007).

O terceiro ente presente nesta persecução penal é o órgão pericial. Este aposto se apresenta por conta de ser uma estrutura nova dentro do espectro policial, que estava historicamente ligada à estrutura policial civil e tem hoje tendência de desvinculação em âmbito federal (já são 19 estados em que a perícia é desvinculada da Polícia Civil). A nomenclatura ainda é variada – Polícia Científica, Instituto de Perícias, Polícia Técnico-Científica, entre outros. Esse arranjo estrutural engloba diversas instituições, como o Instituto Médico-Legal e o Instituto de Criminalística, responsáveis por proceder exames periciais de natureza criminal, atribuindo valor jurídico e probante a achados de locais em que se tenha praticado crime e existam vestígios – o chamado corpo de delito (TEIXEIRA, 2018).

Ainda, e mais recentemente, foi adicionado ao escopo policial o campo dos servidores até então chamados de agentes penitenciários. A Emenda Constitucional 104/2019 estabelece que estes servidores passam a ser componentes da Polícia Penal, relacionados diretamente com os departamentos penitenciários federal e das Unidades da Federação (BRASIL, 2019).

Em cada uma destas instituições citadas, o servidor é policial. Ainda que exista diferenças na atuação de cada uma destas instituições, há aproximações. Todas as instâncias possuem porte de arma fornecido pelo Estado. Todos são responsáveis, conforme estatutos próprios, por manter a ordem, ainda que sua atuação de origem não seja aquela da Polícia Militar. Todos podem ser acionados a qualquer momento para participar de operações especiais, mobilizações de busca e apreensão, cumprimento de mandados de segurança e afins. Há, desta maneira, algo que define o profissional policial como uma síntese de características básicas e específicas. Apesar de funções compartimentadas, todos são agentes de segurança pública. Todos são per se policiais. As atividades laborais constituem parte da identidade desse grupo de sujeitos e essa identidade, aqui, pode ser representada pelo ethos do agente da lei. É possível despir-se do uniforme ao final do dia, mas não do peso da responsabilidade e da representatividade deste.

A DIFÍCIL TAREFA DE SER POLICIAL

A estrutura da vida policial é algo rígido, hierarquizado, de maneira muito anacrônica com o desenvolvimento do mundo do trabalho atual. Mesmo fora da estrutura militar, o desenvolvimento de carreira é bastante limitado. No exemplo da Polícia Civil, temos uma carreira que é exclusivamente de chefia – delegado(a) –, não se levando em conta qualquer outro quesito. As outras carreiras – como investigador(a), papiloscopista e escrivão(ã) – estão sujeitas às definições daquela primeira. Não há possibilidade de uma escrivã, por exemplo, ascender internamente ao cargo que representa a chefia e tornar-se delegada. O próprio cargo de chefia da Polícia Civil se chama “Delegado-Geral”, evidenciando-se que nunca poderá ser ocupado por um policial civil de outra carreira.

Para além disso, a organização policial é, segundo Machado e Rocha (2015), costumeiramente tema central de discussões e rodas de conversa. A visão de um profissional mal preparado, violento e que tem práticas de corrupção institucionalizadas fazem parte dos estereótipos e das principais críticas a esses profissionais, de uma população que rotineiramente questiona sua credibilidade (MIRANDA, 2016). Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019), denúncias vinculando policiais às milícias e aos grupos de extermínio, assim como o uso da ideia de enfrentamento ao criminoso através do uso da violência por alguns políticos contribuem para o rebaixamento da confiança relatada pela população nas instituições policiais.

De acordo com o Anuário 2021 (FBSP, 2021), no ano de 2020, o país atingiu recorde de mortes em decorrência de intervenções policiais, produzindo 17,6 mortes por dia. Esse cenário já era observado em 2019: segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019), a cada 100 mortes violentas no Brasil, 11 foram de autoria policial. Do ano de 2013 até 2020, houve um crescimento de 190% de mortes decorrentes de intervenções policiais registradas, destas 72,7% foram causadas por policiais militares. É possível observar como resultado pesquisas que indicam os seguintes números: 51% da população brasileira relata ter medo da polícia, enquanto apenas 47% confiam na instituição, segundo Datafolha (2019 apud FBSP, 2019). O Anuário conclui ainda que:

A confiança nas instituições policiais é um indicador importante para avaliar a legitimidade da organização. [...] Quando a confiança nas instituições policiais é baixa existe a tendência de que as comunidades percebam suas ações como ilegítimas, o que reduz a cooperação da comunidade e compromete o resultado da atividade policial. (FBSP, 2019, p. 54-55).

Ainda que seja visto desta forma, o policial é geralmente um profissional advindo da classe média baixa ou da classe baixa e que atua muito próximo a seus próprios locais de residência e convivência. Isso gera conflitos de abordagens e sucessivas dificuldades de diferenciação entre a vida policial e a “civil” (MIRANDA, 2016).

Esta correlação – de dificuldade dos policiais em separar os aspectos pessoal e profissional – tem sido indicada como um foco importante de sofrimento psíquico para esses trabalhadores. O sofrimento psíquico do policial, em comparação com a população em geral, é desproporcionalmente mais elevado, conforme observado em Minayo, Assis e Oliveira (2011). Wagner et al. (2020) evidenciam que indivíduos com maior tempo de atuação na carreira de segurança pública apresentam graus superiores de sofrimento em geral. Além disso, Castro, Rocha e Cruz (2019) classificam o trabalho policial como a segunda função mais estressora e a terceira ocupação a gerar mais sintomas físicos e psiquiátricos relacionados ao trabalho, sendo os mais relatados: síndrome de burnout, depressão, ansiedade, transtornos de estresse, dependência química, dificuldade nos relacionamentos interpessoais e comportamentos suicidas. Machado e Rocha (2015) destacam ainda a relação íntima da atividade laboral desse profissional, que ocorre, normalmente, em ambientes de conflito, com o estresse, levando ao esgotamento do indivíduo e da sua qualidade de vida. A saúde do profissional é prejudicada tanto pela operacionalidade do trabalho quanto por questões organizacionais.

De fato, a profissão policial pode ser extremamente estressante. Segundo Oliveira e Santos (2010), o desgaste físico e emocional pode levar o profissional a um conjunto de tomada de atitudes equivocadas em situações de crise, prejudicando a eficácia no desempenho do exercício profissional e expondo civis e policiais a riscos em potencial, prejudicando também a imagem da corporação. Para Wagner et al. (2020), a imagem avaliada de forma negativa pela imprensa e pela opinião pública resulta em uma falta de reconhecimento e valorização social do trabalho, aspectos essenciais para a construção da autoestima individual. Além disso, esses profissionais estão em constante contato com um contexto de enfrentamento de situações de violência e morte. Oliveira e Santos (2010) destacam que a morte é uma realidade na vida dos profissionais de segurança pública, já que estes lidam com a morte de vítimas, criminosos, dos próprios colegas de trabalho e com a ideia de sua própria morte.

Existe ainda um elevado número de policiais mortos fora de serviço, momento de maior vulnerabilidade para esses profissionais. O simples fato de serem policiais e estarem armados faz destes profissionais vítimas em potencial. Castro, Rocha e Cruz (2019) constatam que mesmo fora do serviço, policiais revelam que podem e devem agir e reagir em situações de violência, apontando isto como resultado da incapacidade do policial de se “despir” da função/cargo mesmo durante as folgas. No entanto, a qualidade de dados acerca dos profissionais de segurança pública vítimas de crimes letais intencionais é precária, dificultando análises da problemática de forma globalizada. Isso se dá devido à necessidade de cultivar o mito do “policial herói”, gerando, na prática, a omissão do Estado para a melhoria das condições sociais e de trabalho desses profissionais. Desta forma, o sistema força o profissional a “atuar imbuído do ethos do policial guerreiro, imune, portanto, a qualquer tipo de dificuldade e/ou problema” (FBSP, 2019, p. 49).

Estudo de Miranda e Guimarães (2016) indica que a proporção de suicídio é quatro vezes maior entre policiais do que na população em geral. No ano de 2019, a taxa de suicídio entre esses profissionais, registrada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020), ainda era significativamente maior do que na população em geral, de forma que naquele ano morreram mais policiais por suicídio do que em confronto em serviço. Estes dados apontam para um tipo de trabalho (e de trabalhadores) mais vulnerável para questões ligadas ao sofrimento psíquico agudo e grave, com consequências devastadoras. A alta taxa de suicídio da categoria não é aleatória, mas sim “o retrato de uma realidade perversa mantida por políticas públicas de segurança que tratam seus agentes principais como torniquetes de um sistema falido” (FBSP, 2019, p. 49).

Figura 1: Mortes de Policiais

Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019).

No caso de falecimento do servidor, do ponto de vista institucional, por se tratar de um funcionário concursado, a estrutura não se altera: convoca-se outro de concurso público, caso vigente, ou adiciona-se a um concurso vindouro; em outras palavras, a estrutura institucional não se altera muito com esta vida perdida. Os programas voltados para este tipo de enfrentamento são tímidos e não se mostram eficazes, como a estatística nos faz demonstrar (MINAYO; SOUZA, 2003).

Estas constatações nos indicam o fato de que ser policial é um risco em si. Não apenas por fazer um tipo de enfrentamento de realidade ao qual a maioria das pessoas não estaria disposta a fazer, mas pelos resultados psíquicos que essa profissão causa. Somam-se ao suicídio diversas outras psicopatologias associadas ao trabalho policial e que geram motivos de afastamento temporário ou perene das funções, tais como: transtornos de sono, ansiedade, depressão, transtorno bipolar, transtorno de estresse pós-traumático, transtornos associados ao uso de substâncias psicoativas permitidas ou não, dentre outros (COSTA et al., 2007).

A NOÇÃO DE NOT BEING-AT-EASE

O conceito de not being-at-ease aparece pela primeira vez na obra de Mariana Ortega (2016a) como um contraponto ao conceito heiddegeriano de Unheimlich, algo como um “eu (self) estranho”, um “não estar no mundo”, ou seja, um humor que revela as diferentes possibilidades de estar no mundo e aspectos individuais de si mesmo. Em seu texto, Ortega (ibid.) aponta para um tipo de “não estar à vontade” no mundo como uma sensação “na carne”. E este desconforto apontado se dá pelo fato de que as pessoas estão em uma situação de fronteira – a new mestiza, a identidade pode ser assumida, mas não livremente escolhida, já que depende da origem e da experiência de vida. Dessa forma, a pessoa está em constante condição de desconforto, estresse, dor e paralisia. A new mestiza é ao mesmo tempo self individual e self plural, uma “mestizaje” de multiplicidade e unidade. Desta forma, Ortega (2016a) apela para um pluralismo existencial ao invés de um pluralismo ontológico, propondo uma visão de multiplicidade da individualidade, ou self múltiplo – selves. Esses diferentes aspectos do self são destacados de acordo com as relações de poder em funcionamento em diferentes contextos, e que estão em constante negociação sobre suas diferentes identidades sociais e posicionalidade. Nas palavras de Ortega (2016b, p. 11): “Our lived experience reveals a sense of being, a sense of how we are, how we fare, that is connected to material circumstances and entities”.

Ortega desenvolve, então, sua própria visão de self, ou selves, ao realizar a minuciosa análise de um diálogo, proposto pela mesma, entre Martin Heidegger e a filosofia feminista de Gloria Anzaldúa e María Lugones. Para Ortega, o termo “multiplicidade” é necessário para atingir uma melhor compreensão da complexidade do self, que não se trata obrigatoriamente de uma identidade única e homogênea, mas sim englobada por diversos níveis de complexidade que compõem nossa percepção sobre quem somos. A fim de dar conta das identidades sociais, que em algum momento se entrelaçam com opressões, é necessário que exista essa “multiplicidade”. Sendo assim, para Ortega, não nos tornamos pessoas diferentes para diferentes cenários, mas sim diferentes dimensões da identidade são trazidas à tona à medida que atravessamos diversos contextos, e ainda assim mantemos um senso próprio (mine-ness) (BERRUZ, 2016).

Dessa forma, o self conecta-se com diversos mundos (beings-in-worlds) e encontra-se também entre esses mundos (beings-between-worlds). Sendo assim, existem aqueles que, a partir dessa multiplicidade de selves, experimentam momentos de contradição e ambiguidade, uma sensação de não estar à vontade (not-being-at-ease) (BERRUZ, 2016).

Ortega (2016a) explicita que, enquanto algumas pessoas podem se encontrar em situação de não estarem à vontade ocasionalmente, essa sensação se dá de forma continuada. Há uma ansiedade constante, um tipo de estado de alerta que nunca se desfaz: como um estado de angústia permanente que tem finalidade de defesa a qualquer momento. Essa ansiedade também se demonstra produtiva na medida em que pode impulsionar para soluções criativas, suscitando a possibilidade de uma existência autêntica – o subjetivo dependente das identidades com as quais nos identificamos. Esse atravessamento de realidades demonstra que a resistência é a forma de enfrentamento e de manifestação de um self que encontra soluções para as situações às quais se encontra submetido. A resistência é aqui apontada como um conceito positivo do sujeito rumo à autonomia e à individuação, ao encontro do proposto por Moraes (2006), ensejando o enfrentando às intempéries psicológicas, sociais e laborais (no caso específico dos policiais).

Essa conceituação também se vincula ao que Ortega (2016a; 2016b) nomeia de la facultad, uma sensação ligada ao corpóreo e ao ambiente, como aquilo que pode ser percebido como potencial ajuda ou prejuízo nessa relação. Essa facultad se desenvolve a partir de incontáveis experiências de medo e ameaças em geral, face aos perigos diretos e indiretos que sofrem as pessoas em situações de fronteira.

Entendemos que existem possibilidades de leitura que entrelaçam as sensações percebidas pelo policial em sua atuação profissional e sua vida pessoal, com os conceitos acima apontados. A descrição de um tipo específico de sofrimento que Ortega traz em seu texto pode ser verificada, pelos exemplos trazidos da atuação policial, na constante vivência de angústia e estado de alerta destes profissionais. A sensação de não pertencimento e de estar em constante ameaça faz parte da vida do policial, uma vez que no desenvolvimento de suas tarefas profissionais experienciam a lógica da guerra – um exemplo disso são as políticas oficiais de enfrentamento à drogadição (“Guerra às Drogas”), tratando os sujeitos periféricos, negros, pobres, pessoas em situações variadas de vulnerabilidade como potenciais inimigos prontos a agirem contra a integridade física do policial.

E isso se mostra até mesmo no uso da violência por parte do policial. O chamado “uso progressivo da força” é um tipo de estratégia que visa a diminuição – ou ao menos o correto uso – da força empregada, visando um equilíbrio na ação policial. Essa força, essa violência, tem padrões diferentes de aceitação social. Enquanto em uma abordagem na favela se admite a violência policial em sua escala máxima, nas intervenções em bairros ricos, o policial se porta de modo diferente: o uso de sua força não pode afetar essa parcela da população. Qual seja, violência física contra as populações marginalizadas é legitimada pela instituição policial e desencorajada para com as populações elitizadas (MACHADO; NORONHA, 2002). Na região da população marginalizada, a polícia iguala o morador ao “bandido” e faz a lógica de que “bandido bom é bandido morto”. Exemplos midiáticos do ano de 2020 são evidentes nesse aspecto, como no caso do empresário morador do condomínio Alphaville, em São Paulo, ao desacatar o policial que ali estava para uma abordagem de violência doméstica:

Não pisa na minha calçada, não pisa em minha rua, eu vou te chutar na cara filha da puta, eu vou te chutar na cara. Não pisa na minha calçada. Você é um lixo. Seu merda. Você é um merda de um PM que ganha R$ 1 mil por mês, eu ganho R$ 300 mil por mês. Eu quero que você se foda, seu lixo do caralho. Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville, mano... (THADEU, 2020, n.p.).

Este episódio explicita a relação da classe social para com a atitude do policial. Após essas colocações, o policial não adentrou à casa, o que supomos que seria bastante distinto caso o mesmo tipo de situação ocorresse em um bairro pobre.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019) fez um levantamento de 7.952 registros de intervenções policiais que resultaram em morte nos anos de 2017-2018, a fim de construir o perfil das vítimas de violência policial. Esse levantamento evidencia uma seletividade da letalidade policial. As vítimas tenderam a ser, em sua maioria, do sexo masculino, negros, jovens (até 29 anos) e que possuíam somente o Ensino Fundamental, completo ou incompleto. Esse perfil continua como uma constante, segundo o Anuário de 2021 (FBSP, 2021): 98,4% das vítimas eram homens; 78,9%, negras; e 76%, jovens entre 0 a 29 anos. Esses dados demonstram que as ações letais da polícia se concentram em territórios de baixa renda, não estando aleatoriamente distribuídos, reforçando a ideia de distintas formas de atuação para diferentes grupos sociodemográficos.

Mais uma fonte recente indica que o número de mortes resultantes de confrontos com policiais teve um resultado de elevação nos últimos anos. Em dados levantados pelo Ministério Público do Estado do Paraná, de 2019 para 2020 se verifica o acréscimo de 23,8%, com o dado bruto numérico ampliado de 307 para 380 vidas perdidas, implicando em mais de uma morte por dia decorrente desse tipo de intervenção na esfera dessa Unidade da Federação (MPPR, 2021).

É importante destacar que, apesar dos dados de violência letal policial se concentrarem em regiões de baixa renda, o próprio policial é oriundo, de modo geral, das classes com desenvolvimento socioeconômico mais baixo (COSTA et al., 2007). Isso significa dizer que sua atuação se dá, mormente, dentro de sua própria realidade ou em um ambiente muito próximo (socialmente falando) daquele que lhe é de origem. O uso da violência, o excesso de força na intervenção, então, se manifesta justamente no mesmo ambiente em que ele convive. Há uma familiaridade colocada aí.

Essa familiaridade é, contraditoriamente, base da origem da sensação de estranhamento, de não estar à vontade. Porque, quando em “estrito cumprimento de dever legal” (BRASIL, 1940), o policial se volta contra sua comunidade. Quando de folga, civil, mantém-se deslocado dessa mesma comunidade por se sentir em ameaça: da revelação da profissão, do segredo, da ameaça real de ser perseguido por indivíduos ou grupos que combateu (ou prendeu ou denunciou) na prática policial. Esta prática de violência, inclusive com o aspecto da mortalidade elevada, transforma as comunidades referidas em campos de batalha, numa estrutura que se retroalimenta. Nesse sentido, Machado e Noronha (2002) exemplificam:

As execuções eliminam lideranças e produzem revolta entre os sobreviventes das quadrilhas, que aumentam as agressões contra moradores desprotegidos. O fim de uma liderança também é acompanhado por ajustes de contas e lutas sucessórias sangrentas, que desorganizam o controle dos delinquentes sobre o bairro e tornam os moradores vulneráveis à ação de outras quadrilhas que, não encontrando resistência local, invadem o território dantes monopolizado por eles. (MACHADO; NORONHA, 2002, p. 217).

Se os grupos do crime organizado aumentam a carga entre si e contra a população, o poder público é chamado a agir; e aí, causa mais mortes, em nome da segurança pública. E novamente, haverá a reação. Essa correlação é cíclica.

Esse estranhamento, deslocamento, por uma questão de geografia humana, ao qual o policial está submetido, revela uma reação que escapa à instituição, uma reação que vem ao pessoal, ao individual, ao corpo. E é aí que encontramos resultados de pesquisas (MIRANDA; GUIMARÃES, 2016) com conclusões que demonstram justamente fatores estressantes que impactam os policiais em comportamentos de tipo suicida. As autoras citam, especificamente:

Uso de álcool, doença física e mental, idade elevada e aposentadoria iminente; insatisfação com a polícia, a relação hierárquica entre policiais superiores e subordinados, o medo de investigações internas e as pressões sociais; o baixo nível de confiança entre os colegas de trabalho; conflitos conjugais e problemas no local de trabalho. (MIRANDA; GUIMARÃES, 2016, p. 13).

O suicídio, último recurso de autoagressão, está ligado a esta dimensão corporal que é tênue na avaliação e pouco presente nas queixas diretas dos policiais, dificultando modelos tradicionais de tratamento de tipo psicológico/psiquiátrico. Aí, o que apontamos como a correlação com o conceito de not being-at-ease é verificado de forma extremada, demonstrando a incapacidade de conciliação entre as diferentes dimensões do “ser” em uma situação de ambiguidade e imobilidade.

ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO

Para podermos ter os problemas cotidianos decorrentes do trabalho (questões de operacionalidade, organizacionais, identitárias, de violência, adoecimentos etc.) enfrentados pelos policiais e quiçá encaminhados à sua resolução, entendemos que a informação refinada é um importante auxílio. O primeiro passo seria a realização de pesquisas locais específicas de levantamento de dados acerca da saúde mental da corporação a ser trabalhada. Esse entendimento vai ao encontro do fato de que o trabalho policial é variado em suas especificidades, com possibilidades de atuação muito distintas. O trabalho de um investigador da Polícia Civil difere muito do trabalho de um capitão da Polícia Militar, ou do Perito Oficial, ou do Policial Penal; enfim, as filigranas de cada instituição são múltiplas e um trabalho de enfrentamento das questões de risco comportamental deve seguir o mesmo caminho.

A Lei Nº 13.675 de 2018 prevê no art. 42 o Programa Nacional de Qualidade de Vida para Profissionais de Segurança Pública (Pró-Vida), que tem como objetivo: “elaborar, implementar, apoiar, monitorar e avaliar, entre outros, os projetos de programas de atenção psicossocial e de saúde no trabalho dos profissionais de segurança pública e defesa social” (BRASIL, 2018). Em conjunto a Portaria Nº 483, de 9 de novembro de 2021, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, reforça o incentivo a projetos e programas com o foco na valorização dos profissionais de segurança pública, onde estão previstas ações financiáveis referentes à valorização da qualidade de vida dos profissionais, entre elas: atenção e acompanhamento biopsicossocial, atenção para situações de estresse e risco, vitimização e suicídio.

Apenas recentemente foram divulgados em diversos estados programas que têm como objetivo oferecer apoio psicossocial aos profissionais de segurança pública. Em outubro de 2021, foi lançado o Projeto Vida pela Polícia Rodoviária Federal, com o objetivo de garantir a melhoria na qualidade de vida e saúde mental dos profissionais da instituição, através do atendimento e da orientação no âmbito da saúde mental. Essa iniciativa se deu devido à quantidade de afastamento de policiais em razão de doenças psicológicas (MJSP, 2021).

Já em São Paulo, em site oficial do estado, foi ressaltado que em 1997 originou-se um sistema voltado à saúde mental do policiai militar, o SiSMen, com a finalidade de prevenir o adoecimento mental e o suicídio do servidor. Esse sistema conta com programas e serviços como: o Programa de Prevenção em Manifestações Suicidas – PPMS, que atende tanto policiais na ativa quanto veteranos, com objetivo de identificar, reduzir e eliminar fatores de risco ao suicídio; o Programa de Acompanhamento e Apoio ao Policial Militar – PAAPM, para policiais envolvidos em ocorrências de alto risco e que tenham alguma dificuldade de adaptação; o Programa de Aconselhamento Psicológico – PrAP, direcionado aos profissionais que estão iniciando a carreira, a fim de contribuir com a adaptação deste à corporação; e o Programa de Sensibilização para Encerramento da Carreira Policial Militar –PROSEN. Além destes, a Polícia Civil do Estado de São Paulo também conta com o Núcleo de Orientação Psicológica – NOP – e o Núcleo Psicossocial na Divisão de Prevenção e Apoio Assistencial – DPAA, que fornecem atendimento especializado e informativo na área psicossocial (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2020).

Em dezembro de 2020, no Rio Grande do Sul, a primeira turma composta por 137 militares formou facilitadores através do Programa Anjos, que tem o objetivo de capacitar esses profissionais a como identificar sintomas de doenças mentais e a necessidade de encaminhamento para atendimento especializado (SSPRS, 2020). No Ceará, no ano de 2021, a Assistência Militar do Tribunal de Justiça do estado reconheceu publicamente em matéria a necessidade de realizar ações com o objetivo de promover saúde e bem-estar aos profissionais de segurança pública, ressaltando a já existência de acesso à Assistência Biopsicossocial da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social – SSPDS (TJCE, 2021). Na Paraíba, também no ano de 2021, ganhou destaque o projeto Espaço Viver Bem, que tem como objetivo atender gratuitamente, através de uma equipe multidisciplinar, o policial militar (A UNIÃO, 2021). Já no Mato Grosso, em 2021 foi realizada a 1ª Edição da Semana de Saúde Mental e Prevenção ao Suicídio, promovida pela Diretoria de Saúde da Polícia Militar, com o objetivo de dar suporte aos policiais da instituição e principalmente orientá-los sobre a importância de priorizar e cuidar da própria saúde (PMMT, 2021). A sensibilização do ente governamental (nesse caso, o poder executivo estadual) deve seguir junto com este trabalho, compreendendo ações estatais continuadas para este fim. Verifica-se que o tipo de atenção dedicada ao cuidado da saúde mental destes trabalhadores ainda é incipiente no país. As corporações dispõem de poucos recursos direcionados diretamente a isso.

No estado do Paraná, onde as ações integradas voltadas para este foco iniciaram-se apenas no ano de 2020, com o anúncio da contratação específica de profissionais de saúde para atender o público-alvo de servidores da pasta de Segurança Pública. Esse anúncio previa que profissionais contratados para esta finalidade atuariam na prevenção e na promoção da saúde mental (GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2020). Ainda que tenham existido iniciativas anteriores dentro das forças policiais – especialmente na Polícia Militar –, esta organização, em esfera estadual, ocorreu pela primeira vez na definição de um programa mais amplo para toda a estrutura da Segurança Pública.

O programa do estado paranaense foi regulamentado na forma do Decreto 6.297 do governo do estado, na data de 4 de dezembro de 2020 (PARANÁ, 2020). Este decreto indica a estrutura de funcionamento do programa, com dois Centros de Atendimento Psicossocial nas cidades mais populosas (Curitiba e Londrina) e 26 Seções de Atendimento Psicossocial capilarizadas pelo território estadual. Com o nome fantasia de “Programa Prumos”, tem o objetivo de “implementar políticas de qualidade de vida, bem-estar, saúde, desenvolvimento pessoal, exercício da cidadania e valorização desses profissionais” (PARANÁ, 2020). Ainda aponta para a projeção do aumento de expectativa de vida, produtividade e autoestima dos servidores da segurança pública; diminuição de rotatividade, vitimização e absenteísmo destes; bem como prevê a melhoria da qualidade de vida e qualificação profissional.

A implantação deste trabalho é algo positivo e pode ter um direcionamento adequado. Para um programa ser formatado de forma a respeitar as especificidades deste público, ele deve ter um marco de enfrentamento das questões mais basais, tomando-se como modelo a estrutura de atenção à saúde prevista no Sistema Único de Saúde – SUS. Este modelo pressupõe um atendimento escalonado em complexidade, dando ênfase à promoção de saúde como ação primária (Lei Nº 8.080, 1990). Dentro da organização do SUS está previsto no art. 5º, inciso III, que é objetivo do sistema “a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas” (BRASIL, 1990).

Dentro desta proposta, a atuação de um programa de atenção ao servidor da segurança pública deve estar pautada primeiramente na prevenção. Compreende-se como prevenção ações de promoção de saúde, visando (idealmente) ao não surgimento de alterações comportamentais derivadas da atuação profissional.

Pesquisas de avaliação e intervenção, como a proposta por Silveira (2020), demonstram resultados positivos e significativos da efetividade de um programa de intervenção na fase de pós-teste, apontando para uma diminuição significativa dos níveis de Afetos Negativos (como solidão, tristeza, irritação e preocupação) e um aumento dos Afetos Positivos (interpretações positivas das relações sociais, contribuição para bem-estar físico e aumento da resiliência diante de eventos estressores), e Satisfação com a vida do grupo experimental; assim como também ampliaram a percepção desse grupo de Suporte Social e Emocional. Machado e Rocha (2015), reforçam a necessidade de projetos no nível de intervenção organizacional, de prevenção, treinamentos de habilidades sociais e estímulo à manutenção da saúde física e mental, e enfatizam a necessidade de esclarecimento sobre os processos de psicoterapia com o objetivo de obter maior adesão desses profissionais, em consonância com Silveira (2020). Esta autora indica que a intervenção realizada aos profissionais de segurança pública contribui para que estes percebam a necessidade de receber apoio emocional, característica vital para uma carreira que expõe com frequência o servidor a situações estressoras e de risco iminente e constante de morte.

Também é importante levar em consideração o resultado de pesquisas como a de Castro, Rocha e Cruz (2019), que trazem alguns aspectos iniciais a serem considerados para o enfrentamento da problemática: é cada vez mais emergente a mudança do foco no individual para o âmbito coletivo, objetivando estratégias de reestruturação e reorganização das instituições policiais. Desta forma, são indicados programas institucionais de prevenção da saúde mental no trabalho, promovendo estratégias de controle e prevenção, reduzindo o absenteísmo e a valorização do suporte social. Também são indicadas a assistência psicológica permanente, como atividade institucional, e as intervenções em grupo, instrumento importante para o enfrentamento de questões oriundas da violência e do cotidiano policial, assim como para a recuperação da autoestima. Ao se pensar no âmbito coletivo, também é proposta a flexibilização das organizações policiais (ibid.). Desta forma:

Propõe-se que a organização contemporânea do trabalho se paute por: exigir do policial força física, mas também energia intelectual; privilegiar o trabalho em equipe; minimizar as hierarquias e estimular a cooperação; encorajar a produtividade individual e coletiva, compreendendo que a valorização e a satisfação do profissional dessa categoria são fundamentais para a segurança e proteção de toda a sociedade. (CASTRO; ROCHA; CRUZ, 2019, p. 535).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No percurso de construção deste escrito, foi possível investigar de modo reflexivo e argumentativo a problemática enfrentada por profissionais da segurança pública. Por meio de revisão literária, propusemos ideias para lidar com o sintomático adoecimento de todo um coletivo. Apontamos, neste contexto, para a peculiaridade do trabalho de tipo policial, para tentar compreender o conflito identitário que ocorre quando este trabalhador se vê em desconforto consigo mesmo. Este desconforto é verificável no agir de forma arbitrária em sua própria comunidade ou ainda no fazer parte de uma corporação que constantemente tem sua credibilidade questionada e criticada pública e midiaticamente, gerando processos de adoecimento.

O conceito de not-being-at-ease é bem observado nos agentes de segurança pública, que vivem em confronto com diferentes e ambíguos aspectos de sua individualidade, como ser ao mesmo tempo parte da “comunidade” e “agente opressor” desta. Essa situação agrava-se dada a imobilidade laboral característica da profissão, que não permite manifestação autêntica do ser; pelo contrário: há repressão e tentativa de padronização. Além disso, essa sensação de mal-estar no mundo agrava-se ao acirrar discursos que estimulam a ação repressiva violenta da polícia contra a comunidade, corroendo, ainda mais, a relação instituição-população em um constante círculo de produção de violência.

Destaca-se como essencial a manutenção da saúde desses profissionais, que não apenas contribui para a saúde do indivíduo, como também impacta diretamente no serviço prestado à população. A melhora da saúde e da prestação de serviços de segurança pública contribui para a melhor avaliação da imagem da corporação e do profissional, resultando na colaboração e na confiança da população e reduzindo o sentimento de descrédito. Essa conciliação, por sua vez, favorece o aumento da qualidade de vida do profissional, contribuindo para a formação de um ciclo positivo nas relações indivíduo/instituição e policial/sociedade.

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